O discurso a favor das famílias é muito bonito, a preocupação pela baixa natalidade até comove, mas quando tudo isto embate de frente na concertação social, com associações patronais que até propõem alargar o horário de trabalho de 40 horas por semana para 60 horas, aí a porca torce o rabo. Que é como quem diz: as mães continuam tramadas. Pior: tornaram-se um alvo.

Na verdade, as mulheres estão a ser um alvo, não só as mães. Basta olhar para o conjunto de propostas do Governo de Luís Montenegro ou do PSD. Este partido propôs no Parlamento que se retirassem da lei os artigos sobre violência obstetrícia, penalizando os obstetras que façam episiotomias injustificadas (o corte dos tecidos vaginais durante o parto). Esta lei foi publicada apenas em março último.

Depois, na nova Estratégia Nacional para a Educação para a Cidadania, que o Governo colocou em consulta pública, são retirados os temas de sexualidade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Inúmeros estudos académicos internacionais têm demonstrado, ao longo de décadas, que a Educação Sexual nas escolas tem evitado muitas gravidezes entre as adolescentes, tendo um papel decisivo também no esclarecimento sobre o que é o consentimento e prevenindo muita da violência no namoro.

Sem esquecer que, no início do ano, PSD, Chega e CDS chumbaram propostas para alargar a interrupção voluntária da gravidez a pedido das mulheres das dez para as 12 semanas. Portugal tem um dos prazos mais restritivos da Europa e a Organização Mundial da Saúde recomenda as 12 semanas.

E chegamos agora às leis do trabalho. Pais com filhos menores de 12 anos podem recusar trabalhar aos fins de semana ou à noite em empregos com turnos, tendo direito a um horário mais fixo. É difícil entender qualquer recuo nesta matéria, como o Governo quer promover, dizendo que o horário flexível deve “ajustar-se às formas especiais de organização de tempo de trabalho que decorram do período de funcionamento da empresa ou da natureza das funções do trabalhador”.

Este artigo das leis do trabalho, na verdade, pouco tem a ver com os direitos dos pais. Estamos aqui a falar dos direitos das crianças de poderem estar com os seus cuidadores no final de um dia de escola. Jantar com os pais, tê-los a aconchegar-lhes o edredão antes de dormir, passarem o fim de semana com eles… As crianças não precisam deste tempo com os seus cuidadores?

Temos a questão do luto gestacional, onde se tenta impedir que os companheiros tenham direito a três dias de baixa remunerada para acompanhar as mães no luto… E o ataque às mães que amamentam para lá dos 2 anos da criança, beneficiando de duas horas de licença diárias para o efeito. À ministra do Trabalho, Maria do Rosário da Palma Ramalho, exige-se que nos dê os números de mães em tal situação, para que o País perceba se temos aqui, de facto, um problema que afeta a produtividade da economia, como o Governo dá a entender, ou se se trata de mera ideologia sem sentido.

No meio disto tudo, uma pergunta impõe-se: onde estão os movimentos de mulheres? O que pensam fazer perante tal ataque aos direitos das mulheres? A inatividade surpreende num país onde ainda “ontem” as mulheres não votavam, onde ainda “ontem” precisavam de autorização do marido para atravessar a fronteira. Estes não são tempos para assobiar para o lado.

1. Se há três coisas que são certas, nesta vida, elas são a morte, os impostos e os incêndios florestais no verão. Enquanto o País se inclina para sul, com a “migração sazonal” a caminho do Algarve, nas florestas do território abandonado o fogo lavra com a regularidade de tudo o que é dado por garantido. Os canais noticiosos, sobretudo os mais sensacionalistas, embrutecem os telespetadores com horas e horas de chamas sem qualquer valor noticioso acrescentado, contribuindo para a crescente indiferença de quem assiste a um espetáculo remoto e repetido. Ninguém se indigna, todos se conformam: Estado, autarquias, populações e telespetadores. Num mundo já transformado pelas alterações climáticas, o fenómeno é, nos nossos dias, inevitável. Mas a mitigação do inevitável é possível. E as causas estão identificadas há décadas. Se há reforma estrutural de que o País necessita – mas de que nenhum partido “modernaço”, daqueles que estão sempre a exigir reformas estruturais, fala, é a da floresta, ou, melhor dizendo, a dos matos abandonados e caóticos que compõem e desfeiam a nossa paisagem. Para isso, haverá sempre boas intenções, mas nunca haverá meios, nem dinheiro, nem maquinaria, nem massa crítica (pessoal) para que se metam mãos à obra. Até porque isso não dá votos. País de peritos e especialistas, Portugal não tem lenhadores. De forma nostálgica, fala-se de outros tempos em que o País dispunha de um numeroso corpo de guardas-florestais. Essa nostalgia analógica não tem em conta o século XXI nem as suas possibilidades tecnológicas, e o mesmo é válido para a prevenção e o combate, que se faz mais ou menos como se fazia há 50 anos. Quantas corporações de bombeiros dispõem, por exemplo, de uma “frota de drones”, e respetivos operadores, que possam fazer, nos céus, e nos pontos mais críticos, o que os detetores de fumo fazem nos quartos de hotel? E que, na “época alta”, 24 horas por dia, ajudem a vigiar e a detetar cada foco no seu início? Se alguns drones existirem, esses estarão nas mãos dos incendiários, que vão sempre à frente… Há poucas semanas, neste mesmo espaço, quando comentávamos o debate do Estado da Nação que fechou a sessão legislativa no Parlamento, já dizíamos o óbvio: em breve, a falta de meios aéreos do INEM, ali tão discutida, iria transferir-se para os incêndios enquanto os deputados, preocupados com outros temas, assistiriam a tudo, de longe, no seu cantinho de férias algures na costa algarvia. Cá estamos.

Cada vez menos timidamente, o Governo vai aplicando a sua “agenda transformadora”. Uma agenda eminentemente conservadora e de viragem ideológica à direita. Está no seu direito: não só o eleitorado reforçou a votação na AD, como legitimou, numa massiva votação dos partidos da direita, uma viragem ideológica da qual, agora, não pode queixar-se

2. Pela “calada da silly season”, o Governo, cada vez menos timidamente, vai aplicando a sua “agenda transformadora”. Uma agenda que, ninguém o deve estranhar, é eminentemente conservadora e de viragem ideológica à direita (e nem vou falar aqui das leis da imigração ou dos estrangeiros). Diga-se, para começo de conversa, que está no seu direito: não só o eleitorado reforçou a votação na AD, como legitimou, numa massiva votação dos partidos da direita, uma viragem ideológica da qual, agora, não pode queixar-se. E isto é válido para a imigração e para o resto. O ministro mais competente do Governo, Fernando Alexandre, da Educação, Ciência e Inovação, que, além do mais, é um excelente comunicador, abriu as hostilidades, com a reformulação da disciplina de Cidadania. Há algumas razões para o fazer, mas talvez a mais urgente não seja a retirada da área da Educação Sexual. Mais uma vez, estamos no século XXI e, com os meios que as nossas crianças têm à mão, não se lhes pode continuar a contar a história da cegonha. O ministro diz que a Educação Sexual continuará a ser administrada, mas, agora, de forma integrada, não casuística. Vamos ver. Se a intenção é melhorar o programa curricular, tudo bem. Mas os sinais, pelo menos, os do timing, não são excelentes: a medida surge na sequência de fortes pressões obscurantistas que, lá está, parecem viver ainda na “idade da pedra” do século passado. Outra coisa é a chamada “identidade de género”, que tem tudo a ver com o poder da linguagem – “eu sou o que digo que sou”… – e nada a ver com a ciência ou a biologia. E que, portanto, não tem de estar contemplada em qualquer programa escolar, a não ser quando se estudarem as ciências sociais. Por falar em ciência, a reestruturação que implica a extinção da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) parece ser uma medida voluntarista destinada a aproximar a ciência e a tecnologia da realidade das empresas. É uma clara deriva ideológica (não estamos a dizer que isso seja automaticamente negativo) que, como diz o ex-ministro socialista da Ciência, Manuel Heitor, não acompanha o debate que hoje se faz na Europa. Mas nós sabemos como a Europa está atrasada, nestes domínios, o que pode dar o benefício da dúvida ao Governo…

3. Noutra vertente, parece haver uma ofensiva no campo dos direitos do trabalho. As medidas anunciadas ou “suspeitadas”, no que diz respeito às leis laborais, nomeadamente as horas semanais de trabalho ou o período de luto gestacional, dão uma guinada à direita. Mais uma vez, foi isto que a maioria dos portugueses escolheu, no dia 18 de maio, e nem podem dizer que foram ao engano: todos nos lembramos das palavras de Luís Montenegro, em plena campanha, sobre a necessidade de alterar a Lei da Greve…

O que parece, no timing escolhido para testar junto da opinião pública – como fazia António Costa! – medidas que, depois, não se sabe se são mesmo levadas a cabo ou não, é que, aproveitando o verão e a distração das férias, Montenegro quer fazer já o mal e a caramunha. Mas sempre dentro da ambiguidade necessária – afinal, ainda há mais dias de luto gestacional?… – para que não se cometam erros eleitorais antes das autárquicas. Mas, depois de 12 de outubro, esperem pela pancada.

PS – Típico da silly season, um canal de televisão combateu uma entrevista do antigo presidente do Benfica, e provável recandidato, Luís Filipe Vieira, que passava no canal ao lado, com “a anunciada maior entrevista de sempre” a André Ventura. O político mais sistemático do sistema anda em looping pelas televisões e anunciar apenas uma simples entrevista, sem mais qualificativos, já não basta. É como a droga, o público quer sempre mais Ventura. Desta vez, o menu anunciava, além da entrevista conduzida por dois jornalistas, uma roda de debate com quatro comentadores da casa. Inopinadamente, e quando, por fim, era eficientemente questionado, Ventura lançou uma diatribe, em forma de insulto e ataque pessoal, sobre um dos comentadores, destinada a percorrer, também em looping, as redes sociais ligadas ao Chega, mostrando como Ventura põe os comentadores do sistema na ordem. Naqueles minutos, não só não foi mandado calar (afinal, o interlocutor não era nenhum dos seus adversários políticos), como o canal, presumivelmente, já estava a salivar, medindo o pulso da audiência. Perante isto, Luís Filipe Vieira não tinha hipóteses. O caso em si não tem grande importância, mas demonstra como o líder do Chega tem o espaço mediático no bolso e como o usa a seu bel-prazer. O que explica muita coisa.

Embora já reformado há alguns anos, Luís Almeida Martins faz questão de estar, todos os dias, na redação da VISÃO, onde é uma voz sempre escutada pela sua experiência, pela sua memória inesgotável e pelo seu conhecimento enciclopédico, acumulado ao longo de quase seis décadas de jornalismo. Formalmente, o Luís já não tem qualquer ligação contratual com a VISÃO, mas se fizermos uma lista das pessoas que consideramos “cá da casa”, ele está seguramente no seu topo. Isto, pela forma como se mostra sempre disponível para aconselhar um camarada de redação sobre qualquer assunto e desfazer dúvidas sobre o estilo ou a forma correta de escrever o nome de um país ou de uma personalidade estrangeira. Depois, quando é preciso ou desafiado, tem essa rara capacidade de, em tempo recorde, se sentar em frente ao computador e escrever artigos onde sabe misturar, como poucos, o estilo literário com uma narração jornalística que prende o leitor do princípio ao fim.

Esta semana, temos mais um exemplo da qualidade da prosa do Luís Almeida Martins, com a sua evocação da Batalha de Aljubarrota, porventura o momento mais decisivo da História de Portugal. Aqui, na VISÃO, este é uma espécie de “clássico de verão”: há muitos anos que, em agosto, dedicamos a capa a um tema histórico e, em 90% dos casos, tem sido o Luís a assinar o artigo principal. É óbvio que assim seja, uma vez que ele é o autor de obras como 365 Dias com Histórias da História de Portugal e História Não Oficial de Portugal, entre outros livros, como biografias de Vasco da Gama, Serpa Pinto e Fernão de Magalhães, dedicadas ao público juvenil. Foi também fundador e diretor da revista História, entre 1978 e 1993, e editor da VISÃO História desde a sua primeira edição, em 2008.

