Se há um valor prezado em Portugal, esse valor é a coerência. A coerência de opiniões e atitudes sobretudo. A pior acusação que se pode fazer a alguém por lusas bandas é a de ter feito uma afirmação em sentido contrário a uma opinião expressa algures no passado ou de ter tido uma atitude contrária à sua opinião. Os portugueses são um povo de enorme confiança: têm sempre as mesmas opiniões e atitudes. Não mudam. Provavelmente devem ser exatamente as mesmas pessoas, com as mesmas opiniões e atitudes desde a nascença. Não mudam, não aprendem nem desaprendem, não arriscam e não fazem erros, não pioram nem melhoram. São como são.
Exagero, obviamente. Mas a coerência levada ao exagero é para mim pelo menos uma de duas coisas: algo definitivamente a evitar por razões óbvias de saúde mental e, geralmente, uma grande treta. É pela parte da treta que eu enveredo hoje.
Vem este preâmbulo a propósito de um estudo muito curioso com que me deparei, e onde Portugal, para não ser incoerente, mantem a tradição de me surpreender.
O estudo que refiro é o “Global Corruption Barometer” de 2017, o maior inquérito feito à escala mundial sobre a experiência pessoal direta de cidadãos com corrupção no seu dia a dia, com especial enfoque nos Governos (pode ser consultado aqui *1). Elaborado pela Transparência Internacional, merece atenção pela relevância que tem na criação de melhores níveis de consciência em redor do tema da corrupção nos vários países.
Mas deixemos as considerações e subjetividades e avancemos numa linha de raciocínio baseada em dados mais concretos.
O que apresento de seguida é baseado nos dados quantitativos do estudo que refiro acima, e podem ser consultados aqui *2). Dos países constantes no estudo, selecionei apenas um subconjunto de países da União Europeia.Comecemos pela perceção que os portugueses têm relativamente à importância da corrupção: os portugueses acham que a corrupção é um tema muito importante. Mais de 50% dos inquiridos acha que é um dos três principais temas que o Governo devia endereçar (ver quadro 1 abaixo). Um dos países da UE onde esta preocupação é maior, como se pode observar.
De seguida vejamos o que acham os inquiridos relativamente ao papel que o comum dos mortais pode ter na luta contra esse enorme problema que é a corrupção. Do quadro 2 abaixo vemos com alguma surpresa que, de acordo com este inquérito, os inquiridos portugueses são aqueles que mais fé têm no papel do cidadão comum na luta contra a corrupção. Animador.
Vejamos agora o que dizer relativamente à perceção dos inquiridos sobre a visão da sociedade sobre as denúncias de atos de corrupção. Mais uma vez Portugal se destaca dos restantes congéneres europeus. O quadro 3 diz-nos que ninguém mais que nós concorda ser altamente aceitável (recomendável?) a denúncia da corrupção. Invejável sentido cívico, o dos nossos concidadãos.
E agora chegamos à minha parte preferida: os portugueses e a sua inclinação para a denúncia de atos de corrupção. Do quadro 4 abaixo vemos que em nenhum outro país da lista há tanta vontade pessoal de denunciar casos de corrupção como em Portugal. Quem são os melhores cidadãos do mundo?
Por esta altura temos todos os motivos para estarmos satisfeitos. A acreditar na representatividade estatística dos inquiridos portugueses que responderam a este estudo, o nosso país tem tudo o que necessita para enfrentar o problema da corrupção.
Mas… há aqui algo que me morde o cérebro: se os portugueses são tão civicamente corretos relativamente à temática da corrupção, como chegamos a um ponto em que esses mesmos portugueses acham que a corrupção é um problema tão relevante na nossa sociedade?
Como é que inclinações tão moralmente corretas relativamente a esta temática, que certamente gerarão atitudes igualmente moralmente corretas quer na prevenção quer na denúncia da corrupção, fazem com que esta seja algo tão grave para o nosso país?
É caso para dizer que a bota parece não bater com a perdigota.
Por fim, ainda do mesmo estudo, há um dado que talvez nos ajude a perceber as dúvidas que coloco acima. No quadro 5 abaixo pode-se perceber a distribuição percentual das respostas à questão “Porque não denunciam as pessoas atos de corrupção?”.
Achando já ter excedido a minha quota de opiniões subjetivas neste artigo, deixo a interpretação deste último quadro aos leitores, acrescentando apenas um dado que o quadro acima não transmite: Portugal é país (dos analisados por mim) onde a razão “As pessoas têm medo das consequências” atinge maior expressividade percentual de inquiridos.
Será devido à coerência? Ou devido à treta?