Parece que os bulldozers do presidente da Câmara Municipal de Loures, Ricardo Leão, ameaçavam demolir a precária barraquinha do Banco de Portugal (BdP), onde, mal instalados e sem acesso a água potável, o pobre governador e respetivos administradores se amontoavam, em condições sub-humanas. Vai daí, o governador Mário Centeno decidiu ir fazer a sua casa “autoconstruída” para outro lado, dando 80 milhões de euros pelos terrenos da antiga Feira Popular, onde espera erguer uma barraca maior, que poderá atingir o custo de 280 milhões, tendo sinalizado o negócio com 57,5 milhões de euros.
A demagogia é um terreno perigoso de onde, na análise racional, devemos fugir a sete pés. Mas um país com meios para gastar mais de 280 milhões de euros a construir de raiz uma sede para o seu banco central – sem que se conheçam as exatas razões que justificam um tal gasto, visto que os funcionários do BdP não estão propriamente a trabalhar em contentores… – é o mesmo país que não consegue realojar os miseráveis descamisados que ocupam, com madeira e zinco, os terrenos do chamado Talude Militar em Loures. Há milhões e milhões para que o Banco de Portugal trabalhe com melhor ar condicionado. Mas não há uns tostões para, ao menos, adaptar a habitações provisórias, lá está, uma dúzia de contentores. Ou para montar meia dúzia de casas pré-fabricadas, dessas que vemos à venda e em exposição à beira de algumas estradas do País, que são baratas, se montam depressa e sem esperar dois anos, no mínimo, por construção de habitação social. Além da falta de imaginação para soluções expeditas como estas, que responderiam à emergência, é um país esquizofrénico aquele que assim se comporta, enviando para a condição de sem-abrigo umas dezenas de favelados, enquanto alguns quadros superiores se refastelam em sumptuosas instalações… autoconstruídas, visto que o negócio, esta semana revelado pelo Observador, parte da iniciativa do próprio Banco de Portugal.
Paredes meias com a capital do País, o autarca Isaltino Morais que, diga-se o que se disser, ou pense-se o que se pensar dele, é um exemplo na construção de habitação social ou a custos controlados, fez logo um vídeo, chamando a atenção para a miopia centralista dos decisores políticos – e, neste caso, político-financeiros. Diz Isaltino que o BdP podia ter adquirido um espaço adequado por apenas dez milhões de euros no Tagus Park, em Oeiras, porque “Lisboa não é só Lisboa, é também a grande Lisboa”, e “estar em Lisboa ou em Oeiras é a mesma coisa”. O autarca recorda que, naquele complexo de serviços, já estão instalados o Novo Banco e o BCP e ali se podia formar uma espécie de “city” financeira à portuguesa. Isaltino está a puxar a brasa à sua sardinha, claro, mas o fio de pensamento tem lógica: a descentralização é uma balela. E já que se fala da Grande Lisboa, nunca passaria pela cabeça “social-democrata” de Mário Centeno construir a sede num local deprimido como o Bairro do Talude, pagando em contrapartidas, por exemplo, no apoio à construção de habitação social no concelho e inscrevendo o BdP no honroso rol de instituições ou empresas preocupadas com a vertente da “responsabilidade social”. Mesmo sabendo-se que uma tal opção, eminentemente solidária, poderia custar-lhe tuta-e-meia, em comparação com os milhões gastos no extenso quarteirão da Avenida da República, em Lisboa.
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No dia em que devemos conhecer a decisão do Governo sobre o novo governador do BdP – e, no momento em que escrevemos, até está em cima da mesa a eventual recondução do próprio Mário Centeno –, esta polémica mal explicada, ainda por cima, vinda de uma instituição que teve dois anos consecutivos de resultados negativos, abala as hipóteses de Centeno, por muito que Bruxelas “meta a cunha”, junto do Governo português, para que ele fique. Por acaso, face à divulgação do negócio, que envolve uma transação entre o BdP e quatro empresas do universo Fidelidade, foi o CDS, e não o PSD – “não me comprometa!”, como diria o outro… – o partido da coligação governamental a quem foi dada a missão de chamar o governador ao Parlamento. Na altura em que escrevemos este texto, não sabemos se ele lá irá ainda como governador do BdP – o que exigiria uma abordagem cautelosa dos partidos do Governo, na audição – ou já como ex-governador, o que dá rédea solta a PSD e CDS para lhe causarem o maior dano reputacional possível, tendo sempre em vista a ameaça política que um adversário deste calibre representa, sobretudo se vier a entrar no PS e, quem sabe, a liderá-lo, no futuro.
Em finais de fevereiro de 2020, a poucos dias do início do período de pandemia que viria a “fechar” a economia nacional, o ministro das Finanças, Mário Centeno, defendia, em entrevista à VISÃO, que o governador do Banco de Portugal não tem de ser um técnico, mas que “é um ator político da maior relevância”. Uma vez no cargo, o antigo ministro das Finanças deu coerência às suas teses sobre a forma como se deve exercer o mandato: não falando muitas vezes, teve sempre intervenções politicamente importantes, refreando os impulsos eleitoralistas de dois governos – o penúltimo de António Costa e o primeiro de Luís Montenegro –, recomendando prudência na concessão de apoios sociais e tendo, até, entrado em choque mais flagrante com o seu antigo primeiro-ministro quando, em pleno auge da inflação – na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia – subscreveu sempre as teses do BCE, sendo firme na defesa da subida das taxas de juro, contra as pressões de António Costa, do seu sucessor nas Finanças, Fernando Medina e, até, do Presidente da Repúlica.
Essa independência face ao poder que, como ministro, servira sem tergiversações forneceu-lhe um crédito que só reforçou o prestígio internacional que, ainda na pele de “Ronaldo das finanças”, granjeara em Bruxelas. A sua crescente gravitas fez dele um nome incontornável para uma candidatura a Belém (que recusou, causando um certo sentimento de orfandade no PS…) e o seu caminho não ficará por aqui. Dele disse, com ironia, Marcelo Rebelo de Sousa – que nunca lhe terá perdoado as falsas informações, na crise da nomeação de uma malograda administração da CGD, liderada por António Domingues… – que o “patinho feio [do governo de António Costa] se tinha transformado num cisne resplandecente”. No capítulo dos contos de encantar, o “palácio” previsto para servir de nova sede do Banco de Portugal é um cenário que a lenda de Centeno não dispensa. O terreno do Bairro do Talude, em Loures, talvez saísse mais barato do que o da antiga Feira Popular. Mas não era a mesma coisa.
No início dos anos 80 vivia em Miraflores, um bairro suburbano de Lisboa junto a Algés. Atrás do prédio onde vivíamos havia uma zona de barracas chamada Pedreira dos Húngaros, habitada sobretudo por imigrantes de Cabo Verde.