O Almeida Martins (como assinava, simplesmente, nos primeiros anos) é um veterano de muitas redações. Iniciou-se na Flama, em 1968, deixou a sua marca no vespertino A Capital e, há 50 anos, foi um dos fundadores do semanário O Jornal que, em 1993, deu origem à VISÃO. Entre outros cargos, foi diretor do Se7e e diretor-adjunto do Jornal de Letras. Nestes anos todos, foi protagonista e testemunha de todos os momentos que fazem a vida das redações, fossem eles de alegria, de triunfo ou de desânimo. Nunca tinha, no entanto, vivido a experiência que tivemos na última quinta-feira, 31 de julho, quando a redação da VISÃO foi despejada das instalações em que se encontrava há cerca de um ano, por causa do incumprimento no pagamento por parte da empresa proprietária da revista, cuja situação financeira é pública. Precisamente no mesmo dia em que saiu para as bancas a edição com a capa dedicada à entrevista (de leitura obrigatória) a Lídia Jorge pela jornalista Margarida Davim, e que teve um acolhimento excecional por parte do público, esgotando rapidamente em muitos locais.

Esta revista que agora pode folhear e ler foi, por isso, produzida em teletrabalho, graças ao empenho de um grupo de profissionais que não querem desistir da VISÃO e insistem em manter aceso o seu compromisso com os leitores e assinantes. É com esse espírito combativo que queremos continuar. Agora, ainda mais animados com a imensa onda de solidariedade que recebemos de quem nos lê e acompanha há muitos anos, e que nos pede para não desistirmos. E se o Luís Almeida Martins que anda nisto há tantos anos já nos disse que não desiste, a nós só nos resta seguir o seu exemplo. Sempre com o apoio de quem é mais importante: os nossos leitores.

Há um sentimento muito negativo, por parte dos ucranianos, em relação às visitas do enviado especial de Trump a Moscovo para falar com Putin. Isso foi muito bem recordado pela correspondente da SIC em Kiev: sempre que se encontraram, nesse mesmo dia ou no seguinte, os russos desencadeavam um ataque maciço contra a Ucrânia. Já se teme, portanto, por esta nova visita.

Correm sempre muito bem, mas nada avança — pelo menos que se conheça — e o “menu” desta visita foi rigorosamente idêntico ao da anterior. Vamos ver no que resulta, do ponto de vista militar contra a Ucrânia, e que dados palpáveis poderão ter surgido deste encontro, sempre muito sorridente de parte a parte e com um tom apaziguador.

Curiosamente, terminado o encontro, Trump, em Washington, anunciava que iria avançar com as sanções o mais rapidamente possível. A ser assim, o passeio a Moscovo não passou disso mesmo: tudo como dantes. Trump sabe que as sanções não produzem qualquer efeito visível e não dispõe, nesta fase, de nenhuma carta forte que possa usar.

A única hipótese do presidente americano, para não sair mal desta encenação, é armar os ucranianos até aos dentes, em particular com todos os equipamentos antimíssil e anti-drone, e permitir o envio de armas mais sofisticadas, capazes de atingir a Rússia em profundidade. Por outras palavras: caso se concretize mais um forte ataque, a Ucrânia terá de responder na mesma moeda. Por espantoso que possa parecer, os russos não dispõem de muitos equipamentos sofisticados de intercepção de mísseis e drones — e essa fraqueza já foi visível. Assim sendo, Kiev aguarda por mais um ataque maciço.

6 de abril de 1384 – Batalha dos Atoleiros

O bom aluno dos ingleses

Fotos Nuno Álvares Pereira para Visão Fig. 2 – Fresco da Batalha de Atoleiros pelo pintor Jaime Martins Barata (no Palácio da Justiça de Fronteira, 1966. (Fotografia © Johan Schelfhout)

Nuno Álvares Pereira aprendeu com mercenários ingleses a tática que dizimava os franceses na Guerra dos Cem Anos e, com inteligência, aplicou-a logo na primeira batalha em que venceu os castelhanos, cerca de um ano antes do decisivo confronto de Aljubarrota

No verão de 1381, o escudeiro Nuno Álvares Pereira, de 21 anos, ao serviço do monarca D. Fernando, acompanhava mercenários ingleses nas guerras fernandinas contra Castela, onde reinava D. João I. Eram operações militares de saque, devastação de território, tomada de prisioneiros e destruição de campos de cultivo, para desmoralizar o inimigo. Mas, desses veteranos, Nuno Álvares Pereira ouviu a lição da sua vida: a receita militar inglesa que dizimava os franceses em sucessivas batalhas, na Guerra dos Cem Anos. Essa nova tática, de combate apeado, consistia na ocupação prévia do terreno da batalha, com o cuidado de verificar se havia nos lados e atrás obstáculos naturais (linhas de água, bosques, zonas de floresta ou de construção), que não permitissem a um exército maior “abraçá-los”, isto é, envolvê-los pelos flancos. Se estivessem num sítio alto, melhor ainda. Por vezes, escavavam fossos e covas de lobo à frente da sua posição, dissimulados com ramagens – se viesse um exército de cavalaria pesada, cheio de ímpeto, os cavalos começavam a tropeçar ou a empinar-se, derrubando os cavaleiros, numa amálgama caótica de homens e animais. O inimigo tornava-se um alvo fácil para a peonagem armada de lanças e, sobretudo, para os arqueiros e besteiros. Álvares Pereira tomou boa nota dos ensinamentos dos mercenários. Foi inteligente e isso consagrou-o depois como grande estratego militar português.Após a morte de D. Fernando, a 22 de outubro de 1383, associaram-se uma crise sucessória e uma “revolução”. Nuno Álvares Pereira juntou-se ao mestre de Avis (futuro rei D. João I), no partido dos segundos filhos e bastardos, que viam a sua ascensão política e social barrada pelos primogénitos. Estes, para manter o status quo, resolveram apostar no trunfo que julgavam ser mais poderoso, o rei de Castela, D. João I, que reivindicava o trono português com base no seu casamento com Beatriz, filha herdeira de D. Fernando, que aceitou o enlace quando estava já muito doente.Não houve aqui sobressaltos patrióticos, ressalvam os historiadores. Uns e outros geriam os seus interesses, explicam. O monarca castelhano invadiu Portugal, em busca do trono. Objetivo: cercar Lisboa, que o mestre de Avis se preparava para defender. Mas, antes, o líder da “revolução” nomeou Nuno Álvares Pereira “fronteiro” (ou comandante militar) do Alentejo. Era preciso um outro exército, com capacidade de manobra, que não estivesse imobilizado dentro de Lisboa, e que tentasse travar a travessia das tropas castelhanas que usavam a planície alentejana para se juntarem ao cerco da capital.

SUBORNO REJEITADO

Mal chegou a Évora, com 240 homens armados, Nuno Álvares Pereira procurou recrutar mais efetivos apeados que trouxessem uma lança ou uma besta, facas domésticas bem afiadas, partasanas (alabardas de ferro comprido, de ponta larga e perfurante), ou manguais, instrumentos para malhar cereais. Era o possível. O “fronteiro” estava a formar este exército quando soube, em Estremoz, que um contingente castelhano, a caminho de Lisboa, se encontrava a cercar a vila de Fronteira, no Alto Alentejo. Este contingente tinha cerca de mil cavaleiros, uma cavalaria ligeira de 200 ginetes e um número não apurado de peonagem e de besteiros. Por sua vez, Nuno Álvares Pereira arrancou de Estremoz com cerca de 300 cavaleiros, perto de mil peões e à volta de cem besteiros.A meio dos 20 quilómetros que separam Estremoz de Fronteira, surgiu um emissário castelhano que tentou aliciar o “fronteiro” com generosas recompensas se desistisse e passasse para o lado onde se encontrava o seu irmão mais velho, Pedro. Nuno Álvares Pereira pô-lo a andar. Os castelhanos só deixaram os preparativos do cerco quando o emissário chegou com a resposta, o que permitiu a Álvares Pereira começar a aplicar, com rigor, a receita inglesa: escolheu o local da batalha, numa pequena herdade em Atoleiros, perto de Fronteira. O terreno estava cortado ao meio por uma linha de água de uma ribeira (o mês era abril, devia estar bem nutrida), o que quebrava o ímpeto do ataque inimigo. E o próprio topónimo Atoleiros indica solo alagadiço. Toda a tropa do “fronteiro” iria combater a pé, tomando posição num pequeno cabeço, estreito e não muito alto, com cerca de 200 metros de largura, sobre a linha de água. Dispôs a sua vanguarda com lanceiros, colocou nas alas os atiradores com besta, e na retaguarda uma força de apoio. E, mais atrás, estariam outros besteiros que se encontravam num ponto mais alto, dez a 15 metros acima da linha de água, e que podiam disparar os seus virotões por cima das cabeças dos seus companheiros.Foi este dispositivo que os castelhanos encontraram à sua espera. Seguiram o modelo francês: o ataque todo feito a cavalo, embora em pequenos esquadrões de dez a 15 homens, de cada vez. Os grupos iam-se sucedendo, mas tinham de atravessar a ribeira e o terreno empapado, e depois subir, para chegar ao contacto com o exército de Nuno Álvares Pereira

Tudo lhes quebrava o ímpeto. Os cavalos tropeçavam e não avançavam, os que vinham atrás chocavam com eles, que se empinavam, e eram logo atingidos pelos tiros dos besteiros, e os cavaleiros que conseguiam chegar ao contacto com a vanguarda portuguesa tinham combatentes apeados com lanças apontadas aos peitos dos animais a recebê-los.

A batalha terá demorado, no máximo, duas horas – tempo suficiente para a chacina do exército castelhano, apanhado pela surpresa e pelo pânico.Esta vitória sobre um exército bem mais poderoso, mas que, afinal, não era invencível, daria um ânimo tremendo a quem estava encerrado em Lisboa, com o mestre de Avis, a resistir ao cerco do rei de Castela. Foi através de sinais de fogo que Nuno Álvares Pereira, a partir de Almada, transmitiu a boa nova ao mestre.Em setembro de 1384, porém, Lisboa estava nas últimas, após cerca de quatro meses de cerco por terra e mar. Se caísse, isso significava a derrota da causa “revolucionária”. Eis, no entanto, que um surto de peste atacou em cheio o acampamento dos 20 mil castelhanos. Os sitiantes morriam às dezenas por dia. Ao monarca invasor não restou outra alternativa senão levantar o cerco e retirar-se cabisbaixo para Castela.

Nuno Álvares Pereira juntou-se ao mestre de Avis, no partido dos segundos filhos e bastardos, que viam a sua ascensão barrada pelos primogénitos

29 de maio de 1385 – Batalha de Trancoso

A união fez a força

Nobres que contestaram a eleição do mestre de Avis como rei, e que por isso receberam um sério aviso de Nuno Álvares Pereira, acabaram por ser cruciais na derrota de mais uma investida castelhana, a menos de três meses da grande batalha de Aljubarrota

É hoje consensual que a eleição do mestre de Avis como rei, a 6 de abril de 1385, nas cortes de Coimbra, enquanto D. João I, se deve à argúcia jurídica de João das Regras e à demonstração de força de Nuno Álvares Pereira (dali saiu, aos 24 anos, como Condestável e Mordomo-Mor do Reino), que inundou a cidade com 300 escudeiros armados até aos dentes. Ainda assim, Martim Vasques da Cunha, porta-voz de um grupo de grandes senhores da Beira, ousou contestar a elegibilidade régia do mestre. Estes fidalgos, conservadores e avessos a “revolucionários”, eram partidários da candidatura do infante D. João de Castro, filho de D. Pedro I e D. Inês de Castro. Não era, porém, uma solução lá muito viável: D. João de Castro tinha caído numa armadilha que lhe fora montada pela rainha D. Leonor Teles, que o instigou a matar a sua mulher, Maria Teles (irmã da própria Leonor), por supostas infidelidades, ao mesmo tempo que lhe dava esperanças de poder vir a casar-se com Beatriz, filha herdeira do meio-irmão e rei D. Fernando (sua sobrinha, portanto), numa espécie de “via verde” de acesso ao trono. O infante exilou-se depois em Castela, para fugir às consequências do crime, e, mal D. Fernando ficou moribundo, o rei castelhano prendeu-o, para não lhe fazer sombra na sucessão pela qual também lutava. Nada que perturbasse os senhores da Beira, que defenderam o mais que puderam, nas cortes de Coimbra, a candidatura de D. João de Castro. A ponto de, furioso, Nuno Álvares Pereira se virar para o mestre e dizer-lhe, em voz alta: “Já vou calar aqui o roncador do Martim Vasques da Cunha.” Foi o suficiente para o fidalgo abandonar a reunião.No entanto, o grupo partidário de D. João de Castro seria valente no mês seguinte. Após lamber as feridas da derrota de 1384, o monarca castelhano, também designado como D. João I, voltou à carga, sempre com o objetivo de tomar Lisboa. A frota marítima cercaria outra vez a capital, o rei sitiava Elvas e um contingente de capitães, percorrendo a estrada da Beira, saquearia tudo o que pudesse até Viseu. O monarca castelhano saiu-se mal, uma vez mais. Embora a frota tenha bloqueado Lisboa pelo mar, Elvas não caiu nas mãos de D. João I, que se retirou para Ciudad Rodrigo. Só o saque da Beira pareceu estar a correr bem: ao longo de 15 dias, umas centenas de capitães castelhanos (apoiados por ginetes, besteiros e peões) fizeram cerca de 150 quilómetros em território português, e em Viseu, que incendiaram, realizaram um roubo monumental.

