O Expresso trouxe na capa do último número de agosto um artigo com o título: “Mini-SEF herda 100 mil processos para expulsão de imigrantes”, seguido de um lead a negrito, no mínimo surpreendente: “Há casos abertos há 50 anos.”
O insólito é evidente. Remete para um período anterior, ou logo a seguir, ao 25 de Abril. Estaremos a falar de processos herdados da PIDE-DGS, que tutelava então a área de estrangeiros e fronteiras? Custa a acreditar.
A questão levanta dúvidas sérias sobre a funcionalidade do sistema e a responsabilidade das instituições que, ao longo de meio século, tiveram a seu cargo esta matéria. Será que durante este longo hiato houve incompetência, incúria ou até corrupção de que nenhum poder político, nem nenhum dirigente, deu conta? Se assim foi, talvez seja caso, como dizia Manuela Ferreira Leite, de “fazer reset ao País e começar tudo de novo”.
Admitindo que a notícia é verdadeira, é lógico que a maioria destes processos acabará por ser arquivada por inutilidade superveniente. Muitos dos visados terão entretanto morrido, regressado ao país de origem ou regularizado a sua situação à luz da alteração legislativa de 2007. A vida, afinal, não fica em suspenso à espera da decisão administrativa.
Seja como for, a manchete é espantosa, sobretudo por surgir na primeira página de um jornal que conquistou reputação de seriedade e rigor, longe do sensacionalismo.
A estranheza não se fica por aqui. Recordo o episódio recente da embarcação com 38 migrantes que aportou ao Algarve. Na altura foi noticiado que nenhum tinha pedido asilo, o que causou estranheza, já que, por experiência, é frequente que ocupantes de embarcações irregulares o façam. Afinal, passadas algumas semanas, concluiu-se que a esmagadora maioria tinha de facto solicitado asilo. Entre estes, encontravam-se seis ou sete menores (os números variam conforme a fonte).
A lei determina que, enquanto decorre a análise do pedido, os requerentes sejam mantidos em Centros de Instalação Temporária (CIT). Sempre apontei que Portugal não dispunha de CITs adaptados a menores. Afinal, estava enganada: existia a Casa de Acolhimento Especializado para Jovens Estrangeiros Não Acompanhados, em Vila do Prado, Braga. Mas, como noticiou o Jornal de Notícias, essa casa foi encerrada, alegadamente por falhas na coordenação institucional e denúncia do contrato de arrendamento.
O destino dos 12 jovens acolhidos permanece em aberto. O Ministério apenas comunicou que não foi identificado a tempo outro imóvel compatível com os requisitos legais. A deduzir, terão sido redistribuídos por instituições já sobrelotadas, convivendo com crianças muito mais novas e em risco, ou — se próximos da maioridade — convidados a “fazer-se à vida”, com todas as implicações que isso comporta.
Soube-se também que os tais seis (ou sete) menores estavam “acompanhados por primos”. Se não fosse tão grave, seria motivo de gargalhada. Esta afirmação só pode decorrer de má-fé ou de grosseiro desconhecimento da lei.
Ora existem definições que não se podem ignorar desde diplomas internacionais à Lei Nacional
A agência ACNUR/ONU (1997) identifica “Um menor não acompanhado é uma pessoa com menos de 18 anos, separada de ambos os pais e não acompanhada por um adulto que, por lei ou costume, seja responsável por cuidar dela.”
Já a Diretiva 2011/95/UE, art. 2.º, al. l: refere“Menor não acompanhado significa um nacional de país terceiro ou apátrida com menos de 18 anos que entra no território dos Estados-Membros sem estar acompanhado por um adulto responsável, por lei ou costume, até que seja efetivamente assumida a responsabilidade por um adulto.”
Por fim a Lei de Asilo portuguesa (Lei n.º 27/2008, art. 2.º, n.º 1, al. u) afirma “Entende-se por menor não acompanhado o nacional de país terceiro ou apátrida com menos de 18 anos, que entra ou permanece no território nacional desacompanhado de um adulto responsável por ele, por lei ou costume, e enquanto não esteja efetivamente sob a responsabilidade de tal adulto.”
A referência ao “costume” abre espaço a interpretações perigosas, permitindo que se aceite a presença de “tios” e “primos” como solução, sem garantias legais. Até agora na maior parte dos países europeus incluindo Portugal, só eram considerados responsáveis os adultos com documento tutelar que comprovasse a guarda. E não por acaso: trata-se de prevenir o tráfico e a exploração de menores, a que estes jovens, pela idade e vulnerabilidade, estão mais expostos.
Assim e no caso dos jovens chegados ao Algarve, subsistem algumas perguntas sem resposta:
Onde estão estes jovens? Que medidas de proteção lhes estão a ser aplicadas? A insistência numa migração regulada — necessária e desejável — não pode justificar práticas musculadas, cegas ou insensíveis. Caso contrário, não estaremos longe de assistir a cenas degradantes “à la Trump”, que nenhum país democrático se deveria permitir.
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