Para chegar à universidade tinha de apanhar o autocarro 50, que atravessava uma gigantesca área de barracas que ia de Algés até Pina Manique. Essa abrigava tanto migrantes internos como retornados das antigas colónias e imigrantes da mesma origem.
São memórias de um país distante, muito distante, mas a extraordinária mudança que muitos de nós vivemos não é muito antiga. Foi pouco mais do que ontem quando o Estado erradicou as barracas de décadas e conseguiu dar habitações dignas a uma parte importante da população. Também não foi há muito tempo que o poder autárquico (outra das fantásticas conquistas do 25 de Abril) seguiu a linha de persistir no caminho de fazer da habitação para todos um desígnio que não precisava de ser constitucional para ser assegurado. É só uma questão de mínima justiça social.
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Também faz parte das minhas memórias ir passar férias nos arredores de Paris. Ia para casa de uma prima do meu pai. Viviam muitos portugueses nessa vilória. Havia um café onde se bebia cerveja portuguesa e eram servidos petiscos da nossa terra. Ouviam-se os relatos dos jogos do campeonato português e A Bola, comprada num quiosque no centro de Paris, era lida e relida três vezes por semana. Nunca lá encontrei um francês sentado, mas assisti várias vezes ao silêncio incomodado dos portugueses quando lá entrava um por engano. Aquela gente morava e trabalhava em França, mas vivia em Portugal.
Eram os nossos irmãos que tinham fugido da fome e da falta de perspetivas de uma vida melhor. Foram estes meus compatriotas, e outros que conheci nesse café e noutros locais de Paris, que levaram muitos dias para percorrer o caminho que hoje se faz em duas horas; que passaram fome e frio, que gastaram as poucas economias que tinham ou se empenharam para pagar àqueles que os faziam passar as duas fronteiras, que tinham medo de ser apanhados e recambiados de volta para a miséria.
Quando chegavam, iam para as bidonvilles, bairros de lata nos arredores das grandes cidades. Trabalhavam no “batiment” (obras), faziam a “ménage” (empregadas domésticas), apanhavam fruta, lavavam louça em restaurantes, faziam o trabalho que os franceses não queriam fazer.
Foram estes portugueses e outros imigrantes de outros locais do mundo que ajudaram a França contemporânea a crescer e, ajudando a França e os franceses, ajudaram-se.
José Saramago tinha razão: somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Não admira que Luís Montenegro nunca tenha lido a frase antes de alguém a ter escrito para ele a dizer – como provou dizendo que era de Sophia de Mello Breyner –, porque claramente não percebeu o que disse.
Melhor, a atitude do primeiro-ministro pode ser a prova provada de que Saramago tem razão. Só alguém com uma falta de memória grave ou, no mínimo, sem consciência da memória coletiva pode ser o autor de uma lei de imigração que se esquece do que é a História do povo português, do povo de emigrantes que somos, do que foram os sacrifícios que quem teve de abandonar o País fez.
Se não chegassem as razões objetivas como a nossa necessidade absoluta de imigrantes para conseguirmos ter o País a funcionar, havia a memória de como também nós mandámos os nossos para outros lugares. Mais, o primeiro-ministro, como alta entidade política, tinha de ser o primeiro a tentar garantir o máximo de segurança e de bom acolhimento aos imigrantes. O facto é que está a criar um ambiente tóxico para quem para cá vem trabalhar.
A memória também deveria servir para nos lembrarmos de que não é a primeira crise na habitação que enfrentamos. Já tivemos mais do que uma nestes últimos 50 anos e o País estava muito menos preparado para as enfrentar, éramos mais pobres e tínhamos menos meios.
Não foi, porém, arrasando barracas – mesmo sem condições nenhumas – e deixando pessoas sem teto que se resolveram de forma digna os problemas. Cavaco Silva e outros procuravam primeiro soluções e só depois demoliam, não deixavam as pessoas ao relento apenas para mostrar que eram muito fortes e castigadores – o ar dos tempos ajuda e há quem troque valores por popularidade, mesmo que de forma iníqua.
Claro que por essa altura havia uma noção que se foi perdendo: a de que o Estado devia intervir de forma robusta para assegurar direitos básicos. Que a sacrossanta lei da oferta e da procura não resolve tudo, longe disso, sobretudo num mercado em que a procura é global e a oferta local.
A crise na habitação está longe de ser um problema apenas português, mas em nenhum outro país daqueles com os quais gostamos de nos comparar se foi tão longe na febre desmanteladora do papel do Estado. E isso foi comum no que ainda se designa de direita e esquerda.
E sim, a habitação é um ótimo exemplo disso. Portugal tem cerca de 2% de habitação pública que é, a par de Espanha, de longe, o mais baixo rácio entre os tais países.
Para quem acha que o Estado tem um papel insubstituível na sociedade, é exatamente para solucionar situações como a que atravessamos na habitação que ele deve atuar. Quando fenómenos económicos e sociais mais ou menos inesperados acontecem e precisam de soluções rápidas que só o poder do Estado pode resolver.
No fundo, vamos dar sempre à memória: a das coisas que se fizeram mal e bem, o que se fez e o que não se fez. A conclusão é triste: ou não temos memória ou tendo-a não aprendemos nada ou muito simplesmente perdemos mais do que a memória, perdemos a humanidade e a decência.
“Se tu és João,” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.” Em 1967, Pedro Alvim era jornalista do Diário de Lisboa, na noite em que choveu em Lisboa o mesmo que num ano inteiro. Coube-lhe fazer a reportagem, no meio da lama e dos destroços das barracas. Era uma espécie de naufrágio da pobreza. Mas Pedro Alvim percebeu a importância que a dignidade tem na morte, quando ela não foi possível em vida. Agarrado a um telefone de moedas, foi queimando fósforo atrás de fósforo, para iluminar a lista com os nomes dos mortos e recitá-la sem falhas para a redação, para que ela pudesse ser publicada no jornal do dia seguinte.
Num país feito cego pela censura, há um desespero tocante na aflição do repórter, que quer ser exato, que percebe exatamente a importância de o ser. “Ouvia o choro dos vivos, ouvia o silêncio dos cadáveres, ouvia a noite lá fora – Depressa! Depressa! – diziam-me do jornal – Depressa que é para a terceira edição! Iam-me faltando as moedas de cinco tostões, sentia-me aflito, pedia que me trocassem moedas de cinco, dez escudos”, escreveu Pedro, numa crónica que nos deixa sem fôlego quando, exausto, o jornalista chega ao fim da tarefa e percebe que o cigarro pelo qual anseia não será possível. “Os mortos tinham queimado todos os meus fósforos.”