ESTADO-MAIOR DECAPITADO

Quando regressavam a Castela, recheados de bens saqueados e prisioneiros, tiveram uma surpresa junto a Trancoso. Um exército português em autogestão, formado por 340 homens de armas bem equipados e por cerca de mil peões e besteiros, comandados pelos senhores da Beira (entre os quais o “roncador” Martim Vasques da Cunha), intercetou-os na estrada que os levava a Pinhel, perto da fronteira. Porém, os castelhanos não quiseram combater. Desviaram-se em direção à população de Freches, para depois retomarem a mesma estrada. O exército português mudou também de posição, e fixou-se junto à Ermida de S. Marcos. E regressava a “receita” inglesa: os castelhanos eram obrigados a combater num terreno que o inimigo escolheu, com uma frente de 200 metros, que dava para poucos efetivos, e o flanco esquerdo protegido pela ermida. Havia ainda um declive frontal acentuado em relação à posição portuguesa e também num dos lados, que dificultava o envolvimento por parte do inimigo.Foi um combate todo apeado (os castelhanos lembraram-se da “lição” de Atoleiros), que durou várias horas, e em que os fidalgos sobreviveram e os bem preparados capitães de D. João I acabaram dizimados. Para lá do “receituário” inglês, historiadores admitem que uma parte dos prisioneiros que os castelhanos traziam tenha conseguido libertar-se, podendo, nesse caso, ter atacado o inimigo por trás, como por vezes sucedia. Documentada está a decapitação do estado-maior castelhano: muitos dos seus melhores quadros militares morreram no cerco de Lisboa, ou em Atoleiros, ou na batalha de Trancoso.

14 de janeiro de 1659 – Batalha das Linhas de Elvas

Heróis desconhecidos

batalha linhas de elvas 1662

O primeiro contra-ataque de Filipe IV de Espanha, para reconquistar a coroa portuguesa, foi violentíssimo. Mas acabou vencido por homens que só “merecem” uma nota de rodapé na nossa História

Já tinham passado mais de 18 anos sobre a Restauração da monarquia portuguesa, após a revolta de 1 de dezembro de 1640 que terminou com seis décadas de “domínio filipino” espanhol, que havia juntado as duas coroas, mas Filipe IV não esqueceu nem perdoou. Quis voltar a ser Filipe III de Portugal.O primeiro rei depois da Restauração, D. João IV (antes duque de Bragança), morrera há cerca de três anos, o seu herdeiro, D. Afonso VI, ainda era menor e a regência do trono português estava entregue a uma… sevilhana, a rainha viúva D. Luísa de Gusmão. Confusos? Desfaça-se já a perplexidade: D. Luísa de Gusmão irá enfrentar a violência imperialista do compatriota com estoicidade.Quando ordenou o ataque à fortaleza de Elvas, Filipe IV fê-lo em grande e em força. Dez mil homens de infantaria e três mil de cavalaria espalharam-se por uma linha de cerco com 18 quilómetros. Mais: as suas trincheiras, que faziam a ligação a uma série de fortificações, estavam preparadas para suportar os ataques que vinham da fortaleza para fora e do contingente português de socorro. Era, pois, uma força com dupla proteção. A isto somou-se a habitual inferioridade numérica dos combatentes portugueses: oito mil homens de infantaria e três mil de cavalaria.

D. Sancho Manuel era o comandante da sitiada praça de Elvas. E D. António Luís de Menezes era o chefe da força de socorro. São estes dois homens, quase ignorados na “grande” História, que vão liderar o confronto com o poderoso exército espanhol numa batalha que durou dez horas, das nove da manhã às sete da tarde, e derrotá-lo. Segredo da vitória: atacaram um ponto da linha inimiga, com cinco fortins e outros tantos quilómetros, e furaram o cerco.Mas, mesmo no final da batalha, o exército português perdeu um dos seus melhores oficiais à época. André de Albuquerque Ribafria, que comandava a força de socorro no terreno, não resistiu a um ferimento causado por um tiro de mosquete.

D. Sancho Manuel e D. António Luís de Menezes, ignorados pela “grande” História, foram os dois homens que lideraram o confronto contra os espanhóis

8 de junho de 1663 – Batalha do Ameixial

Um primeiro-ministro decisivo

O conde de Castelo Melhor chegou ao poder com um golpe palaciano, mas revelou-se um governante à altura dos tempos de guerra, travando as ambições invasoras de Filipe IV de Espanha

Foi D. Luísa de Gusmão quem chamou para junto de si, no Governo, Luís de Vasconcelos e Sousa, conde de Castelo Melhor. Era uma boa escolha, mas da qual a rainha viúva se arrependeria amargamente. Em julho de 1662, o conde faria triunfar um golpe palaciano, que resgatava um “boneco” chamado D. Afonso VI, filho herdeiro de D. João IV, e afastava D. Luísa de Gusmão do poder, ao cabo de seis anos de regência. Então com 20 anos, D. Afonso VI já tinha mostrado que não servia para o que o destino lhe reservara. Há relatos de que, logo em bebé, fora atacado por uma misteriosa “febre maligna” que deixaria sequelas para sempre. Historiadores também referem que fugia do palácio real para se “misturar com pessoas menos dignas nas tabernas e prostíbulos, e era muito influenciável”. Acrescentam: “Era dissoluto e inepto, mas como consequência das suas incapacidades físicas e mentais.”

D. Afonso VI delegou todos os poderes no conde de Castelo Melhor, que se tornou dono e senhor do reino. Para lá de Inglaterra, Luís de Vasconcelos e Sousa estreitou relações com a França do “Rei-Sol” Luís XIV, a cujo estado-maior foi recrutar um general alemão com as melhores referências, o conde de Schomberg. E o estratego alemão mostrou logo o seu génio militar naquele que foi, talvez, o momento mais perigoso para Portugal na Guerra da Restauração. Um poderoso exército de Filipe IV entrou em território nacional, tomou Évora, pretendia avançar para Lisboa, mas acabou por ir ao encontro da força de socorro portuguesa, no Ameixial, a norte de Estremoz.Schomberg deixou que os espanhóis se instalassem nas posições que escolheram. Depois, pôs a infantaria portuguesa em duas colinas, e no vale colocou a cavalaria. Foi ao pôr do Sol que o general alemão atacou o exército espanhol, com investidas de cavalaria no vale (onde também se encontrava a cavalaria inimiga), e de infantaria, constituída por mercenários ingleses, sobre a infantaria do invasor, igualmente instalada em colinas. O confronto foi curto: durou cerca de 60 minutos e terminou ainda antes de anoitecer.Do lado espanhol estiveram envolvidos 12 mil homens de infantaria e 6 500 de cavalaria. Pelo lado português combateram 11 mil homens de infantaria e três mil de cavalaria. Historiadores militares destacam a “hora imprópria” escolhida para a batalha, que se trava normalmente de manhã ou durante o dia. Ou seja, com algumas horas de luz pela frente, por forma a possibilitar um resultado percetível. Mas foi esse o fator surpresa que determinou o desfecho vitorioso para o exército português.

Foi no estado-maior de Luís XIV que o conde de Castelo Melhor recrutou um general alemão com as melhores referências, o conde de Schomberg

17 de junho de 1665 – Batalha de Montes Claros

Guerra moderna “avant-garde”

Batalhas Historicas de Portugal – Batalha de Montes Claros Roque Gameiro, Quadros_da_Historia_de_Portugal1917)

O general alemão Schomberg, com um golpe de génio, salvou em definitivo Portugal da ameaça invasora espanhola, mas, depois, o conde de Castelo Melhor caiu em desgraça, o rei Afonso VI foi condenado pelo “crime” de impotência sexual e o caminho do trono abriu-se ao irmão conspirador, D. Pedro

Na derradeira tentativa que fez para subjugar Portugal pela força, Filipe IV colocou à frente do seu exército invasor um dos melhores generais que tinha: o marquês de Caracena. Nesta última batalha, travada perto de Borba, o general alemão Schomberg escolheu o terreno de combate que mais lhe convinha, após efetuar um reconhecimento. Tinha alguma na manga, claro.E a surpresa que reservou para Caracena foi a de lhe colocar a apenas 50 metros de distância seis peças de artilharia, de quatro e seis libras de calibre (uma libra corresponde a quase meio quilo). Mas, dizem historiadores militares, “o grande segredo, e génio, de Schomberg está no emprego daquilo a que, modernamente, chamamos de ‘armas combinadas’”. Ou seja, a utilização articulada de infantaria, cavalaria e artilharia. Enquanto os espanhóis pensavam em romper o flanco direito português com um ataque de cavalaria, colocando-a toda no seu flanco esquerdo e separando a cavalaria, à esquerda, da infantaria, à direita, Schomberg respondeu posicionando a cavalaria intercalada com a infantaria e com as peças de artilharia pelo meio, explicam os especialistas. Assim, seria a ação conjugada da infantaria e da cavalaria, com o apoio dos fogos de artilharia a curta distância, a quebrar o ímpeto do ataque espanhol por duas vezes. Mais: permitiu aos portugueses contra-atacar eficazmente e vencer a batalha. Não se julgue, porém, que foi tiro e queda. O confronto prolongou-se por dez horas, com o envolvimento de grandes efetivos. Do lado espanhol encontravam-se 15 mil homens de infantaria e 7 500 de cavalaria. O lado português estava, claro, em inferioridade numérica: 15 mil homens de infantaria e 5 500 de cavalaria.No palco político, o conde de Castelo Melhor seria traído pela sua ambição. Em 1666, com 23 anos, Afonso VI casou-se com Maria Francisca Isabel de Sabóia, neta do antigo rei Henrique IV de França e, portanto, aparentada com o “Rei-Sol” Luís XIV. A união fora negociada por Castelo Melhor, que perseguia a ideia de, após a derrota de Espanha, ver França anexar os Países Baixos espanhóis (a Flandres) e reservar a Galiza para Portugal. No entanto, Afonso VI não conseguiu consumar o ato sexual durante os 15 meses que durou o casamento, deixando o trono sem herdeiro. A rainha envolveu-se então com o cunhado, D. Pedro, e ambos iniciaram uma conspiração para destituir D. Afonso VI, através da abertura de um processo sobre a sua virilidade. Acusado, julgado e condenado pelo “crime” de impotência sexual, D. Afonso VI seria deportado para Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, onde ficou preso numa sala de um quartel militar. Depois recambiaram-no para o Continente e fecharam-no numa outra sala, no Palácio da Vila, em Sintra. Assim “viveu”, enlouquecido, entre 1667 e 1683, ano em que morreu de uma suposta crise cardíaca.Por isso, é mentiroso o frontispício do Tratado de Paz de Lisboa, assinado a 13 de fevereiro de 1668, pelo qual Espanha renuncia, em definitivo, à conquista de Portugal. Ali, em letras garrafais, lê-se que Afonso VI foi o soberano português que subscreveu o documento. No interior, a assinatura é a do irmão D. Pedro, na qualidade de “regente”. Desfecho mais do que previsível: após a morte de Afonso VI, o irmão conspirador subiu então ao trono, com o nome de D. Pedro II, e casou-se com a ex-cunhada, Maria Francisca – que foi assim duas vezes rainha de Portugal. E tudo voltou a ficar bem.

