Quando, na semana passada, Christian Horner foi ilibado das alegações de “conduta imprópria” em relação a uma trabalhadora da Red Bull Formula One Team, a primeira reação generalizada foi de que a investigação tinha de estar errada. Se não sabe do que estou a falar – com a campanha eleitoral a tomar conta da agenda mediática, muitos acontecimentos têm passado ao lado – faço-lhe um resumo: o CEO e Team Principal da Red Bull, atual campeão em título de Fórmula 1, foi acusado, a pouco mais de uma semana do início da temporada do desporto motorizado, de ter assediado uma funcionária, de longa data, da empresa. Não se soube, ao início, de que tipo de comportamento se tratava e a Red Bull contratou uma entidade independente para investigar o caso antes do início dos Grandes Prémios. Depois de terem sido ouvidos todos os envolvidos, Christian Horner foi considerado inocente. Na véspera da primeira corrida do ano, no Bahrain, as supostas mensagens trocadas entre Horner e uma das suas assistentes pessoais foram enviadas a todos os altos responsáveis da FIA e a várias personalidades do mundo da Fórmula 1. Uma das primeiras publicações a dar conta desta fuga foi a revista Fortune, mas, até agora, não foi possível confirmar a autenticidade das cerca de 60 imagens que mostram as (alegadas) trocas de mensagens entre Horner e (alegadamente) Fiona Hewitson. Foi precisamente à sua leitura que me dediquei depois de, no sábado, ver Max Verstappen garantir mais uma vitória no primeiro GP de 2024. Naquelas cerca de 60 capturas de ecrã – que terão sido feitas pela própria acusadora de Horner enquanto a conversas decorriam – vêem-se dois adultos a ‘flirtarem’ um com o outro, mas a verdade é que não se vê qualquer um deles a passar um limite para o qual o outro não abra a porta. Dois adultos que, de forma, à primeira vista, consensual, se envolvem numa relação de sedução pode ir contra os princípios morais de cada um – sobretudo porque ele é casado –, mas dificilmente é crime.
Perguntar-se-á o leitor por que razão trago este assunto à sua caixa de correio, logo hoje. Porque esta semana, para além de nos estarmos a preparar para ir às urnas, também estamos a preparar-nos para assinalar o Dia da Mulher. E, portanto, até ao final da semana vão ser recordados (e bem!) uma série de números e de dados que mostram como ainda há muito caminho a fazer, sobretudo em termos de assédio sexual contra mulheres. Mas este caso deixou-me a pensar na gravidade de não se entender exatamente o que é assédio e do impacto que isso tem nos casos que realmente precisam da nossa atenção e atuação. Primeiro ponto ( já escrevi sobre isto num outro fórum, há uns anos, de forma mais extensa): a sedução faz parte das interações sociais, sob diversas formas, em diferentes graus e com múltiplas motivações. Faz parte da comunicação (verbal e não-verbal) e negar isso é ignorar um aspeto básico de qualquer encontro. No contexto dessa interação podem esclarecer-se as motivações e avaliar os modos. E, consoante a sua interpretação, essa sedução pode gerar consentimento ou recusa. Em qualquer dos casos, a pessoa abordada deve ser livre de decidir como interpretar e reagir. Ora, nas mensagens a que tive acesso – e cuja autenticidade, volto a recordar, não está confirmada – a verdade é que Horner tentou seduzir, mas não foi afastado. Aliás, em vários momentos parece até ter sido incentivado a continuar com a sedução. “Mas ele é chefe dela”, dizem. Verdade. Mas se eu me sentir incomodada com a forma como o meu chefe me trata, não lhe pergunto: “que roupa queres que use no avião?” que vamos apanhar juntos para uma viagem de trabalho. Nem vou insistir para ficarmos no mesmo hotel quando ele marcou hotéis separados por “respeito os limites” traçados anteriormente.
Neste caso, ou respondo com silêncio às mensagens deste teor ou digo claramente que são despropositadas, pois embora o assédio sexual seja crime, segundo o 170.º Artigo do Código Penal Português, os contornos adensam-se assim que uma das partes torna clara a sua intenção e a vê desrespeitada pela outra parte.
Estou, naturalmente, a especular com base na informação que está disponível – e que terá sido divulgada por alguém com interesse em afastar Christian Horner da equipa, dizem os rumores. Temos de admitir que podem faltar mensagens e outros indícios, o que adensará ainda mais a trama deste imbróglio.
Mas estes casos, sobretudo tão mediatizados, correm o risco de tornar ainda mais céticos aqueles que já têm dificuldade em lidar com o flagelo do assédio sexual – que existe, é real e tem de ser acautelado.
O que me parece preocupante, nesta e noutras situações em que a responsabilidade parece estar distribuída equitativamente pelas partes e as investidas e insinuações sexuais se assemelham a um jogo de poker, é querer tornar num caso de polícia uma relação entre dois adultos que, tudo indica, decidiram seduzir-se mutuamente. Não tenho a certeza de que seja o caminho certo para prevenir que o assédio sexual seja mesmo levado a sério.
Estamos, naturalmente, a dissertar na base da especulação, porque – recordo mais uma vez – a proveniência das mensagens não está confirmada. Mas aquilo a que creio que este caso, tornado tão público, nos convida, é a recordarmo-nos de que o intrincado jogo da sedução é tão antigo como o Mundo. E que situações como estas ocultam, tantas vezes, esquemas mais complexos, convidando-nos a ser muito cautelosos nas certezas sobre a culpa e a inocência de cada um.
* Este texto foi originalmente publicado na VISÃO DO DIA de 5 de março, exclusiva para assinantes. Por motivos de atualidade está, excecionalmente, disponível a todos os leitores da VISÃO