Os mortos, aqueles mortos, incendiaram uma parte do País. Eram demasiados para serem varridos para debaixo do tapete da censura. Viveram escondidos, por um regime que glorificava a pobreza honrada e escondia a miséria abjeta. Cadáveres tornaram-se estátuas de lama, visíveis e incómodos.
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Vim ao mundo muitos anos depois de estas almas terem partido, mas li muitas vezes os relatos dos que naquelas cheias de 1967 ganharam a consciência política que lhes faltava. Quando a chuva arrastou as barracas de Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Arruda dos Vinhos, foram vários os jovens universitários que se mobilizaram para, com pás e galochas, ajudar na limpeza dos dias que se seguiram. Vindos do privilégio imenso que era ascender ao Ensino Superior numa época de analfabetismo, descobriam ali um país que não conheciam. O País onde a alegre casinha era, afinal, uma triste barraca.
Pensei muitas vezes nisto nos últimos dias, enquanto via as imagens das demolições no Bairro do Talude, em Loures. Pensei na aflição do Pedro Alvim, percebendo a importância do jornalismo, enquanto nas redes sociais lia os habituais comentários alarves sobre o “jornalixo”, escritos na maior parte das vezes por bots comandados por aqueles a quem a verdade incomoda, porque vivem da ignorância.
Pensei no sobressalto do Portugal que em 1967 amanheceu para ver o pesadelo em que tantos portugueses viviam, escondidos. Pensei nos jovens privilegiados, de galochas e pás, chafurdando numa lama que não conheciam, para aí reconhecer a humanidade dos mortos e, assim, perceber a importância de lutar pelos vivos, enquanto nas caixas de comentários se multiplicavam como escarros os ataques aos miseráveis que vivem em barracas.
A facilidade com que se ataca o pobre que vive do esquema que lhe permite sobreviver é talvez diretamente proporcional à admiração que tantos sentem pelo esquema do milionário que nos faz empobrecer. Os malandros que vivem debaixo de uma telha de zinco, na esperança de que alguém lhes dê uma casa, parecem sempre mais desprezíveis do que os empreendedores que fogem aos impostos, obrigando os mais pobres a pagar mais, que exploram quem para eles trabalha, que tendo tido todas as vantagens dos privilegiados fazem discursos compungidos sobre o sangue, o suor e as lágrimas que nunca conheceram.
Pensei nos jovens privilegiados, de galochas e pás, chafurdando numa lama que não conheciam, para aí reconhecera humanidade dos mortos
Há uma diferença grande entre 2025 e 1967. Aquilo que antes não nos deixavam ver é o que agora escolhemos ignorar. E, se antes, a pobreza nos parecia uma injustiça, hoje ela pertence à ordem natural das coisas. Os mais fortes sobrevivem, os mais fracos sucumbem. E o grande prazer que há é o de estar um pouco acima na escala da miséria.
Os pobres tornaram-se os guardiões do privilégio. Endoutrinados sobre a escassez e o mérito, entram numa competição desenfreada com outros pobres. Sem nunca lhes ocorrer olhar para cima e questionar a desigualdade, contentam-se em garantir que os outros pobres mais pobres são devidamente castigados. Sentem-se vingados quando veem nos escombros de uma barraca demolida a mãe e a criança negras, desamparadas, preparando-se para uma noite ao relento. “Porque a mim nunca ninguém me deu nada.”
O outro deixou de ser alguém em quem nos reconhecemos. O outro é o inimigo e não o nosso espelho. O outro é concorrência e não um braço que se pode juntar ao nosso, numa construção coletiva. Caímos na armadilha do isolamento, do cada um por si. E é por isso que ao mínimo apelo à humanidade, lá aparece alguém indignado. “Se estás tão preocupada, porque é que não recebes estas famílias em tua casa?” A pergunta é retórica, feita em tom de insulto, à procura de apontar o dedo a uma falha moral. E, no entanto, vale bem a pena debruçarmo-nos sobre ela. É a pergunta de quem não se sente parte de uma comunidade, de quem não percebe nada do que são direitos e construção coletiva de uma sociedade, de quem consegue no máximo conceber a caridade, mas nunca a ideia de um país construído sobre os alicerces de uma justiça social.
Não sei se lhe chame irónico, se lhe chame triste, mas o que é certo é que são os autores destes comentários (quando eles são mesmo de carne e osso e não só perfis falsos e manipulados) quem na maior parte das vezes mais tem a perder com esta ideia de ódio e divisão. Muitos deles são pobres, trabalhadores esforçados, explorados, lutando por uma vida melhor, que seria muito mais fácil se percebessem o logro do caminho para onde querem levá-los.
Quando, em 2017, o Comité Olímpico Internacional (COI) concedeu a Los Angeles a sede e organização dos Jogos Olímpicos de Verão de 2028, o presidente do organismo, Thomas Bach, classificou-a como “uma oportunidade de ouro” para todos os envolvidos. Entretanto, agora que Kirsty Coventry assumiu o cargo no lugar de Bach no COI, muita coisa mudou.
Em janeiro, Los Angeles foi atingida por incêndios florestais mortais. Nesse mesmo mês, um desastre natural diferente tomou forma com o regresso de Donald Trump à Casa Branca. Bach já havia elogiado Los Angeles pela sua “forte fundação”, mas essa fundação ruiu sob o peso dos incêndios florestais, uma crise orçamental em toda a cidade e um Presidente instável, cujos agentes de Imigração e Alfândega parecem ter chegado diretamente de um assalto a uma loja de bebidas para incutir medo em Los Angeles.
Os Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028 são agora um desastre em câmara lenta.
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Pouco antes da sua tomada de posse, Trump garantiu a Casey Wasserman, presidente do Comité Organizador LA28, que “estes são os Jogos Olímpicos dos Estados Unidos da América”, acrescentando: “Estes Jogos são mais importantes do que nunca para Los Angeles e eu irei apoiá-los de todas as formas possíveis, tornando-os ainda maiores.” Assim, em março, falando ao COI, Wasserman insistiu que “independentemente da política atual, os Estados Unidos da América estarão abertos e recetivos a todos os 209 países para os Jogos Olímpicos”. E acrescentou: “Los Angeles é a cidade mais diversa da História da Humanidade e, por isso, receberemos pessoas de todo o mundo e daremos a todas um ótimo momento.”