Não há dúvida de que há uma batalha que todos os portugueses conhecem, nem que seja só por terem ouvido falar dela: é a de Aljubarrota. Pois bem, esse grande confronto militar entre portugueses e castelhanos, que teve uma importância decisiva para a manutenção da independência do nosso país e que veio confirmar que a ideia de nacionalidade existia e era forte entre as classes populares, ocorreu faz agora – 14 de agosto –  640 anos. O teatro das operações foi o campo chamado de S. Jorge, perto da pequena localidade de Aljubarrota (concelho de Alcobaça, distrito de Leiria, antiga província da Estremadura), e as espadas e lanças começaram a tilintar ao entardecer desse quente dia de verão de 1385. A refrega, ainda que violenta, durou pouco tempo e, num sentido contrário ao das apostas (se as tivesse havido…), os portugueses, embora em muito menor número, triunfaram sem qualquer margem para dúvidas, a tal ponto que durante décadas os castelhanos não se recompuseram da pesada derrota sofrida. Convém desde já recordar que nesse tempo ainda não existia um Estado chamado Espanha, estando o território do país hoje nosso vizinho repartido pelos reinos de Castela, Aragão, Navarra e Granada (este último, muçulmano). Castela, o maior de todos e fazendo fronteira com Portugal, era o que representava a ameaça para a independência do nosso país. 

A Batalha de Aljubarrota foi a que mais peso teve na nossa História, pois permitiu que Portugal não fosse absorvido pela Coroa castelhana e, mais tarde, integrado na Espanha unificada. Insista-se que esta não foi “uma batalha qualquer”: se o desfecho tivesse sido o oposto, tudo o que se passou do século XIV para cá na Península Ibérica teria sido diferente e talvez a própria expansão ultramarina (vulgo “os Descobrimentos”) não se tivesse passado da forma como ocorreu. Basta lembrar que Portugal se lançou nos mares por estar de costas voltadas para Castela e o oceano Atlântico ser a única via livre que se lhe abria. E que os nossos vizinhos só se lançaram também nessa via quando Colombo viu por cá recusada a sua proposta de chegar à Índia navegando para oeste e foi bater à porta do lado oferecendo os seus serviços.

Batalha de Aljubarrota O confronto luso-castelhano segundo uma gravura inglesa pouco posterior ao acontecimento 

Vejamos então. Nesse verão quente de 1385, o exército invasor de Portugal, com o próprio rei João I de Castela à frente (ou, antes, a meio, pois vinha doente com febres e era transportado de liteira), entrara em Portugal pela pedregosa e agreste província da Beira Alta. Essa força era integrada por uns 32 mil homens, incluindo muitos cavaleiros franceses, aliados de Castela no quadro de um conflito europeu mais vasto que então se travava, e que ficaria conhecido por Guerra dos Cem Anos. O que é pouco frequente referir-se é que também faziam parte do exército invasor muitos nobres portugueses, entre os quais o próprio irmão do condestável D. Nuno Álvares Pereira, o célebre comandante da força portuguesa que se opôs aos invasores e uma das figuras de referência da História nacional. Com efeito, se, para os burgueses e os pés descalços, a luta era pela independência, para os fidalgos não passava de um choque de lealdades: a que era devida ao “legítimo” rei castelhano e à sua esposa infanta de Portugal contra a que os do partido revolucionário tinham jurado ao novo rei eleito primeiro pelo povo e depois confirmado nas Cortes de Coimbra, D. João, o Mestre de Avis (que, por mera casualidade, tinha o mesmo nome do soberano de Castela, ainda que em boa verdade este se chamasse, obviamente, Juan). Mais adiante se explicará toda esta conjuntura, que não é tão complicada como parece.

Os combatentes portugueses eram “rebeldes”, ou “marginais”, pois não passavam de uma fação composta por alguns fidalgos e por plebeus, na maioria pobres

Os invasores traziam consigo 16 trons, ou seja, canhões, armas que por cá nunca tinham sido usadas. É certo que se tratava de uma artilharia muito rudimentar, que fazia mais barulho do que estragos. Na sua marcha para Lisboa, tentaram tomar Coimbra, mas não conseguiram, desaire de que depois se desforraram entrando em Leiria e saqueando a cidade. O seu exército era tão grande que se tornava difícil mantê-lo todo junto, pelo que, a 30 de julho, a vanguarda fez alto em Abrantes, a fim de esperar pelos mais atrasados. Era como uma enorme e colorida fita que se estendia por muitos quilómetros.

Do ponto de vista tático, os resistentes portugueses – podemos chamar-lhes rebeldes, ou mesmo “marginais”, pois não passavam de uma fação composta por meia dúzia de fidalgos de ideias consideradas estranhas e por plebeus, na sua maioria pobres – estavam hesitantes e algo divididos. Enquanto o novo rei de Portugal, D. João I, então com 28 anos, montava acampamento perto do Tejo e se dispunha a esperar a chegada de prometidos reforços ingleses (no quadro da tal Guerra dos Cem Anos), o seu amigo e “braço direito” condestável D. Nuno Álvares Pereira, que guardava a estrada do Alentejo, propôs que se desse imediatamente batalha aos invasores. Do João I acabou por concordar, e ao encontro da imponente máquina de guerra castelhano-francesa partiu, então, uma pequena coluna portuguesa de aproximadamente seis mil homens, comandada por D. Nuno.

Escreveu-se que D. João I “acabou por concordar”, o que dá a entender que houve reticências da sua parte. É verdade, pois há outra coisa que normalmente não é dita. Custe ou não a admiti-lo, por essa altura já D. João I meditava sobre o partido que havia de tomar, olhado alternadamente para o seu frágil e ameaçadíssimo trono português e para a relativa segurança que poderia obter das bandas de Castela, se se mostrasse arrependido do ato de “rebeldia” contra o “legítimo” herdeiro do trono. Outra possibilidade seria embarcar para Inglaterra. A impulsividade e a convicção na vitória por parte de Nuno Álvares acabaram, no entanto, por o ajudar a decidir-se. Ficou – talvez mais por vergonha de dar o dito por não dito do que por outro motivo, mas viria a lucrar enormemente com isso. Hoje, D. João I é considerado um rei basilar na nossa História, a ponto de ter merecido o cognome de O de Boa Memória.

Voltando à batalha que se anunciava. Pensa-se hoje que talvez os invasores não fossem os 32 mil que durante muito tempo se julgou, nem os portugueses resistentes os seis mil consagrados pela versão corrente, mas a desproporção das forças era, decerto, enorme. A tropa portuguesa anticastelhana incluía uns 800 besteiros e ainda um destacamento de 200 arqueiros ingleses, arregimentados ao abrigo da aliança anglo-lusa assinada em 1373, ainda no tempo do rei D. Fernando, de que adiante se falará. A maior parte do exército era, no entanto, constituída por peões, homens do povo de pé descalço e meio despidos que lutavam com um ferro aguçado chamado chuço. O grande cronista Fernão Lopes – que nos deixou toda esta história contada nas suas magníficas crónicas de D. Fernando e D. João I – chamou-lhes “ventres ao sol”, porque quase todos, atendendo quer à pobreza, quer ao calor de agosto, estavam em trono nu.

Imaginemos, pois, de um lado garbosos cavaleiros de armadura e elmo empenachado montados em cavalos cobertos de panos coloridos e empunhando longas lanças semelhantes às de torneio, e do outro uns desgraçados seminus, cobertos de suor e com os pés descalços fincados no chão que tinham resolvido defender.

Terreno minado

O que fez D. Nuno Álvares Pereira para minimizar o desequilíbrio das forças? Ao ter conhecimento de que a vanguarda dos invasores, que avançavam em fila indiana muito lentamente, se encontrava perto de Leiria, ordenou que fossem construídas trincheiras num pequeno planalto (o campo de S. Jorge) que lhe pareceu adequado para ser palco de uma batalha. Ali cavaram os seus portugueses “marginais” uns buracos, ditos “covas de lobo”, semelhantes às armadilhas com que os homens de tempos imemoriais caçavam mamutes. Mas as forças portuguesas dispuseram-se primeiro numa das vertentes da colina, só mudando para as posições defensivas quando, por volta do meio-dia de 14 de agosto, avistaram a vanguarda dos inimigos, que avançavam imponentemente pelo que restava de uma antiga estrada do tempo dos romanos (a Via Lusitanorum).

D. João I Uma imagem idealizada do rei português que derrotou os castelhanos e inaugurou a dinastia de Aviz

Os castelhanos, como se compreende, acharam que combater contra inimigos entrincheirados e numa posição mais elevada era muitíssimo desvantajoso, e por isso decidiram seguir rumo a Lisboa, ignorando aquele punhado de portugueses sujos e malcheirosos. Foi então que estes últimos, dececionados, começaram a gritar, chamando os inimigos ao combate e insultando-os com os piores nomes. Isto acabou por fazê-los mudar de ideias. Afinal, pensaram os invasores, se deixassem nas costas a pequena força portuguesa poderiam ainda vir a ter dissabores, pelo que o melhor seria resolverem desde logo a questão, dando-lhe combate e vencendo-a. Decidiram, assim, contornar o pequeno planalto e lançar o ataque num ponto onde o declive era menos acentuado. Mas isso era exatamente o que D. Nuno Álvares Pereira e a sua gente esperavam: alteraram logo o seu posicionamento e, escudando-se nas defesas construídas durante a noite, aguardaram a pé firme o ataque da cavalaria franco-castelhana, lançado quando o sol começava já a declinar.

De um lado, cavaleiros de armadura e elmo empenachado; do outro, uns desgraçados em tronco nu, a que Fernão Lopes chamou “ventres ao sol”

Por espantoso que pareça, a batalha – destinada a ter tão grandes consequências – resolveu-se em cerca de uma hora, e saldou-se pelo esmagador triunfo dos “ventres ao sol” e a consequente derrota total dos castelhanos, franceses e nobres portugueses que estavam do outro lado. Rezava a tradição que o pequeno exército português tinha formado em quadrado e que um dos lados desse polígono era constituído pela garbosa Ala dos Namorados; modernamente, sabe-se, porém, que não foi bem assim e que foram cavadas no terreno as tais armadilhas em que os inimigos caíram. Terão morrido nessa hora decisiva uns mil homens do lado dos defensores do território português e cerca de cinco mil invasores. Os sobreviventes castelhanos e franceses (e portugueses que estavam desse lado, não o esqueçamos), que mesmo assim ainda eram muitíssimos, debandaram em desordem, cada qual para seu lado, deixando as armas para trás. Muitos dos fugitivos, soltando gritos de pavor, foram chacinados pela população das aldeias da zona, e na manhã seguinte eram tantos os cadáveres espalhados pelos campos que diz-se que as ribeiras ficaram entupidas. É aqui que entra o célebre episódio da padeira de Aljubarrota (ler caixa A padeira serial killer).

O rei cata-vento

É altura de explicar como se chegou a esta situação, contando os acontecimentos que levaram até à célebre batalha. Afinal, por que motivo se achava o rei João I (ou Juan I) de Castela com direito ao trono português? Para entender tudo, é preciso recuar ao tempo em que reinava em Portugal D. Fernando, filho de D. Pedro I e da nobre castelhana D. Constança Manuel. No trono desde 1367 e cognominado O Formoso, diz-se que D. Fernando era pessoalmente muito simpático e que as mulheres suspiravam por ele. Sob muitos aspetos foi, porém, um governante desastrado, apesar de ter tomado algumas medidas positivas.

Comecemos pelo mau. As três guerras peninsulares em que, sucessivamente, se envolveu, custaram muitas vidas e tiveram consequências desastrosas para a economia nacional, embora também seja verdade que da reação a elas haveria de nascer um País novo. Vejamos como surgiram essas chamadas “Guerras Fernandinas”.

