Dia 29.
Braços no ar, espera impaciente que lhe enfie a camisola, primeiro pela cabeça, depois pelo tronco. Alinho-lhe os cabelos loiros que se desgrenharam, quando me arregala os olhos muito séria e pergunta: “Mas se o mundo está parado, porque é que os galos continuam a cantar?”. Ao longe, a bicharada de um vizinho anuncia que a manhã já vai alta. Raramente os oiço, mas agora, por estes dias, parece que cantam mais alto. Passa-me pela cabeça a melodia dos pássaros no centro de Lisboa, que escutei no Instagram de um amigo, onde antes só ouvíamos buzinas e o burburinho da cidade.
Tento focar-me outra vez. O que lhe respondo? Acontece-me sobejamente com esta minha filha, a número quatro: ficar sem chão com as questões dela. Se calhar é porque tenho mais tempo para as ouvir. Ora são de uma inocência pura, ora são poéticas, ora são de uma sabedoria essencial. É extraordinário ver o mundo aos olhos de uma criança que só agora está a começar a juntar as peças do puzzle. A tentar tirar um sentido das coisas e decifrar como nos organizamos, quais as regras da família e da sociedade e quem são os maus e os bons desta história.
A Covid-19 é algo que ela aprendeu a temer pelos olhos os outros. Vê o medo estampado nas nossas caras quando ouve a contagem diária dos doentes e dos mortos e dos efeitos que tudo isto vai ter – tem já – na vida das pessoas. Um dia destes, à mesa, levou as duas mãozinhas de unhas roídas à testa e disse: “Párem com essa conversa. Já me está a dar dores de cabeça tanto ouvir falar desse vosso ‘coronóvirus’”.
Ficar fechada em casa não é coisa que aflija uma menina de seis anos. Só passou mesmo a detestá-lo quando percebeu que, por causa dele, não podia dar abraços aos avós e ir à escola visitar os amigos e a educadora. Imagino que, para ela, tudo isto seja como um filme da Frozen. Com uma palavra de ordem sabe-se lá de quem, o mundo ficou congelado, em stand by, à espera da indicação para regressar à normalidade. Agora nos filmes da Disney já não se diz Abracadabra, e eu não me lembro das palavras de ordem das novas heroínas princesas. Fora desta casa, da varanda e do pequeno quintal onde brinca, está pois, na cabeça da minha filha, um planeta congelado, à sua espera. Nesta idade só existe mesmo o que os olhos alcançam.
Ensaio a resposta de que o mundo não está parado, há muita gente a lutar contra este inimigo que é invisível, mas que é bem real. Amigos, tios, nós próprios que estamos também a trabalhar à distância. Tento passar-lhe a confiança possível com as poucas certezas que tenho. Se há coisa certa, é que o mundo vai continuar a girar, os pássaros a cantar, as crianças a rir, a primavera a florir, o verão a aquecer. Amanhã há de ser outro dia.
Dou-lhe um beijo na testa, mando-a para baixo. Deixo-me embalar na frase dela. Onde é que já ouvi isto? Até que se fez luz. Chamo-a, vou num instante ao Spotify, carrego no play. Meto o som demasiado alto como gosto de ouvir esta música, para sentirmos juntas a vibração e a força desta letra. Nunca é demasiado cedo para se aprender a gostar de Chico Buarque. Deve ter sido, aliás, com a idade dela que eu própria ouvi pela primeira vez esta canção. Canto alto, desafinada como sempre, mas com todas as minhas forças, e veem-me as lágrimas aos olhos. “Eu pergunto a você / Onde vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar”?
Sim, Apesar de Você, Coronavírus, amanhã há-de ser outro dia