“O debate sobre o Programa de Governo arrisca-se a ser um exercício estéril, uma vez que o documento mantém-se praticamente igual ao que foi sufragado pelos portugueses nas eleições de 30 de janeiro, sem ter sido atualizado com a nova realidade criada pela invasão russa da Ucrânia, iniciada a 24 de fevereiro”. Esta foi a ideia defendida por Rui Tavares Guedes, diretor executivo da Visão, que manifestou as suas dúvidas sobre um programa pensado para o pós-pandemia ainda faz sentido em tempo de guerra. “O verdadeiro Programa de Governo só vai ser conhecido daqui a dois meses. Chama-se Orçamento do Estado”, sublinhou. Na sua opinião, o debate parlamentar vai ser uma espécie de proforma, já que nas 180 páginas do documento, pensado como plano estratégico para os mais de quatro e anos e meio da legislatura, quase não foram introduzidas mudanças no texto, de acordo com a nova realidade mundial”. E nota que o programa só refere três vezes a palavra “invasão” e 43 a palavra “pandemia” (“inflação”, acrescenta o editor-executivo Filipe Luís, “nem uma única vez aparece”).
Para o jornalista Nuno Miguel Ropio, há “temas no programa do governo que já vêm desde o primeiro governo da Gerigonça, que se mantiveram como prioridades em 2019, e voltam agora a ser reapresentados nos mesmos moldes, como se não tivéssemos tido uma pandemia e agora uma guerra à porta”. “Depois olha-se para o programa e não se consegue vislumbrar grandes prazos de concretização: ou seja, diz-se que se quer fazer, mas não se percebe muito bem, mais do que como, ou quando”, disse, admitindo que se “o presidente da República classificou este programa como algo planeado para quatro anos e meio, que não seria imediatista, talvez não fizesse mal ser, exatamente, imediatista, para se conseguir perceber com o que se pode contar”.
Filipe Luís ressalva que o PS obteve a maioria absoluta com base num programa amplamente sufragado nas urnas, e que é natural que queria aplicar esse programa – mas também estranha a ausência de adaptação do documento à nova realidade, apontando, sobretudo, as generalidades não calendarizadas nem quantificadas: “Há mais de 40 anos que somos governados por dois partidos com os nomes de ‘Socialista’ ou ‘Social-Democrata’ e, no entanto, temos um dos países mais desiguais da Europa. É um contra-senso histórico. Ora, um dos quatro vetores principais do programa, o ‘combate às desigualdades’, é referido em bonitas palavras, que podiam ter sido ditas há dez anos ou podem ser ditas daqui a dez anos, mas que não é concretizado…” Filipe Luís refere-se ainda, à moção de rejeição que o Chega vai apresentar: “Nunca a esquerda apoiará qualquer iniciativa do Chega. E a restante direita também não, porque não quer ir a reboque. E é isto mesmo que Ventura deseja, para poder dizer que foi o único a opôr-se verdadeiramente ao Governo do PS, apresentando uma iniciativa que, a ser aprovada, podia tê-lo derrubado…”
Sobre a sucessão no PSD, Nuno Miguel Ropio salienta que “os anticorpos de Montenegro no interior do partido poderão de novo impor-lhe uma derrota, como em 2020”. E pormenoriza: “Olhando para as eleições no PSD, em 2018, em 2020, e as de 2021, em que Rio correu contra Santana, depois contra Montenegro, e ainda contra Rangel, não me parece que Rui Rio tenha ganho por os militantes verem ali uma grande liderança com capacidade de derrotar o PS”. Já Jorge Moreira da Silva, que pode anunciar, também, a sua candidatura, “pode ser aquele que será acolhido pela raiz social-democrata e que tem uma aversão à linha neoliberal de Passos Coelho, linha que deixou muitos discípulos – entre eles, Luís Montenegro”.
Rui Tavares Guedes mostrou a sua perplexidade pelo longo período em que o principal partido da oposição vai estar a decidir quem o vai chefiar. “O PSD vai estar nos debates sobre o Programa de Governo e o próximo Orçamento do Estado com uma equipa B, que todos sabem que está a prazo”. Continuando na imagem futebolística, o diretor executivo da VISÃO disse que o atraso na eleição de um novo líder é algo que, de certa maneira, interessa a todos os potenciais candidatos: “O PSD parece aquelas equipas que começam a queimar tempo logo nos primeiros minutos de jogo, porque só estão interessados a ir ao desempate por penaltis – e, neste caso, os penaltis serão daqui a mais de quatro anos, nas legislativas.”
Filipe Luís destaca a notoriedade e capacidade de comunicação de Luís Montenegro, bem como a sua experiência política – “foi, durante anos, líder parlamentar” -, mas antecipa o regresso de um passismo muito confortável para uma fação mais “’ferrenha de militante do PSD, mas com pouca capacidade de crescimento eleitoral”.
Sobre a posição do PCP, Nuno Miguel Ropio aponta que “quando se começam a conhecer várias atrocidades cometidas no terreno pelas tropas russas, em que a consternação é generalizada, o PCP vir associar a Ucrânia – enquanto estado, e o seu presidente Volodomir Zelensky – a um incentivar da guerra é incompreensível”. Ou seja, “O PCP perdeu uma grande oportunidade estar calado, ontem, logo após a reunião da conferência de líderes…” Filipe Luís reconhece que os comunistas dizem desejar o que toda a gente deseja – a paz – mas “não apontam um caminho aceitável” para chegar lá chegar: “Na II Guerra Mundial também havia os partidários do apaziguamento. Se as suas teses tivessem vingado, teríamos paz, é verdade – a pax germanica, de Hitler. Será nisso que o PCP estará a a pensar, mas agora com a Rússia e com Putin?…”
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