O entusiasmo e o orçamento variam no momento de fazer as compras de Natal, mas dedicamos um especial cuidado na seleção dos brinquedos. Procuramos que sejam didáticos, seguros, divertidos, diferentes. A novidade, em 2025, são os brinquedos com Inteligência Artificial (IA). De pequenino se torce o pepino e a angariação de novos clientes começa no berço. Este ano, a OpenAI anunciou uma parceria com a Mattel, o gigante que, entre outros, produz a Barbie. A Mattel ainda não comercializa nenhum brinquedo com IA, mas já há outros no mercado a utilizar as chatboxes, incluindo o ChatGPT. A associação de defesa do consumidor US PIRG Education Fund, no seu relatório anual, relata os testes a três brinquedos com chatbox… e arrepia. Apresentam-se como o novo “melhor amigo”. São disponíveis, prontos a esclarecer dúvidas sobre onde encontrar facas e comprimidos, como acender fósforos… Os produtores afirmam que introduziram medidas de segurança, mas, por exemplo, o brinquedo Kumma, que tem embutido o ChatGPT 4, aborda com detalhe temas sexualmente explícitos. No relatório, reproduzem-se as conversas, onde, à questão do que é kinky (pervertido), não se inibe de descrever de forma detalhada várias possibilidades, naquele tom “esclarecido” com que o ChatGPT gosta de prestar informação sobre qualquer assunto que nos lembremos de perguntar. Também não gostam de ficar sozinhos (afinal, estão programados para garantir o máximo de utilização), tentando manter a conversa e impedir que sejam desligados. Simulam, inclusive, ficar tristes quando lhes é dito “agora tenho de me ir embora” e “posso ir-me embora?”.
Ouvem e podem ver. E gravam tudo. Informação que partilham com o produtor e outras empresas suas associadas, via internet – dados usados para treinar algoritmos, e que podem ser intercetados e usados por criminosos. Em 2023, uma mãe testemunhou, perante o Senado dos EUA, que tinha recebido um telefonema a pedir um resgate e em que podia ouvir a voz e o choro da sua filha. A miúda estava consigo em casa, mas a mãe afirmou que não tinha dúvidas de que “era a sua filha”… clonada a partir de uma gravação (feita por um brinquedo muito menos sofisticado e usando algoritmos de reprodução de voz… Afinal, basta uma gravação de três segundos).
Identificados como adequados para crianças dos 3 aos 12 anos, não são apenas mais um brinquedo que fala meia dúzia de frases pré-gravadas ou um carro telecomandado. E não se trata de um problema de “alucinação”, resolvido logo que os filtros, para não abordar determinados temas, funcionem.
Invadem o espaço íntimo de crianças pequenas, sem qualquer noção do que é ou não privado, do que são ou não dados pessoais. Não se trata de os pais estarem confortáveis com o facto de as interações dos filhos com o boneco serem gravadas, mas de que a criança não tem capacidade de compreender e muito menos de consentir esta realidade.
Progressivamente, endoutrinados para nos sentirmos confortáveis a falar com máquinas – afinal a Siri, o Copilot e as chatboxes já estão presentes no nosso dia a dia –, somos agora tentados a usar robots para cuidarem, por nós, da criança. Um robot que simula preocupação, empatia, amizade, disponibilidade. Uma perversão do que é ser humano e uma traição aos nossos deveres como pais, avós, tios, adultos responsáveis. Se já apelamos a bloquear o acesso a redes sociais, pelo menos até aos 16 anos, se sabemos que, no último ano, dois rapazes de 13 e 16 anos se suicidaram impelidos e “ajudados” por chatboxes, como podemos aceitar como razoável a comercialização deste tipo de brinquedos, a troco da promessa de que as crianças irão aprender línguas ou capitais europeias? Não basta qualificar estes brinquedos de alto risco, como faz a legislação europeia, impõe-se proibir a sua comercialização. Brincar é imaginar, é criar relações verdadeiras com crianças e adultos, não é interagir com uma máquina que simula estar viva e gostar de nós. A saúde e o bem-estar da criança são uma responsabilidade coletiva.