A padeira “serial killer” 

Conta a lenda que sete soldados castelhanos em fuga do campo de batalha se esconderam, mesmo ao sol-posto, no forno de uma padaria da região de Aljubarrota. A dona da padaria chamava-se Brites de Almeida e, sendo literalmente uma mulher de armas, saíra durante umas horas para caçar castelhanos em fuga. Muitos habitantes da zona tinham, aliás, feito o mesmo, transformando o pós-batalha numa verdadeira chacina. Ao regressar a casa, Brites deparou com os indesejados hóspedes e matou-os um a um com a sua comprida pá de padeira, de ferro com longo cabo de pau, à medida que eles iam saindo do forno.

     Correm muitas histórias em torno da figura de Brites de Almeida. Diz-se que era uma algarvia de Faro com seis dedos em cada mão, muito feia e muito forte. Conta-se também que vivera diversas aventuras na Europa e no Norte de África. Mas o que a memória popular sobretudo reteve foi a sua faceta de serial killer. Todos os portugueses ouviram falar da “padeira” e a maioria pensa vagamente que foi ela que derrotou “os espanhóis” (que, como sabemos, eram apenas “os castelhanos”, visto ainda não existir Estado espanhol) na mais famosa batalha da nossa História. Mas, afinal, mesmo que a lenda corresponda a um facto verdadeiro, Brites de Almeida “limitou-se” a matar sete castelhanos indefesos, assustados e imersos num ambiente hostil.

Pouco antes, em Castela, o rei Pedro O Cru (contemporâneo do nosso D. Pedro O Justiceiro, pai de D. Fernando) tinha sido assassinado pelo seu irmão Henrique, conde de Trastâmara, que lhe sucedeu no trono com o nome de Henrique II. Descontentes com o ocorrido, alguns fidalgos castelhanos vieram a Lisboa e puseram-se à disposição de D. Fernando caso ele estivesse disposto a alinhar numa guerra destinada afastar o Trastâmara do trono vizinho e a sentar-se ele próprio nele. Esta iniciativa dos fidalgos negociadores não foi completamente inesperada nem descabida, visto D. Fernando ser bisneto, por via materna, do antigo rei castelhano Sancho IV.

O Formoso nem pensou duas vezes. Aceitou logo e imaginava-se já instalado no trono de Castela, revestido dos atributos de soberano mais poderoso da Península. A ilusão era perfeita, pois teve a satisfação de ver muitas localidades castelhanas içarem a sua bandeira – Zamora, Cidade Rodrigo, Santiago de Compostela, Tui, Orense, Lugo, Corunha, Baiona, Cória, etc. A contar com o ovo antes de a galinha o ter posto, mandou logo cunhar moeda com a legenda “Fernando Rei de Portugal e Castela” e, ocupado como estava com estas comemorações antecipadas, não se preparou convenientemente para a guerra. Contudo, alguma coisa fez: por medida de segurança, aliou-se ao rei mouro de Granada, com o qual estabeleceu uma paz válida por 50 anos, e com o rei de Aragão, comprometendo-se com ambos a não fazer as pazes com Castela.

Para nos ajudar a visualizar as cenas, lembremos que tudo isto acontecia na altura em que os nobres tinham passado a usar a cara rapada e um penteado com feitio de tigela. Consta que D. Fernando, usasse ou não o tal corte de cabelo (não possuímos um retrato fidedigno para o confirmar), tinha boa aparência física e que, como já se disse, esse atributo lhe garantia o sucesso junto das damas.

Em 1371, ao cabo de dois anos de campanhas militares contra Henrique de Trastâmara, D. Fernando viu-se forçado a aceitar a Paz de Alcoutim. Volvido outro par de anos, o mesmo Henrique de Trastâmara conseguiria conquistar e incendiar parcialmente Lisboa e só acedeu a evacuar o território português depois de ter assinado as vantajosas condições da Paz de Santarém.

Nesta época, os franceses e os ingleses andavam envolvidos na já várias vezes referida Guerra dos Cem Anos, ao mesmo tempo que revoltas camponesas alastravam no Norte de uma Europa ainda convalescente da devastação levada a cabo pela peste negra de 1347-1351. Portugal, mesmo que quisesse manter-se alheado do grande conflito anglo-francês, não o conseguiria, e já vimos que D. Fernando não gostava de ver as armas a enferrujarem penduradas nas paredes. Sendo assim, as guerras peninsulares acabavam por ser reflexos dessa outra, maior, que se travava para lá dos Pirenéus. Vejamos um exemplo: Henrique de Trastâmara contava com o apoio de França, enquanto Pedro O Cru era um homem dos ingleses. Aliás, na guerra que os opôs e em que O Formoso entrou alegremente, defrontaram-se mercenários comandados pelo condestável francês Bertrand du Guesclin e archeiros ingleses do Príncipe Negro, filho de Eduardo III de Inglaterra.

Entretanto, D. Fernando fazia e desfazia promessas de casamento, ao sabor das alianças de circunstância. Primeiro, quando era inimigo de Castela, combinara desposar a infanta Leonor de Aragão. Depois, feitas as Pazes de Alcoutim, pediu a mão de uma infanta castelhana, também chamada Leonor. Para complicar, desmanchado o primeiro noivado e com a segunda futura mulher já em Portugal, acabou por se casar, meio às escondidas, na discreta igreja de Leça do Balio, com uma portuguesa de quem o povo não gostava e a quem chamava Aleivosa. O nome dela? Leonor Teles. Leonor também! Esta “aleivosa”, para o efeito, divorciara-se do marido, o fidalgo beirão João Lourenço da Cunha. A escolha do local da discreta boda, a norte do Porto, o mais longe possível de Lisboa, foi, aparentemente, para “ninguém” ver. É que os habitantes da capital, liderados pelo alfaiate Fernão Vasques, tinham protestado energicamente contra aquela ligação e exigiam que o rei cumprisse a sua palavra e desposasse a princesa castelhana. Onde já se tinha visto uma rainha portuguesa ser de condição inferior à do rei e ainda por cima divorciada de um súbdito dele?

Voltando às guerras, em 1381 seria a vez de o cata-vento D. Fernando pegar em armas contra o novo rei João I de Castela. Este terceiro conflito terminaria depressa, com a combinação do casamento da pequena infanta portuguesa Beatriz (ou Brites, como então se dizia), de 8 anos, única herdeira de D. Fernando (filha dele e de Leonor Teles), com o soberano vizinho. Significava isto que, a médio prazo, o rei de Castela seria também rei de Portugal. Depois de D. Fernando se ter imaginado, com alguma precipitação, soberano de Castela, a situação sofria uma reviravolta completa.

Para compreendermos melhor as indecisões matrimoniais e os entusiasmos afetivos de D. Fernando, convém que façamos um flashback no flashback.

Cortes de Coimbra de 1385 Ali foi D. João I oficialmente proclamado rei de Portugal, depois de a sua candidatura ter sido defendida por João das Regras

Atrações fatais

Quando já tinha o casamento combinado com Leonor de Castela e ainda não conhecia Leonor Teles, D. Fernando coabitava com uma meia-irmã, chamada Beatriz (Brites), filha do falecido rei D. Pedro e da famosa Inês de Castro (cuja história não cabe aqui recordar). Presume-se que a moça fosse tão enfeitiçante como a mãe, pois o rei não resistia aos seus encantos. Eram irmãos, mas não era a primeira vez que tais coisas aconteciam, nem seria a última…

O feliz “casal” morava no Paço de A-Par-de S. Martinho, que era na época a residência oficial do rei. O edifício já não existe, mas o que ocupa o seu lugar é conhecido dos lisboetas: trata-se do atual Centro de Estudos Judiciários (CEJ), um pouco acima da Sé, e até há umas décadas Cadeia do Limoeiro. Este nome vem, aliás, de uma árvore que havia no interior do antigo palácio real e em cuja sombra talvez D. Beatriz (ou Brites, como se queira) tagarelasse com as suas damas de companhia.

Franceses e ingleses andavam envolvidos na chamada Guerra dos Cem Anos, e o confronto luso-castelhano também pode ser visto no âmbito desse conflito

De qualquer modo, a relação estava destinada a durar pouco tempo, visto que o rei não tardaria a deixar-se encantar por uma dessas damas, Maria Teles de sua graça. Contudo, a história não termina aqui – longe disso. Estava ainda para entrar em cena a verdadeira protagonista: a já referida Leonor Teles.

Essa entrada da femme fatale ocorreu em 1371, num dia que mudou a vida de D. Fernando e do próprio País. Leonor, então com 21 anos e casada com o já aludido fidalgo João Lourenço da Cunha (com quem tivera um filho, apesar de serem primos), foi ao paço visitar a irmã e cruzou-se com o rei. Muito perturbado, esquecido da meia-irmã, da aia desta, da infanta castelhana e de todos os compromissos em geral, o pobre Fernando foi abrir o coração a Maria e ao tio das duas Teles, que também vivia em Lisboa. Ambos lhe disseram que Leonor era mulher para se deixar conquistar pelo rei, sim, mas apenas de uma forma pública e assumida. Ou seja, desde que se tornasse rainha. Para O Formoso isso não constituiu problema: casar-se-ia com ela, e a infanta castelhana que se deixasse ficar na sua terra. Havia ainda o obstáculo do marido de Leonor Teles, mas este problema resolveu-se por si mesmo quando o pobre João Lourenço da Cunha achou por bem exilar-se em Castela.

Entretanto, em Lisboa, o rei e Leonor Teles passaram a comportar-se como um casal, para grande irritação popular. No ano seguinte a terem-se conhecido, casaram-se então em segredo no já referido mosteiro de Leça e passados meses nascia a infanta Beatriz, a tal que um dia estaria destinada a dar o nó com João I de Castela.

Pese embora a má vontade do povo, os primeiros tempos de casado não correram mal a D. Fernando, visto que o reino era próspero e chegou até a assinar-se, em plano de igualdade, a tal aliança com Inglaterra, destinada a durar até hoje, apesar de normalmente não darmos por isso. 

E há males que vêm por bem, pois nesse tempo da Guerra dos Cem Anos a escolha de uma rainha portuguesa livrou D. Fernando da tremenda dificuldade de ter de optar entre uma noiva do partido francês (o que sucederia se a eleita fosse a infanta castelhana) ou uma do partido inglês (se fosse aragonesa, por exemplo). Mas é óbvio que o desfazer do noivado com a filha de Pedro O Cru tornara inevitável a guerra de que já falámos, aliás, no contexto do grande conflito europeu e em moldes que a aliança luso-inglesa clarificara.

No plano pessoal, depois de um início de casamento feliz, D. Fernando começou a ter dores de cabeça quando se tornaram notórias as infidelidades da sua amada Leonor Teles. O rival amoroso do rei era o conde galego João Fernandes Andeiro, que haveria de viver maritalmente com a sereia quando esta ficou viúva. E essa mudança de estado civil da rainha não tardou muito a acontecer, pois O Formoso abandonou a cena deste mundo cruel em que tão levianamente se movimentara com 37 anos de idade, não se sabe bem se vítima de doença provocada por causas naturais (possivelmente tuberculose) ou se devido à ingestão prolongada de veneno. Há quem se incline para esta segunda possibilidade. Mas antes de se lhe fecharem os olhos ainda teve tempo de casar a filha Beatriz com João I de Castela, transformando este monarca estrangeiro no herdeiro do trono português. 

Depois de termos visto as coisas más do reinado de D. Fernando, é agora altura de passarmos às boas. 

D. Nuno Álvares Pereira O condestável e mentor da resistência aos castelhanos escolheria terminar a vida na clausura monástica 

Entre outras coisas, O Formoso tomou mexidas destinadas a fazer aumentar a produção agrícola, incitando ao desbravamento de terras e aligeirando os impostos que incidiam sobre os camponeses. Era este o objetivo da Lei das Sesmarias, segundo a qual os proprietários das terras não cultivadas eram obrigados a entregá-las a quem as cultivasse. Isto não chegou a funcionar em pleno, mas a intenção do rei, ou dos seus conselheiros, foi boa. D. Fernando estimulou também o desenvolvimento da marinha, facilitando a construção naval e isentando de direitos de exportação as mercadorias embarcadas pela primeira vez pelos armadores. Em complemento, criou em Lisboa e no Porto a Companhia das Naus, uma autêntica empresa seguradora que cobria os riscos da navegação.