Por um lado, isso pode ser verdade. Trump dificilmente desperdiçará a oportunidade de se envolver em “sportswashing”: usar o desporto para se autopromover no cenário global, enquanto alimenta o nacionalismo, reforça o aparato de segurança do Estado e desvia a atenção dos problemas sociais domésticos. Trump frequentemente reclama sobre como os Jogos Olímpicos de Verão de Los Angeles 2028 e o Mundial de Futebol de 2026 estão entre os acontecimentos do seu segundo mandato que mais fazem o seu coração fascista disparar. Organizar aqueles dois megaeventos é uma oportunidade única numa geração para se poder ganhar importância no cenário mundial. Aliás, durante o seu primeiro mandato, Trump garantiu aos organizadores dos Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028 que o governo federal garantiria a segurança para proteger o evento.
Por outro lado, dizer que Trump é errático é um eufemismo olímpico. Além disso, ele tem um incentivo intrínseco para dificultar a vida do governador da Califórnia, Gavin Newsom – seu inimigo perpétuo e possível candidato presidencial democrata em 2028 –, e da presidente de câmara de centro-esquerda de Los Angeles, Karen Bass. No mês passado, o vice-presidente JD Vance caiu de paraquedas em Los Angeles e imediatamente assumiu o modo cão de fila, considerando que a reação ativista contra os ataques das autoridades de Imigração e Fronteiras foi “uma tragédia” criada por Newsom e Bass. “Havia pessoas que faziam o simples trabalho de aplicar a lei”, disse ele, “e havia manifestantes, incitados pelo governador e pela presidente de câmara, para lhes dificultar o trabalho”.
Os habitantes de Los Angeles também estão à mercê do governo Trump de outras maneiras. Os organizadores dos Jogos apostam em arrecadar cerca de 3,2 mil milhões de dólares em financiamento federal para transporte, crucial para o bom andamento das competições. Mas o secretário de Transportes de Trump, Sean Duffy, ameaçou recentemente cortar o financiamento para cidades como Los Angeles, que sofreram protestos contra o plano de deportação de imigrantes. Um juiz federal emitiu uma ordem temporária suspendendo o plano, mas os republicanos do Congresso têm uma enorme influência sobre a torneira fiscal, e este é um momento claro de pressão para os liberais que eles dificilmente desperdiçarão.
Mas mais alarmante é o facto de Trump e Vance terem uma arma secreta no seu arsenal: a designação de Evento Nacional de Segurança Especial (NSSE), ou seja, quando um evento como os Jogos Olímpicos, o Super Bowl ou um desfile militar egoísta é designado como NSSE por um Presidente ou o seu Departamento de Segurança Interna, isso gera ampla margem de manobra para uma série de agências federais, incluindo o Departamento de Imigração e Alfândega.
Poucos sabem isso, mas o NSSE para Los Angeles 2028 já está em vigor. Em 2024, o então Presidente Joe Biden designou as Olimpíadas de Los Angeles 2028 como um Evento Nacional de Segurança Especial, cerca de quatro anos antes dos Jogos – o maior período de antecedência para um evento desde que Bill Clinton criou a designação no final da década de 1990.
Pessoas comuns em Los Angeles, assim como os seus representantes eleitos, precisam acordar para a realidade de que essa sigla relativamente desconhecida está prestes a mudar as suas vidas, se é que já não está a mudar. Afinal, cerca de 900 mil pessoas sem documentos vivem em Los Angeles, de acordo com a Universidade do Sul da Califórnia.
Sejamos claros: o status de Evento Nacional de Segurança Especial apenas reforça a impunidade. A repressão aos protestos do organismo de Imigração e Fronteira, com a participação da Guarda Nacional e dos Fuzileiros Navais, oferece aos moradores de Los Angeles uma visão frontal de como poderá ser a “segurança” desse megaevento nos próximos três anos.
Os NSSE também permitem o sigilo. Quando a vereadora de Los Angeles, Imelda Padilla, perguntou recentemente ao chefe do Departamento de Polícia de Los Angeles, Jim McDonnell, se ele estaria disposto a avisar as autoridades municipais caso soubesse de futuras rusgas policiais federais de imigração, a resposta de McDonnell fez disparar o alarme: “Está a pedir para o avisar acerca de uma ação de fiscalização decidida por outra agência antes que ela aconteça? Não podemos fazer isso.” Ele acrescentou: “Isso seria completamente inapropriado e ilegal.” Mas essa postura é apenas um discurso padrão de obstrução da justiça? Ou está entrelaçada com as hierarquias do Evento Nacional de Segurança Especial?
McConnell pode ter-nos dado uma pista quando disse: “Todos os crimes que investigamos podem ser potencialmente em parceria com [agências federais].” O chefe de polícia acrescentou: “É uma parceria e, sem ela, não poderíamos participar no Mundial de Futebol, nos Jogos Olímpicos… que exigem que trabalhemos com parceiros federais, estaduais e locais.” Grandes questões permanecem sobre como a designação NSSE já está a afetar o policiamento em Los Angeles. Quanto mais nos aproximamos das Olimpíadas, mais urgente essa questão se tornará.
Para complicar ainda mais a situação para os organizadores dos Jogos LA28, o governo Trump elaborou planos para instituir uma nova proibição de viagens que afeta países como Irão, Haiti e Líbia. Em seguida, anunciou que mais 36 países poderiam ser submetidos à proibição. Todos os países descritos nas listas de proibições de viagens de Trump – todos os 48 – enviaram atletas para os Jogos de Paris 2024.
Em seguida, o governo Trump negou vistos a jogadoras e membros da seleção feminina de basquetebol do Senegal, forçando a equipa a cancelar a viagem, apesar de ter planeado um estágio de treino nos EUA como preparação para as eliminatórias olímpicas de Los Angeles 2028.
Que momento para Kirsty Coventry assumir o COI. A primeira mulher e a primeira africana – ela vem do Zimbabwe – eleita para a presidência, Coventry enfrenta um misógino e um valentão como Donald Trump. A Carta Olímpica afirma claramente que “o papel do COI”, de acordo com sua missão, é “agir contra qualquer forma de discriminação que afete o Movimento Olímpico”. Será que Coventry enfrentará Trump e defenderá esses princípios? É isso que se exige de uma verdadeira liderança. E só então uma nova era no COI realmente começaria.
Na pele de estudante universitária, Vanessa Lopes pensou ser caso único na comunidade cigana, “a ovelha negra da família”. Escolheu o curso de Ciências da Comunicação, com especialização em Jornalismo, depois de muito persistir para ali chegar: os pais nunca acreditaram nos estudos e desviaram-na da escola após o 9.º ano; já antes faltara inúmeras vezes às aulas e, daí em diante, acumular-se-ia muito mais matéria para recuperar; habituara-se a ouvir, dentro e fora do círculo próximo, que a universidade não era para pessoas como ela.