Uma outra lei obrigava todos os vadios e mendicantes válidos a trabalhar, sob pena de levarem açoites. Alguns destes alegavam que eram ermitães, mas o argumento não colhia: se tinham bons braços, que lhes dessem uso. Quanto aos padres, foram impedidos de adquirir terras sem licença régia, e esta não era fácil de obter.

O casamento com a portuguesa Leonor Teles livrou o reiD. Fernando do embaraço de ter de escolher uma noiva no partido francês ou no partido inglês

No plano social, foi no tempo de D. Fernando que a burguesia, sobretudo a da capital, tomou verdadeira consciência da sua força. Os assalariados desta classe cada vez mais pujante viviam, porém, na fronteira da miséria, o que levou o rei a incitar as corporações religiosas a pôr de pé um plano de assistência.

A muralha

Pesem estas boas intenções, quando D. Fernando morreu, em outubro de 1383, deixou o País nas ruas da amargura. No ano seguinte, durante quase cinco meses, Lisboa esteve cercada pelas forças enviadas pelo rei castelhano pretendente ao trono por ser casado com a pequena infanta Beatriz. 

Se não existisse já a muralha construída na década anterior, tudo teria sido uma trágica reedição do que já ocorrera em 1372, por altura de outro cerco ordenado por Henrique de Trastâmara, em que D. Fernando fora humilhado e a capital portuguesa saqueada e incendiada. Mas O Formoso, pense-se dele o que se pensar, sabia tomar medidas administrativas acertadas e, entretanto, trabalhando-se a bom ritmo, fora dada por concluída num par de anos, entre 1373 e 1375, uma bela muralha. Claro que isto representou um esforço enorme de operários e mestres-de-obras oriundos de toda a Estremadura e do Ribatejo, que tinham mourejado incansavelmente sob as ordens de um tal Gomes Martins, que era na altura aquilo a que agora chamaríamos presidente da câmara. Mesmo assim, já durante o cerco de 1384 se chegara à conclusão de que era conveniente reforçar a cerca aqui e ali, e as pedras e os baldes de cal lá iam andando de um lado para o outro com o inimigo à vista. A muralha, realmente imponente, tinha 77 torres e 38 portas. Algumas destas últimas deixaram vestígios na toponímia da cidade, como as Portas de Santo Antão, o nome da rua onde fica o Coliseu e onde se situava a entrada que comunicava de forma mais direta com o Rossio. O que resta das Portas do Mar pode ainda ser visto na parte baixa de Alfama, entre o Campo das Cebolas e o Jardim do Tabaco.

Afinal, e para lá da própria existência da muralha, dois motivos conjugados levariam os castelhanos a levantar o cerco, em setembro de 1384. Um deles foi a epidemia de peste que se espalhou no acampamento; outro, os constantes ataques lançados contra as posições sitiantes, a partir de fora, pelas tropas de D. Nuno Álvares Pereira.

O alcaide do Castelo de Faria

Durante as desastradas guerras entre o rei D. Fernando de Portugal e Henrique II de Castela (ou Henrique de Trastâmara), descritas no texto principal, um exército inimigo de cavaleiros e peões comandado por Pedro Rodriguez Sarmento, o adiantado da Galiza, entrou pelo Minho adentro. Um adiantado era uma espécie de governador militar. Sem encontrar resistência, a tropa galega saqueou todas as terras que lhe ficavam no caminho até perto de Barcelos. E foi só aqui que um exército português reunido à pressa pelo conde de Seia, tio de D. Fernando, fez frente aos invasores. A batalha foi renhida, mas os portugueses acabaram derrotados, e muitos deles feitos prisioneiros. Passou-se isto em 1368. 

Conta Alexandre Herculano nas Lendas e Narrativas que entre os reféns da batalha se contava um tal Nuno Gonçalves, alcaide (ou governador) do Castelo de Faria, uma fortificação das redondezas fundada no século IX. Gonçalves saíra do castelo para ir defender o conde de Seia e tudo correra mal. Quem ficou satisfeito foi Sarmento, o adiantado da Galiza, sobretudo quando o ilustre prisioneiro lhe sugeriu a entrega do castelo em troca da sua liberdade. Dentro das muralhas, a guardar a praça-forte, ficara Gonçalo Nunes, o filho de Nuno Gonçalves, e era de crer que o rapaz, ao ver o pai a ferros, não hesitasse pela sua parte em entregar a fortaleza aos inimigos para o libertar.

Só que Nuno Gonçalves levava os seus deveres a peito e a sugestão que fizera ao adiantado inimigo não passava de um estratagema. Conduzido até junto das muralhas por um grupo de homens de armas galegos a tilintar de espadas e de lanças, ordenou de cá de baixo aos besteiros que defendiam o castelo que chamassem às ameias o seu filho. Gonçalo Nunes não tardou a aparecer no alto da muralha. Gritando, o pai perguntou-lhe se sabia de quem era o Castelo de Faria, ao que o filho respondeu que sim, que era do rei D. Fernando. O pai perguntou-lhe depois se estava informado de que o dever de um alcaide era nunca entregar, fosse em que circunstância fosse, o castelo confiado à sua guarda. O jovem respondeu afirmativamente. Então, Nuno Gonçalves gritou ainda mais alto, exortando o filho a defender a fortaleza até à morte. E rematou com uma maldição terrível: “Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno como Judas o traidor na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo sem tropeçarem no teu cadáver!”

Escusado será dizer que o velho alcaide foi imediatamente trespassado pelas lanças dos guardas galaico-castelhanos. Mas ele não ignorava que essa sorte era inevitável. O filho, lá em cima, incitava os seus a uma defesa feroz. A terrível morte do pai, à frente dos seus olhos, inspirara-o, e o primeiro ato dos defensores do castelo foi dispararem uma nuvem de flechas contra a guarda avançada castelhana. Muitos soldados invasores tombaram ali mesmo, junto do cadáver do velho alcaide.

O Castelo de Faria nunca chegou a render-se.

O famoso condestável

D. Nuno, Nun’Álvares, também conhecido simplesmente por “o Condestável”, é uma das figuras centrais – e mais populares – da História portuguesa. Tão célebre pelos seus dotes de guerreiro como pela sua vertente religiosa, é igualmente identificado por Santo Condestável, S. Nuno de Santa Maria, Beato Nuno ou Frei Nuno.

 Nascido em 1360, este homem dos mil nomes era filho bastardo do prior da Ordem do Hospital e neto de um arcebispo de Braga. O prior ofereceu-lhe 31 irmãos e irmãs. O jovem Nuno casou-se muito novo, aos 16 anos, com uma viúva mais velha, Leonor de Alvim, com a qual habitou uma dúzia de anos no seu solar minhoto da região de Basto e que o deixou por sua vez viúvo aos 28, depois de lhe ter dado três descendentes – incluindo a iniciadora da depois poderosíssima Casa de Bragança, Beatriz Pereira de Alvim, que seria mulher do primeiro duque daquele título, D. Afonso, filho natural do futuro rei D. João I e de Inês Pires.

Dizer que D. Nuno habitou no solar de Basto é uma maneira de colocar a questão, pois quase nunca lá estava. Assim que estalou a crise dinástica de 1383, devida ao facto de D. Fernando ter morrido sem deixar filho varão, o nosso jovem, com vinte e poucos anos, saltou para a ribalta (e para o cavalo, que aliás era uma mula) e nunca mais parou em casa. Visceralmente oposto à ideia de que se entregasse o trono ao rei castelhano, alinhou com uma figura destinada a desempenhar um papel importantíssimo na História de Portugal, da qual falaremos largamente um pouco mais adiante: D. João, Mestre de Avis, futuro rei D. João I, que aparecera (não inteiramente por vontade própria) a liderar os que se opunham à coroação de D. João de Castela como rei de Portugal.

A cara do rei Este retrato, quase contemporâneo, de D. João I, é a primeira representação realista de um soberano português

Costuma dizer-se que o Mestre soube ver em Nuno o homem de que precisava para organizar uma resistência eficaz às ofensivas militares castelhanas, mas se calhar o inverso é mais verdadeiro. Com efeito, e como já atrás se disse, foi o filho do prior do Hospital que construiu a imagem e o prestígio do futuro D. João I, convencendo-o a abraçar e a liderar a causa anticastelhana. De qualquer das formas, o Mestre nomeou-o, enquanto regente, condestável do reino, um cargo de comandante-chefe das forças armadas criado pouco antes por D. Fernando e cujo primeiro titular tinha sido um tal Álvaro Pires de Castro, irmão de Inês de Castro.

Cem anos antes, talvez nada disto tivesse acontecido, mas, neste final do século XIV, existia já, em Portugal, um forte sentimento nacional 

E a verdade é que Nuno se revelou o homem certo no lugar certo, pois venceu os castelhanos em Atoleiros (na região de Portalegre), Aljubarrota (a célebre batalha já descrita) e Valverde (perto de Mérida, para lá da fronteira). Mesmo sem ter viajado pela Europa, estava informado acerca da maneira como se combatia lá fora, e logo a partir de Atoleiros adotou as novas táticas em uso para lá dos Pirenéus, na Guerra dos Cem Anos. Os pesados cavaleiros com armaduras iam passando de moda e o que estava a resultar era o uso de tropas apeadas para o combate corpo a corpo e de besteiros. Estes últimos eram os soldados que lutavam com bestas (este “e” é aberto), aquele misto de espingarda e arco que disparava umas setas curtas chamadas virotes.

Por sinal, os cavaleiros eram nobres e os peões, homens do povo arregimentados. Era, de certo modo, o início do exército entendido como povo armado, em oposição à conceção elitista da profissão das armas. Muita água correria depois nos rios, e hoje a ideia dominante voltou a ser a do exército profissional.

A figura de Nuno Álvares Pereira é tão famosa que não podemos ignorar a sua projeção através dos séculos, nem que para isso seja necessário dar um rápido salto no tempo.

Depois de ter sido guerreiro, Nuno aderiu à Ordem dos Carmelitas, fundou em Lisboa o Convento do Carmo e ali passou a maior parte da vida, até morrer em 1431. Durante séculos foi considerado santo sem o ser oficialmente. A canonização acabaria, contudo, por se concretizar em 2009. Mas para isso foi necessário que, em 2000, uma dona de casa de Ourém que estava a fritar peixe apanhasse com salpicos de óleo num olho, o que lhe causou lesões na córnea. Face às reservas dos médicos, Guilhermina de Jesus, devota do beato Nuno de Santa Maria, rezou então com muita fé, de mão assente numa imagem do velho condestável. E parece que se curou. Era o sinal que faltava e que tardara mais de meio milénio, pois foi suficiente para que Nuno Álvares Pereira, patrono do Exército português, tenha sido canonizado pelo Papa Bento XVI. Já décadas antes fora beatificado e a sua imagem nunca deixara de ser usada como bandeira por setores nacionalistas conservadores.

Neste particular, assemelha-se a Joana d’Arc, a heroína francesa desta mesma Guerra dos Cem Anos que desde há um século e picos tem servido de estandarte à extrema-direita do seu país. Involuntariamente, um e outra tornaram-se depois da morte aquilo que nunca tinham sido em vida: servidores da tradição contra a inovação e, em última análise, dos fortes contra os fracos.

Entrevista secreta 

Entremos agora nas confusões do interregno, ou seja, daquele período entre reinos (daí a palavra) em que o poder supremo não se encontrava nas mãos de ninguém.

O Mestre de Aviz, futuro reiD. João I, era filho natural do antigo rei D. Pedro I, que o teve com uma burguesa chamada Teresa Lourenço

Morto D. Fernando, e com Leonor Teles a desempenhar as funções de regente, enquanto a maior parte da nobreza de Portugal apoiava o pretendente castelhano, a burguesia e o povo revoltaram-se, pois não queriam ser governados por um estrangeiro. Cem anos antes, não teria sido provável que isto tivesse sucedido, mas neste último quartel do século XIV existia já um forte sentimento nacional. Se os nobres, os “filhos de algo” (daí a palavra “fidalgos”), continuavam mais fiéis a um senhor de quem recebiam benesses do que a uma ideia abstrata de “nação” (nem eles aceitariam a ideia de pertencer à mesma nação que o povo), já os plebeus encaravam o assunto de modo diferente. Acresce que o terreno estava maduro desde que a Peste Negra fizera estragos terríveis em toda a sociedade, e o exemplo das revoltas camponesas em França conhecidas por Jacqueries fez com que os plebeus ricos (os tais burgueses) receassem o pior, levando-os a tomar nas mãos, dentro do possível, os destinos da sociedade. Mas este grupo dos plebeus era tudo menos homogéneo, visto que englobava quer os patrões, quer os empregados. Os primeiros, naturalmente, esforçaram-se por ser eles a controlar os acontecimentos.