Por alguma razão “inevitável” que, aos 30 anos, ainda não consegue determinar, esta lisboeta nunca se resignou perante tal sentença. Durante a adolescência, era a primeira a recriminar-se por não seguir o caminho tradicional. “Porque é que não és como as outras meninas à tua volta? Porque é que não és normal?”, questionava-se, à medida que o conflito interior crescia. “Não tinha acesso a nada, mas ia à escola e gostava. Pensava: ‘É impossível eu ter vindo ao mundo simplesmente para casar, ter filhos e, basicamente, ser dona de casa’.”
O desassossego precoce de Vanessa, sustentado no fascínio pela aprendizagem, persegue-a até hoje, que frequenta o mestrado em Ciência Política, no ISCTE, em Lisboa. “Senti necessidade de adquirir conhecimento mais teórico e de me enfiar nos livros”, justifica, depois de ter concluído uma licenciatura “mais prática” em Jornalismo, na Universidade Autónoma de Lisboa, ao longo da qual haveria de descobrir outros ciganos no grande mundo universitário.
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Persistência Ex-feirante e antigo beneficiário do Rendimento Social de Inserção, Bruno Prudêncio é agora técnico superior em Educação Social. Foto: Lucília Monteiro
Como ela, a maioria enfrenta a chamada síndrome da “geração solitária”, que reflete precisamente a ideia, já desfasada da realidade mas ainda muito enraizada e desencorajadora, “de muitos jovens ciganos e ciganas pensarem que são os únicos no Ensino Superior”, elucida Bruno Gonçalves, vice-presidente da Letras Nómadas, Associação de Investigação e Dinamização das Comunidades Ciganas, com sede na Figueira da Foz. Foi ele um dos mentores do OPRE (Programa Operacional para a Promoção da Educação), um programa de bolsas estatais para cobrir despesas escolares, dirigido a estudantes universitários desta etnia (ver caixa Como funciona o programa de bolsas), que vai no nono ano letivo e que já contribuiu para 40 licenciaturas, 10 mestrados e 12 cursos técnicos superiores profissionais. Definitivamente, o tempo dos casos isolados expirou.
Vanessa está no grupo dos já licenciados e também no dos 34 bolseiros aprovados para o ano letivo 2024/2025 que, segundo a referida associação, contemplou cinco mestrados, uma pós-graduação em Migrações e Intervenção Social e seis cursos profissionais, além de 22 licenciaturas em áreas tão distintas como Engenharia Mecânica, Gestão, Direito, Turismo, História da Arte ou Medicina. Neste último exemplo, o aluno completou o sexto e último ano do curso (antes da especialização), o que significa que a comunidade já pode gabar-se de ter o seu primeiro médico formado em Portugal.
Orgulho e preconceito
A escassez de referências como estas, ou como as dos irmãos gémeos Salvador e Vicente Gil, realizador e ator que também beneficiaram do OPRE, dita rumos e sentenças. Tanto que, em 2014, durante um encontro de jovens e famílias ciganas promovido pela Letras Nómadas, foi logo identificada como uma causa relevante “para o insucesso e o absentismo escolar”, recua Bruno Gonçalves.
Daí saiu a ideia, em parceria com a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres e com a Fundação Calouste Gulbenkian, de incentivar e preparar potenciais candidatos à universidade, por via de um programa para maiores de 23 anos (transversal a toda a população) que permite o acesso através de provas específicas exigidas por cada instituição de ensino, sem necessidade de os alunos realizarem os exames nacionais do 12.º ano. Dos 15 indivíduos que manifestaram interesse em receber explicações para o efeito, dez acabaram por entrar no Ensino Superior, naquele que seria o embrião do atual projeto que une a AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) à Letras Nómadas e que tem em Bruno Gonçalves o seu coordenador.
“Queremos que os jovens ciganos entendam que é possível contribuir para a sociedade sem perdermos aquilo que nós somos. Claro que não há culturas perfeitas, mas ninguém nos pode tirar o orgulho na nossa identidade cultural nem de sermos portugueses”, diz o responsável, de 49 anos e licenciado há sete em Animação Socioeducativa, esperançado em que os estudantes universitários de agora possam “abrir caminho, de alguma forma, para que as futuras gerações tenham uma vida melhor”.
Na família de Vanessa Lopes, a resistência de outrora deu lugar a uma abertura inédita. “A minha irmã tem 18 anos, terminou o 12.º ano e vai para a faculdade”, alegra-se a pioneira, que não culpa os pais por lhe terem criado entraves no passado. “Era o que eles acreditavam que seria o melhor para mim e, de certo modo, o meu percurso fez-lhes perceber que a vida já não é o que era e que estamos em constante evolução.”
Como funciona o programa de bolsas
O programa OPRE (Programa Operacional para a Promoção da Educação) é uma parceria entre a AIMA e a associação cigana Letras Nómadas com o objetivo de incentivar estudantes provenientes das comunidades ciganas portuguesas a frequentar e a concluir o Ensino Superior. No ano letivo 2024/2025, foram preenchidas 34 das 35 vagas disponíveis para a atribuição de bolsas de estudo que “visam exclusivamente financiar os encargos suportados com despesas relativas a inscrições, propinas, material escolar e deslocações”, segundo o regulamento.
Os valores máximos anuais das bolsas contemplam €1 500 para estudantes inscritos em licenciaturas e em cursos técnicos superiores profissionais, €1 750 para mestrados ou €2 000 para doutoramentos, neste último caso ainda à espera do primeiro candidato, o que deve acontecer no próximo ano letivo. Todas as despesas só são pagas mediante apresentação de faturas, tendo ainda os alunos de cumprir algumas condições obrigatórias.
Uma é a presença em três encontros anuais, nos quais os bolseiros são desafiados a debater um tema da atualidade, enquanto se capacitam de “soft skills necessárias para alcançar o sucesso no seu percurso académico, prepará-los para os desafios inerentes à frequência no Ensino Superior, bem como à inserção na vida ativa, num processo de empoderamento”. Outra é a participação em ações de natureza cívica.
Ao longo do ano, o coordenador do projeto, Bruno Gonçalves, e dois mediadores asseguram os contactos com os bolseiros e respetivas famílias, no sentido de assegurarem a melhor execução do programa. Os alunos que não tiverem um mínimo de 50% de aproveitamento não podem candidatar-se à bolsa no ano letivo seguinte.
Ao atingir a maioridade, Vanessa foi viver sozinha e começou a trabalhar num call center para pagar as contas. Em simultâneo, regressou à escola a fim de completar o 12.º ano, o que conseguiu após várias tentativas. Sem nunca desistir dos estudos, adiou a universidade até aos 23 anos. À época, desconhecia o OPRE – que viria a pagar-lhe as propinas a partir do segundo ano do curso e a permitir-lhe conhecer outros ciganos atrás do canudo, de norte a sul do País, durante os habituais encontros entre bolseiros – e decidiu juntar dinheiro antes de dar o grande passo. Nesse hiato, conta, esteve ligada a alguns projetos televisivos, sempre atrás das câmaras, por exemplo no programa Querido, Mudei a Casa!.