Tudo começou com um levantamento popular em Lisboa. Sob a orientação da burguesia mercantil, D. João, o mestre da Ordem de Avis, foi eleito numa espécie de assembleia popular, em plena rua (no Largo de S. Domingos), “defensor e regedor do Reino”. Ora, uma das primeiras coisas que ele fez depois dessa eleição foi assassinar – com as suas próprias mãos – o já referido conde Andeiro, amante da rainha viúva e chefe de fila do partido castelhano. Em boa verdade, era este galego que governava o País, pela influência que exercia sobre a amante, ao ponto de, se ela se tornasse efetivamente rainha (como pretendia o rei castelhano durante a menoridade de Beatriz), vir a ser ele o verdadeiro governante. Por este motivo, concitara não apenas o ódio popular, mas também a má vontade de muitos fidalgos e de praticamente todo o alto clero. Resumindo: quase toda a gente via neste galego um alvo a abater.

Aliança anglo-portuguesa João de Gante, pai de D. Filipa de Lencastre, em reunião com D. João I 

Quanto a Leonor Teles, já sabemos que o povo a odiava, tanto mais que mandara pessoalmente decapitar os chefes da rebelião que em tempos estourara em Lisboa para tentar evitar o seu casamento com o pobre D. Fernando. Além disso, ainda em vida do marido a Aleivosa tinha feito assassinar a própria irmã Maria Teles (não fosse ela ainda fazer-lhe sombra no tocante aos favores do rei), afugentara para Castela os filhos de Inês de Castro e de D. Pedro I e rubricara uma sentença de pena capital contra o Mestre de Avis imitando a assinatura do marido (que se recusara a condenar o meio-irmão). Neste poço de defeitos, só se salvava mesmo, ao que parece, a beleza física, que era o único fator que contava para o apaixonado D. Fernando.

A morte do conde Andeiro foi planeada por um burguês rico e já bastante entrado em anos, que morava em Lisboa e tinha sido chanceler (cargo equivalente ao do moderno primeiro-ministro) de D. Pedro e de D. Fernando. Foi também ele, como se verá, o “inventor” do futuro D. João I. Aposentado por motivos de idade, ouvira com indisfarçável orgulho o último rei recomendar à vereação lisboeta que não tomasse qualquer resolução sem antes ouvir o seu conselho. Era como que o senhor da cidade, cujos habitantes anónimos o respeitavam, embora aqui e ali se notassem, inevitavelmente, umas naturais pontinhas de ressentimento e até mesmo de inveja.

Quando soube que o rei de Castela invadia Portugal, o Mestre de Aviz convocou o povo de Lisboa para uma reunião, no Mosteiro de S. Domingos 

Ora, Álvaro Pais odiava de morte o conde Andeiro, e gizou um plano para o apear da situação de homem-forte a nível nacional em que se encontrava para desgraça pública. Olhou em redor procurando alguém que pudesse ocupar o lugar do amante da rainha e deu então com os olhos no nosso Mestre de Avis, filho natural do antigo rei D. Pedro I e de uma burguesa vistosa chamada Teresa Lourenço, pertencente a uma família de mercadores lisboetas. 

Visto que sofria de gota e que lhe custava muito deslocar-se, Álvaro Pais mandou chamar o jovem D. João. Podia fazê-lo, pois era um homem importante, embora plebeu. O Mestre de Avis acorreu logo, e na entrevista, que teve por cenário a casa do rico burguês, com as suas arcas trabalhadas e ricas tapeçarias flamengas, ficou assente que D. João mataria o Andeiro, colocando-se dessa forma a jeito para vir a sentar-se em breve no trono. Pois não era verdade ser ele filho de rei? Naquele tempo fazia-se assim a política interna, tal como hoje sem olhar a meios para atingir os fins, mas com um despudor que mais tarde seria banido através de um toque de cosmética.

O Mestre de Avis ainda objetou que a missão era difícil de desempenhar, uma vez que o conde Andeiro andava sempre acompanhado de fidalgos amigos e bem guardado por dezenas de escudeiros, mas Álvaro Pais era da opinião de que a coisa era praticável se se contasse com o apoio do povo de Lisboa, e esse apoio estava ele em condições de garantir. Prometeu-lhe também a cooperação de determinados fidalgos, entre os quais o conde de Barcelos, irmão da rainha mas inimigo de Andeiro.

D. João ficou logo tentado a aceitar, mas solicitou a Pais alguns dias para refletir e para pedir a opinião do seu amigo Nuno Álvares Pereira e do tio deste, Rui Pereira – opinião essa que, aliás, quase conhecia de antemão, pois ambos o tinham já incitado a desencadear um golpe de Estado.

A morte do Andeiro

Assente a conspiração, no dia 6 de dezembro de 1383 o Mestre de Avis, acompanhado de 25 homens armados de espada e usando couraças e braçais (aquelas proteções de ferro para os braços com uma espécie de dobradiças para os cotovelos), entrou no Paço de A-Par-de-S. Martinho. Lá dentro, deparou com Leonor Teles sentada numa sala, rodeada de damas de companhia e de fidalgos, entre os quais o seu irmão conde de Barcelos, e com o Andeiro sentado aos pés.

D. João pediu perdão à rainha pela forma inopinada como entrara e desculpou-se com um pedido de reforço de tropas para defender o Alentejo, ameaçado pelos castelhanos. Enquanto a rainha estava distraída a dar as ordens para que o tal reforço se efetivasse, o Mestre de Avis pediu em surdina ao conde de Barcelos que se ausentasse, pois queria matar ali mesmo o Andeiro. O irmão de Leonor Teles respondeu que, pelo contrário, ficaria para o ajudar, mas face à insistência do Mestre, que prometeu ir almoçar com ele a seguir, acabou por abandonar a sala, seguido dos restantes fidalgos à exceção do conde de Ourém.

D. João e os seus homens ficaram assim sozinhos na presença da rainha e do amante. Foi então que o Mestre de Avis convidou o Andeiro a acompanhá-lo a uma sala contígua, onde o atingiu com uma punhalada na cabeça. Não sendo o ferimento mortal, João Fernandes Andeiro, ensanguentado, fugiu para junto da rainha, mas ali Rui Pereira, o tio de Nuno Álvares, trespassou-o com a espada.

Banquete Os protagonistas são o rei português D. João I e o seu sogro João de Gante, duque de Lencastre.À direita, um retrato (imaginário) de D. Fernando

Enquanto Leonor Teles gritava e as aias a imitavam, D. João fechava as portas e ordenava ao seu pajem que fosse correr pelas ruas da cidade bradando que acudissem ao Mestre de Avis, pois estavam a matá-lo no paço real. O rapaz cumpriu a ordem, e não tardou que uma multidão ululante se comprimisse contra os muros do edifício, os homens transportando escadas e as mulheres braçadas de lenha para atear fogo. O povo queria assaltar o palácio, fazer justiça por suas mãos nas pessoas da Aleivosa e do Andeiro, aclamar o Mestre se fosse ainda tempo de o salvar e não deixar pedra sobre pedra. Era uma autêntica Jacquerie à portuguesa. Alguém dos de dentro achou por bem aconselhar D. João a mostrar-se à janela, para evitar o pior. Este assim fez, e foi vitoriado pelo povo entusiástico, de cuja massa se destacava a silhueta de Álvaro Pais, montado a cavalo e exibindo um sorriso discreto.

Era então bispo de Lisboa um castelhano chamado D. Martinho, considerado virtuoso pelo vulgo e acerca do qual não havia muito a censurar. O prelado recebia nesse dia o prior de Guimarães e um tabelião de Silves, seu parente. Inquieto com a movimentação popular, mandou fechar as portas da Sé e subiu com os convidados a uma das torres, para melhor apreciarem o espetáculo da revolução em marcha. Cá em baixo, o povo, vendo gente na torre, gritou para cima que fizessem repicar os sinos em sinal de festa pela morte do Andeiro. O bispo cometeu o erro fatal de não obedecer, o que fez com que a multidão, enfurecida, arrombasse as portas do templo, escalasse a torre em tropel e arremessasse lá do alto o prelado e os seus dois convidados.

Entretanto, o Mestre de Avis, conforme prometera, almoçava tranquilamente com o conde de Barcelos, irmão da rainha.

A crise de 1383–1385 mostrou
a oposição entre a burguesia ascendente e as forças hegemónicas tradicionais
da nobreza
e do alto clero

Duplamente viúva (e já antes divorciada), Leonor Teles, em pânico, fugiu na mesma tarde para Alenquer. Dali, ordenou a todos os alcaides das fortalezas que aclamassem como soberanos D. João de Castela e D. Beatriz. A ordem foi cumprida sem dificuldade, pois quase todos os castelos estavam nas mãos de partidários seus, ali colocados pelas hábeis manobras de sedução que durante anos desenvolvera junto do Formoso e influenciável rei.  

Quando chegou a Lisboa a notícia de que D. João de Castela invadia Portugal, o Mestre de Avis convocou a população para uma espécie de assembleia-geral, no Mosteiro de S. Domingos, durante a qual foram traçadas as linhas de atuação para fazer face ao partido estrangeiro. A este plenário seguir-se-ia outro, agora nos Paços do Conselho, perto da Sé, onde o Mestre foi oficialmente empossado no cargo de “defensor e regedor dos reinos de Portugal e do Algarve”, para o qual já fora eleito na rua. Um ano e meio mais tarde, acabaria por ser aclamado rei, nas Cortes de Coimbra, inaugurando desse modo uma nova dinastia.

Convém acentuar que nesse tempo existia já um claro sentimento nacional, sobretudo desde que, no século anterior, D. Dinis tinha desenvolvido uma política de fomento e decretado que todos os documentos oficiais passassem a ser escritos na língua corrente, em vez de o serem, como até então, em latim. Se Portugal existia como Estado independente desde o tempo de D. Afonso Henriques, no século XII, durante os primeiros reinados não tinha ainda a individualidade própria que viria a ser adquirida no decorrer desta crise de 1383-1385. Pode, talvez, dizer-se sem exagero que começa aqui a verdadeira história da independência nacional.

As Cortes de Coimbra

Na atrás referida reunião das três ordens (nobreza, clero e povo) que teve lugar em Coimbra, no antigo paço real, a causa da entronização do Mestre seria brilhantemente defendida pelo jurista João das Regras. Mas não julguemos que foi fácil: o brilhante orador (era-o, com certeza) teve de mobilizar todos os seus talentos para convencer a assembleia das vantagens de optar pelo Mestre em vez do castelhano ou (provisoriamente que fosse) de um dos filhos de D. Pedro e de Inês de Castro.

A primeira questão levantada pelo advogado foi se as Cortes, atendendo ao estado de divisão do País, tinham direito a eleger um novo rei. Chegou à conclusão de que sim, recorrendo a uma comparação com a eleição do Papa, que, na sua ótica, até podia ser escolhido por um só cardeal. Entrando na matéria, e analisando as pretensões do rei castelhano, João das Regras defendeu que estas estavam prejudicadas pelo facto de D. Fernando ter deixado irmãos. Além de que D. Beatriz devia ser considerada filha ilegítima de D. Fernando, pois nascera do ventre de uma mulher já casada com outro homem que não o rei. Se este ponto hoje não nos convence, há 640 anos o conceito de ilegitimidade era mais  abrangente (e nem é preciso recuar tanto, basta cem anos). Agora, um argumento que, esse sim, já é mais convincente: Leonor Teles tinha relações com o rei e com o conde Andeiro e, nas palavras de João das Regras, “ela que com dois dorme, mui mal será certa de qual deles emprenha”. 

Além disso, o rei de Castela e Beatriz não podiam ainda herdar o trono por ele ser “antipapa”, quer dizer, seguidor do pontífice concorrente do de Roma entronizado pelos franceses na cidade de Avignon (ou Avinhão). Mas o cisma da Igreja (ou Grande Cisma do Ocidente) é uma matéria que seria longo desenvolver e não é para aqui diretamente chamada.

Quanto aos direitos ao trono dos infantes D. João e D. Dinis, filhos do antigo rei D. Pedro e de Inês de Castro, o melhor seria nem considerar a questão, visto os pais não serem casados, por muito que D. Pedro tivesse feito constar que a cerimónia se realizara. Imparável, o jurista não dá ponto sem nó: mesmo admitindo que esse consórcio se tivesse mesmo efetuado, de que valeria ele se os pretensos cônjuges eram compadres (visto Inês ter sido madrinha do primeiro filho de Pedro)? Mas, argumento dos argumentos, ainda mesmo que fossem legítimos, o direito a sentarem-se no trono de Portugal tinha-se esfumado no momento em que pegaram em armas contra ele, nas guerras do tempo de D. Fernando.

Apesar de todos os esforços oratórios de João das Regras, muitos nobres continuavam a querer como rei este D. João filho de Pedro e Inês, enquanto a infanta Beatriz fosse criança. Quanto aos representantes do povo, defendiam obviamente a causa do Mestre de Avis. Os ânimos azedaram-se, Nuno Álvares Pereira encarniçou-se contra o chefe do partido dos nobres e foi preciso o Mestre recomendar calma. Houve um intervalo, e quando os trabalhos recomeçaram João das Regras tirou da manga três documentos arrasadores. Um eram as instruções enviadas pelo velho rei D. Afonso IV, pai do futuro D. Pedro I (e avô de D. Fernando), ao arcebispo de Braga, de visita a Roma, para que este insistisse com o Papa que recusasse conceder a dispensa canónica indispensável ao casamento do então infante com Inês de Castro. Outro era um pedido do próprio D. Pedro ao Papa para que legitimasse os filhos da sua ligação com Inês. O terceiro era a recusa do pontífice a este pedido. 

Os delegados presentes resolveram então vergar-se ao peso da argumentação do advogado, e o Mestre de Avis foi eleito rei. Este ainda recusou a honra, alegando que não tinha as qualidades requeridas e que, além disso, era clérigo (não esqueçamos que chefiava a ordem religiosa de Avis), mas não quiseram ouvi-lo e rei ficou, com aclamação festiva a 6 de abril de 1385. Provavelmente, o que D. João temia era estar a envolver-se em grandes complicações, visto que o partido castelhano continuava a ser, mais ou menos secretamente, o preferido da grande nobreza, e avizinhava-se uma tempestade (que desabaria mesmo).

 De qualquer das formas, e independentemente da decisão das Cortes, em finais de 1383, muito antes da sua reunião, já estavam claramente definidos os partidos. De um modo geral, as classes trabalhadoras alinhavam com o “defensor e regedor”, enquanto os alcaides e os nobres davam voz pelo rei castelhano e pela infanta Beatriz, recomendando que se sentasse no trono D. João, filho de Pedro e Inês (que como sabemos também era do partido castelhano), durante a menoridade da infanta. Era uma luta de classes, prenunciadora já, num passado remoto, do grande choque social que 400 anos depois abalaria França e o mundo.

Se refletirmos um pouco, facilmente chegaremos à conclusão de que esta “crise”, como tradicionalmente se chamou aos acontecimentos que marcaram o fim da dinastia de Borgonha e o advento da de Avis, tem em si três componentes distintas. Uma é a afirmação, pela primeira vez, da independência portuguesa face ao projeto anexionista de uma força exterior. Outra é a oposição entre a burguesia ascendente e as tradicionais forças hegemónicas da nobreza e do alto clero. A terceira é o surgimento do elemento popular a combater ao lado dos burgueses ricos; esta aliança só viria a ser desmascarada no século XIX, pelo marxismo, mas nos nossos dias assistimos à perda da consciência de classe e a uma estranha sedução dos pobres pelos ricos.

Reportando-nos agora estritamente ao século XIV, é verdade que a aliança dos pobres com os ricos parece bastante contranatura, se pensarmos que eram os ricos que pagavam aos pés descalços e que estes se queixavam amargamente da magreza dos seus vencimentos, mas ainda vinha longe a entrada em cena de outra perspetiva. Tudo se explica pelo facto de o inimigo verdadeiro de uns e de outros continuarem a ser os nobres, os que nada faziam a não ser caçar, guerrear e cobrar tributos. Além dos castelhanos, evidentemente, que faziam frente comum com os fidalgos portugueses.

Desacatos de “hooligans”

Os auxiliares ingleses que tinham vindo para ajudar os sublevados portugueses não regressaram ao seu país sem antes terem feito por cá uma série de desacatos, como verdadeiro bando de hooligans semelhante à claque de um clube da Premier League de futebol. Roubavam casas, pilhavam campos, violavam mulheres, assaltavam nos caminhos… E não se tratava da primeira vez que isto acontecia, pois já em vida de D. Fernando, O Formoso, logo depois da assinatura da aliança anglo-lusa, estes amigos com os quais não seriam precisos inimigos tinham feito estragos semelhantes quando vieram participar nas guerras contra os castelhanos. Nesse tempo, por muito que O Formoso se queixasse ao seu comandante, este limitava-se a recomendar à população portuguesa que colocasse nas suas casas um estandarte inglês, partindo do princípio de que os hooligans respeitariam os haveres de quem dessa forma se mostrasse seduzido pelos encantos da loura Albion. Pura ilusão, ao que parece.

A hora decisiva

Mesmo antes das Cortes de Coimbra, D. João de Castela sabia que não lhe restava outra alternativa que não fosse invadir Portugal e apoderar-se, pelo argumento das armas, do trono a que se achava com direito por via do seu casamento.  

Um primeiro exército, bastante numeroso, entrou pela fronteira do Alentejo e, a 6 de abril de 1384 (precisamente um ano antes da aclamação do Mestre), foi derrotado, como já se referiu, em Atoleiros, no atual distrito de Portalegre, pelos portugueses comandados por Nuno Álvares Pereira. Entretanto, outro exército castelhano cercava Lisboa, que se defendeu como pôde. Uma terceira invasão, de menores dimensões, entrou pela Beira Alta, mas foi travada em julho de 1385 perto de Trancoso.

Os ventos estavam a soprar favoravelmente às cores nacionais, ou aos insurretos, já que ambas as realidades se confundiam. Mas se a revolução de 1383 fora bem-sucedida, a guerra contra Castela estava ainda longe de se encontrar ganha.

Foi vencida, isso sim, ao fim da tarde de 14 de agosto de 1385, no momento em que se travou a decisiva Batalha de Aljubarrota – a tal que todos os portugueses conhecem nem que seja apenas por ouvirem falar dela, ou, pelo menos, da célebre padeira que não se sabe ao certo se existiu, mas que está indelevelmente ligada aos acontecimentos. Como já descrevemos esse terrível embate no início deste texto, não voltaremos ao assunto, agora que estão explicadas as causas que conduziram a ele. 

Aljubarrota garantiu a independência de Portugal e marcou o início de um logo período de declínio de Castela, onde foi decretado um luto de dois anos. Apenas numa hora, tinha morrido a maior parte da sua nobreza e seria preciso esperar pelo tempo dos reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão, um século depois, para que o Estado vizinho de Portugal, politicamente unificado, voltasse a erguer a cabeça. No entanto, hoje, os jovens espanhóis desconhecem praticamente esta batalha, a que os programas escolares não recomendam que seja dedicada mais do que uma breve referência nos manuais de História.

O escalar da retórica nuclear entre Washington e Moscovo, registada nos últimos dias, não pode ser visto apenas como uma forma de Trump e Putin assinalarem a passagem dos 80 anos das bombas despejadas em Hiroxima e Nagasaki. E, apesar de toda a preocupação que possa gerar, também não convém não levar as ameaças muito a sério. No fundo, aquilo a que estamos a assistir é a um certo cheirinho a Guerra Fria, embora com uma diferença fundamental: desta vez, os dois líderes não defendem ideologias opostas e têm até imensas semelhanças na forma como silenciam os opositores, fazem pressão sobre os adversários e utilizam todos os meios ao seu alcance para fortalecer o poder pessoal, apenas permitindo seguidores fiéis à sua volta.

Este escalar de ameaças é, antes, o sintoma de algo mais vasto: o poder crescente dos chamados “homens-fortes”. É até a consolidação do “triunfo dos brutos” que, há cerca de uma década, tem marcado a política internacional: o poder a ser exercido por homens que concentram a autoridade, cultivam a imagem de força pessoal e recorrem, sem qualquer tipo de pudor, à ameaça como arma principal.

Com Donald Trump nos comandos da Casa Branca e com o dedo afiado nas suas redes sociais, este estilo tem ganhado cada vez maior preponderância e novos imitadores. E, aos poucos, vai arrastando o mundo para um clima de confronto permanente, sempre a apelar ao uso da força e que, inexoravelmente, destrói muitos dos valores e princípios que, durante algum tempo, pensámos que deveriam pautar o debate político e os relacionamentos internacionais entre Estados.

No estado atual do mundo, parece já não interessar quem tem razão, mas sim quem tem mais força. E, especialmente, quem ameaça com maior intensidade, como se tudo lhe fosse permitido e nada tem a perder. A diplomacia internacional, nos temas principais, foi substituída por jogos de força, por sanções, por guerras comerciais e, quando a ocasião o justifica, por ameaças militares abertas.

Parece que estamos a caminhar sempre em direção a um confronto iminente e explosivo que, como nos filmes de aventura, é evitado à última hora. Aqui, não por um herói improvável, mas sempre pela ação de um “homem-forte”, com o seu inevitável discurso nacionalista e que promete sonhos de grandeza aos seus compatriotas. Temos visto, em tantos casos, que nada disso é verdade. Só que é a perceção que eles tentam criar. E, já ninguém tem dúvidas, todos sabemos que vivemos hoje num mundo dominado mais pelas perceções do que pela análise fria, metódica e transparente da realidade.

Esta emergência do poder dos “brutos” constitui a maior ameaça ao desenvolvimento saudável da Humanidade, à defesa dos direitos humanos e aos valores que permitam a liberdade e a justiça social e económica. Percebe-se que a erosão dos valores democráticos é evidente, um pouco por todo o lado. E não só têm crescido os sentimentos de intolerância perante quem pensa de modo diferente, como está a desaparecer uma noção muito antiga em que sempre assentou o pensamento humanista: o respeito pelo outro, seja ele quem for, mas que deve ser respeitado como ser humano.

A forma como tantos países com tradição democrática têm assistido, em silêncio, ao que acontece em Gaza é reveladora do mundo em que vivemos e da erosão dos valores que devíamos todos compartilhar, até por estarem inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na própria criação das Nações Unidas. Quando, deliberadamente, como se fazia nos antigos cercos da época medieval, se matam populações à fome, não pode existir estratégia política que desculpe o “bruto” que comanda esse extermínio. Por muito menos, por exemplo, já se encetaram intervenções de forças internacionais, para impedir situações que não chegavam a esta barbárie. E é cada vez mais inadmissível que Israel continue a proibir que observadores e jornalistas internacionais entrem no território para poderem, em liberdade, contar o que realmente se passa.

Em Gaza, fora dos olhares do mundo, não está só uma população a ser dizimada, à fome e aos tiros. É a própria Humanidade que, quando escolhe o silêncio, acaba por ficar sitiada e abdicar dos valores que deviam norteá-la. E quando isso acontece, tal como se existir uma guerra nuclear, uma conclusão será inevitável: todos seremos vencidos.

Em resposta enviada à Lusa, a Procuradoria-Geral da República (PGR) adiantou que “confirma-se a instauração de inquérito relacionado com a matéria”.

André Ventura mencionou a lista de nomes na Assembleia da República, quando se debatia, no Parlamento, a 4 de julho, as alterações à lei da imigração e da nacionalidade, e Rita Matias divulgou os nomes num vídeo partilhado nas redes sociais.