Trabalhava já na SportTV, ainda em funções técnicas, quando escolheu seguir Jornalismo. Durante a licenciatura, fez estágios na Agência Lusa e no jornal Público. Apostou, igualmente, numa formação em Jornalismo Televisivo, no Cenjor, mas sentiu, aos 26 anos, já licenciada, que seria difícil entrar nesse mercado de trabalho, a sua grande paixão. “No geral, é complicado para toda a gente”, concede. “Enviei currículos, mas nem obtinha respostas. Acabei por desistir.”
Tentou, depois, enveredar por assessoria de imprensa e marketing numa agência, mas depressa se demitiu para se lançar “por conta própria”, sendo agora palestrante em empresas e em escolas, com foco em temas como diversidade e inclusão. A somar a isso, fundou a Associação Cigana Rizoma, sempre à procura de rebater “narrativas dominantes” na sociedade, enquanto termina o mestrado em Ciência Política e hesita se há de voltar a tentar a sorte na área em que se formou.
Sombras e luzes
“Bruno Prudêncio, português de etnia cigana, ativista étnico.” Era assim que este fortuito natural de Coimbra se apresentava na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, após ter sido admitido, já trintão e pai a dobrar, no curso de Educação Social. O ex-feirante e antigo beneficiário do RSI (Rendimento Social de Inserção) voltava a apostar nos estudos para melhor sustentar a família, aproveitando, sempre que possível, para tentar mudar a imagem da comunidade em meios menos comuns.
“Enquanto licenciado, existem mais oportunidades, embora todos os problemas ligados à minha pertença étnica ainda persistam na cabeça de muita gente”, regista hoje, aos 43 anos, o técnico superior em Educação Social, mediador intercultural na Associação de Ludotecas do Porto, que presta serviços à Câmara Municipal do Porto.
Por opção própria, Bruno parou de estudar ao 7.º ano de escolaridade. A mãe adoecera e sentiu a responsabilidade de ajudar o pai nas feiras. Já era adulto, casado e pai quando voltou à escola, focado em encontrar outro ofício, uma vez que a vida de feirante se complicava cada vez mais. Através dos cursos EFA (Educação e Formação de Adultos), completou o 9.º ano e depois enveredou por uma formação profissional de três anos em multimédia para concluir o 12.º, que o entusiasmou até se convencer de que “o mercado de trabalho não está preparado para aceitar pessoas com as suas especificidades, nomeadamente ciganos”.
Desesperado, a receber o RSI, Bruno Prudêncio procurou então noutra área profissional e foi convocado pelo Centro de Emprego para ser cantoneiro na Junta de Freguesia de Baguim do Monte, em Rio Tinto, concelho de Gondomar, a sua zona de residência de sempre. Ao fim de “vários dias a carregar pedra e a limpar jardins”, cruzou-se com o presidente da Junta e não queria acreditar quando ele lhe disse que tinha estado a espreitar o seu currículo e o queria “de camisa e sapatos”, no dia seguinte, “porque estavam a precisar de alguém que soubesse mexer em computadores para trabalhar no atendimento ao público”.
Grato pela “oportunidade” e pela “sensibilidade humana” de quem o convidou, Bruno permaneceu durante cinco anos, até mudar a cor política na Junta. Uns meses antes, porém, tinha posto em marcha um plano alternativo, desafiado por Bruno Gonçalves, da Letras Nómadas, um velho conhecido. O coordenador do OPRE propusera-lhe o ingresso na universidade, e ele tratou de garantir a entrada em Educação Social, no regime pós-laboral.
Não chegaria a ficar um ano desempregado, até o chamarem, logo nos primeiros tempos da licenciatura, da Associação de Ludotecas do Porto, para trabalhar em alguns dos bairros mais desfavorecidos da cidade Invicta – por vezes, junto da própria comunidade –, precisamente no quadro da sua nova área de conhecimento.
“Entretanto, já passaram mais de seis anos, é uma loucura total. Mais uma vez, as pessoas acreditaram em mim. Eu não tenho nada de especial nem uma varinha mágica para abrir caminhos, apenas tive pessoas que foram luzes na minha vida”, salienta, elogiando o “visionário” Bruno Gonçalves, por “fazer de pessoas excluídas da sociedade, que vivem em contextos de pobreza e de segregação, nos chamados bairros sociais, estudantes universitários que atualmente são doutores, mestres e licenciados”.
Sem margem de erro
O mentor do OPRE não esconde que, entre os bolseiros, ainda vai havendo quem oculte a origem cigana, por receio de discriminação. Mas serão cada vez menos, acredita. “Há muitos que, por terem estudos, se orgulham ainda mais de serem ciganos”, sustenta Bruno Gonçalves, que se preocupa mais com a dupla pressão sentida por alguns: a que resulta do facto de serem “escrutinados e validados todos os dias pelos colegas”, sob risco de ficarem marcados ao mínimo deslize, e a que advém do “papel de embaixadores para outros” universitários que se seguirão.
Esta carga psicológica, com a qual nem sempre é fácil lidar, é alvo de especial atenção nos contactos diretos que o responsável e, sobretudo, as duas mediadoras do programa (uma para a região Centro-Norte e outra para a Centro-Sul) estabelecem com os estudantes, várias vezes por semana, no âmbito do acompanhamento de proximidade que é feito ao longo do ano. Como Bruno ilustra, “eles não têm de carregar esse peso nos ombros nem de irem com uma fita na cabeça a dizer que são ciganos”.
Nada os impede de se fazerem ver e ouvir, ainda assim, nos corredores das faculdades. Os mais familiarizados com a presença do povo cigano em Portugal, ao longo dos últimos cinco séculos, serão mais propensos a assinalar o que, à luz desse passado, só pode ser encarado como uma conquista social. No seu livro Conhece-me antes de me odiares: Notas sobre a História e Cultura Cigana, Bruno Gonçalves lembra como, logo em 1526, poucos anos depois de cruzarem a fronteira para este lado da Península Ibérica, a lei régia já impunha a expulsão do território deste povo nómada.
“Os ciganos da Península Ibérica, tal como noutros países da Europa, não conseguiram dos reis católicos qualquer tolerância ou benesse. Foram-lhes retirados os privilégios relativos à manutenção da sua condição de nómadas e de trabalhadores ocasionais e, mais ainda, os reis católicos, ao consolidarem o poder central, estabeleceram a lei e a ordem unificada, decretando medidas repressivas para forasteiros e vagabundos, o que, inevitavelmente, contemplavam os ciganos”, lê-se no livro, que elenca as principais leis decretadas contra os ciganos ao longo dos tempos, para concluir: “A visão romântica do cigano enquanto filho da estrada e do vento não é mais do que uma fantasia. As leis repressivas demonstram claramente que os ciganos são nómadas forçados, o que poderá explicar uma boa parte das assimetrias que tanto afetam os ciganos em Portugal. As consequências desta perseguição são várias, porque os ciganos, ao verem-se forçados a esconder-se e a passarem despercebidos, acentuaram o seu nomadismo, fortalecendo também mecanismos de defesa nas suas famílias e cristalizando regras e leis próprias, que foram um suporte para a sobrevivência do grupo.”
No seu percurso universitário, Bruno Prudêncio foi um dos que optaram por erguer a bandeira da comunidade. “Terei sempre gosto em desempenhar o meu papel de ativista, e na faculdade serviu para despertar as pessoas para a nossa presença. Chocava um pouco ao início, mas fiz lá amigos que no segundo e no terceiro ano já compreendiam e concordavam com a minha forma de reivindicação”, detalha alguém que tanto é rejeitado num táxi como alvo de injúrias por crimes cometidos por ciganos de quem nunca ouvira falar – mas recusa o “papel de coitadinho”.
Para enfrentar o “racismo muito direcionado” que vislumbra em crescendo na sociedade portuguesa, Bruno prefere elevar a fasquia e dar mais um passo que nunca imaginou ser capaz. “Uma vez que a política mexe diretamente na minha vida, tornei-me um ser político e ingressei no partido Livre”, anuncia, com a pompa de uma sentença e a circunstância indissociável de outros rumos que a sua vida tomou. “A capacitação de nós próprios abre-nos horizontes para novas lutas que dantes não conseguíamos entender. Quando adquirimos conhecimento, tornamo-nos mais críticos, mais reflexivos e ganhamos uma visão diferente dos problemas. Este populismo que agora se agregou à sociedade, para mim, é um enorme retrocesso social, e não se prende só com um partido.” Tomámos nota.
“Algumas famílias ainda não veem a universidade como trampolim”
Bruno Gonçalves, coordenador do programa OPRE, acredita que o Governo da AD vai manter as bolsas estatais
Qual a taxa de sucesso do programa OPRE? Não temos grandes níveis de insucesso. Alguns alunos ficam pelo caminho porque já estão casados e a questão financeira fala um bocadinho mais alto. Outros voltam. Normalmente, temos uma taxa de aproveitamento acima dos 70 ou 80 por cento. E tem havido mais mulheres licenciadas e mestradas do que homens.
Ao fim de nove anos, ainda há um certo desconhecimento do OPRE entre a comunidade? Com certeza que há. Em maio, ligou-me um jovem a terminar uma licenciatura no ISCAL, em Lisboa, que desconhecia o programa e quer aderir no mestrado. Por contraste, também é curioso o caso de dois jovens que se conheceram através do programa e que vão casar em setembro.
Teme pelo futuro do OPRE, com a viragem política à direita? Se continuarmos com este partido de centro-direita, acreditamos que há bom senso e coerência para perceber que é necessário, até um determinado ponto, para criar exemplos de mobilidade social e quebrar a questão da pobreza. Estamos num ambiente muito hostil, mas acreditamos nos bons portugueses. Se daqui a quatro anos não for preciso o programa, seria bom sinal.
Acredita que o OPRE pode mudar consciências no povo cigano em relação ao ensino? É uma pergunta de resposta muito difícil. Acredito que estes pequenos passos, de alguma forma, podem impactar no futuro. Atualmente, vão impactando algumas famílias, porque as famílias ciganas são muito heterogéneas e há algumas que ainda não veem no Ensino Superior um trampolim para uma vida melhor.
Com que idade se licenciou? Comecei o curso aos 39 anos e acabei-o em três, em 2018. Não valia a pena estar a dizer aos jovens para estudarem e não dar o exemplo. Depois, tirei uma pós-graduação em Mediação Intercultural, em contextos educativos. E agora estou a pensar, seriamente, em fazer um mestrado. Mesmo com 49 anos, não me posso acomodar.
As pressões da Casa Branca sobre a CBS têm sido evidentes, tal como a alegria de Donald Trump. Mas o cancelamento do programa humorístico a partir de maio do próximo ano tem também um racional económico. A verdade é que, apesar de apresentar audiências médias superiores às da concorrência, o programa de Colbert tem vindo a registar perdas na ordem dos 40 milhões de dólares por ano
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O Castelo de Hohenzollern parece tirado de um conto de fadas, desdobrando-se em torres e pináculos, guardados por muralhas, rampas e portões de ferro. Construído a 855 metros de altitude e a cerca de 50 Km de Estugarda, na Alemanha, é fundamental para perceber a história de Stephanie de Hohenzollern-Sigmaringen e entender melhor muitas das referências encontradas não só nas suas cartas como, também, nas memórias do conde de Lavradio, que o visitou na companhia da princesa logo no dia seguinte a ter pedido a sua mão em casamento em nome do rei D. Pedro V de Portugal.
Mas se impressiona visto de fora, é talvez ainda mais impressionante quando percorremos as salas que se encadeiam numa teia que parece não ter fim, ou subimos aos aposentos dos pais de D. Estefânia — o escritório do seu pai, o príncipe Karl Anton, o quarto de vestir da mãe, a princesa Josephine, com todos os detalhes que permitem perceber o luxo e o conforto a que Stephanie estava habituada. Afinal, este castelo era o berço da família de onde surge o primeiro imperador da Alemanha, que queria deixar bem claras as origens medievais da sua família.
No entanto, para um português, há um outro marco que toca fundo — neste episódio dos Lugares desta História falamos-lhe dele.
Esta série em vídeo e podcast, feita em parceria com a VISÃO, é também um incentivo a que faça as malas e vá conhecer estes lugares com os seus próprios olhos.
Em 2021, uma meta-análise publicada no Journal of Adolescent Health dava conta das investigações científicas, ao longo de 30 anos, sobre a educação sexual nas escolas. Foram escrutinados 80 estudos publicados em conceituadas revistas científicas e os resultados eram bastante claros.
Algumas conclusões: a educação sexual nas escolas ajudou a prevenir o abuso sexual de crianças, ajudando-as a identificar toques físicos seguros e toques abusivos; promoveu relações mais saudáveis, reduzindo a violência no namoro e ajudando a identificar as nuances e os limites do consentimento; reduziu o bullying homofóbico; ajudou a promover a aceitação das diferenças do outro, com respeito e tolerância, seja em relação à orientação sexual ou à identidade de género; teve um papel importantíssimo na prevenção de gravidezes adolescentes e na proteção contra doenças sexualmente transmissíveis…
Por último e talvez o fator mais importante para um público mais conservador, a educação sexual nas escolas contribuiu de forma decisiva para que os jovens iniciassem a sua vida sexual cada vez mais tarde. Não são estas conclusões que se atiram para o ar sem fundamento – como já se referiu, são retiradas de investigações científicas levadas a cabo durante três décadas. E também não se trata da análise de um só estudo: partiu-se de uma amostra de mais de oito mil artigos científicos para se analisarem, ao detalhe, 80.
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Claro que podemos não acreditar na Ciência, questionar tudo, vestir a capa do ceticismo, desconfiar de tudo e de todos, viver neste modo ataque ou fuga porque o mundo é uma selva e ninguém nos garante nada. Nesse caso, em que deve basear-se um governante para governar? No killer instinct, em crenças entranhadas nascidas de preconceitos, na vontade de manter o poder, na “escola da vida” ou mesmo, pasme-se, na ideologia! Nesse caso, também nos diz a voz da experiência: o fruto proibido é o mais apetecido. Está na Bíblia: é a maçã, a deliciosa maçã.
Essa maçã que as crianças de outros tempos procuravam às escondidas nas imagens das enciclopédias que os pais guardavam nas estantes; esta maçã que as crianças de hoje veem à vontade nos TikToks desta vida, de forma deturpadíssima, como se o sexo implicasse sempre alguma violência que caracteriza a maior parte da pornografia, o puxar de cabelos, as mãos na garganta… e não vamos mais longe.
Querem ser os pais a dar sentido a estas imagens, a contextualizá-las, a separar o trigo do joio para encontrar na sexualidade os princípios do respeito, da igualdade, do consentimento, da proteção da saúde? Na verdade não querem, uns poucos fazem muito barulho, exageram-se os conteúdos, puxa-se a disciplina de Cidadania para o campo da batalha ideológica e não há racionalidade possível neste debate.
Até agosto, vamos discutir a proposta do Governo de conteúdos da Educação para a Cidadania. As temáticas da sexualidade deixam de estar incluídas e há um reforço da componente literacia financeira e empreendedorismo. Estamos perante uma proposta bem pensada do ponto de vista pedagógico, fundamentada em estudos sobre o tema da sexualidade nas escolas? Era bom, era. Quantas vezes se tomam decisões políticas de forma racional? E quantas vezes se tomam com bases puramente eleitoralistas? Que falta fez a disciplina de Cidadania há 40 ou 50 anos!
Tanto Trump como Biden “trouxeram” Deus para a luta política. Depois de ter sobreviver a uma tentativa de assassínio num comício em Butler (Pensilvânia), a 13 de julho, Donald Trump declarou, na convenção republicana que o confirmou então como candidato à Casa Branca: “Estou diante de vós nesta Arena [em Milwaukee, Wisconsin] apenas pela graça de Deus Todo-Poderoso. E, ao ver as notícias dos últimos dias, muitas pessoas dizem que foi um momento providencial. Provavelmente, foi.”
Mas também Biden o fez, quando estava debaixo de forte pressão do seu próprio partido para desistir da candidatura à reeleição, em face das gafes recorrentes e das crescentes debilidades físicas e cognitivas reveladas, ao afirmar numa entrevista à televisão ABC News: “Se o Senhor Todo-Poderoso descesse e dissesse: ‘Joe, sai da corrida’, eu sairia da corrida. O Senhor Todo-Poderoso não vai descer.”
Este tipo de comportamento é normal na América, onde os presidentes prestam juramento com a mão sobre a Bíblia. Os americanos ascenderam à Modernidade pela via da religião, mas a velha Europa fê-lo pelo secularismo. Ainda assim, os estados modernos do continente foram construídos na lógica das igrejas nacionais, ligando a identidade nacional à religião enquanto marca identitária, a partir do campo religioso luterano, anglicano e ortodoxo. Mas também no caso católico, apesar da estrutura transnacional do Vaticano.
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Havia que estabelecer um elo de ligação entre os estados e os respectivos povos. Daí as religiões oficiais presentes na Dinamarca, Reino Unido e Grécia, por exemplo. Apesar disso, o facto de alguns países ocidentais terem optado por uma religião oficial não significa qualquer reflexo negativo nas liberdades cívicas e políticas dos cidadãos.
Numas dezenas de países em todo o mundo exige-se mesmo que o chefe de Estado assuma uma filiação religiosa concreta e específica, e ainda é mais complicado em países islâmicos onde o princípio da separação entre estado e religião é menos evidente ou inexistente. Tais estados não sofreram directamente a influência do constitucionalismo moderno, pelo que a ideia de separar estado e religião não vingou.
Israel, por sua vez define-se como “o lar nacional do povo judeu”, embora cerca de 20% dos israelitas sejam árabes, na sua maioria muçulmanos. Já a constituição da Índia prevê um regime secular e igualdade religiosa, todavia Narendra Modi tem-se esforçado por fazer do país a pátria dos hindus, em claro prejuízo das minorias religiosas.
Ao contrário do que muita gente pensa, a ideia da laicidade não teve origem na revolução francesa ou em qualquer outro movimento ou acontecimento político, mas sim de Jesus Cristo com o seu célebre: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Com tal destrinça, o Mestre Jesus definiu dois campos distintos: o reino dos homens e o reino de Deus. Os cristãos têm os dois pés assentes em ambos, são cidadãos do seu país e cidadãos desse reino espiritual, acerca do qual Jesus disse que não era “deste mundo”.
É por isso que a teologia do domínio e outras que andam à volta do assalto ao poder político por parte dos cristãos deve ser desconsiderada em qualquer circunstância e em qualquer parte do mundo, visto radicar num erro grosseiro de análise. A fé cristã genuína não anda em palácios mas no meio do povo. Não pensa em poder secular ou financeiro mas sim em poder espiritual. E muito menos pretende ascender ao poder dos homens a fim de fazer calar, perseguir ou banir os crentes que se inscrevem noutras paragens religiosas e ideológicas, incluindo o agnosticismo e o ateísmo.
Aquilo que se vai verificando um pouco por toda a parte, nalgumas lideranças do mundo cristão, é a confissão acabada da ignorância do que é o evangelho de Cristo, porque vivem e agem desfocadas da pessoa, discurso e obra daquele que dá nome à sua fé. É estranho mas é verdade. Olham para Cristo como se estivessem dentro da caverna de Platão, como uma sombra da realidade.
Há que voltar ao Evangelho. É urgente.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.