Quantas gerações de mulheres e homens deste país não conheceram outra rotina que não o trabalho?
Quantos moços terão vindo para a cidade, fugindo ao peso de ser mais uma boca para alimentar, tentar a sorte, quem sabe, de uma vida melhor que a da terra, começando a fazer recados e fretes entre mercearias e tabernas, aguardando idade para entrar na fábrica?
Quantas moças terão ido para casas de família cuidar de outros meninos, ajudar na lida da casa enquanto ganhavam idade para outros ofícios com direito a um salário de miséria?
Foi muita gente. Começaram a trabalhar aos 12, 13, 14 anos, quase sempre sem descontos sociais, sem pensar no que iriam ser, a vida apenas a ser roubada pela infância e nos sonhos. Foram gerações inteiras de mulheres e homens, a trabalhar desde cedo, estômago (meio) vazio, cansaço acumulado nos músculos, a desejar o repouso e o trabalho sem chegar ao fim, e que hoje precisam de descanso, como antes precisavam do pão para a boca, e que, depois de tudo, arriscam-se a não ter velhice para parar, porque precisam, ainda, de trabalhar para uma reforma, até ao limite das suas forças. Se antes precisavam de pão, hoje pedem sossego, o gozo dos netos, voltar à terra de onde foram obrigados a partir ou simplesmente tempo para concretizar desejos e sonhos…
Talvez uma das conquistas mais importantes do regime democrático seja o sistema público, universal e solidário da Segurança Social, mesmo que ainda jovem face aos anos de contribuições da generalidade dos trabalhadores que hoje vão passando a reformados. O sistema não foi inicialmente desenhado para promover as carreiras mais longas (de 40 anos), mas à medida que se foi consolidando essa deveria ter sido a preocupação central: incentivar todos a descontar para todos. A valorização das longas carreiras contributivas, como se encontra consagrado em ordenamentos jurídicos de outros países, reflete o valor intrínseco da vinculação dos trabalhadores à Segurança Social, pelos seus descontos ao longo de uma vida de trabalho no financiamento da proteção social que lhe é devida por assegurar da solidariedade intergeracional. Este é, simultaneamente, um desiderato de proteção social e de incentivo às novas gerações de trabalhadores de inscrição na Segurança Social.
Mas no nosso país são inúmeros os exemplos de trabalhadores que iniciaram a sua vida laboral em pequenos, e que, apesar de 40 anos de contribuições, irão sofrer brutais reduções no valor das suas pensões, caso decidam reformar-se antes dos 66 anos de idade. É justo?
Quarenta anos de descontos representam 14 600 dias de trabalho, 116 800 horas de trabalho, uma vida inteira de desgaste físico e emocional e, na maioria dos trabalhadores, (quase) sempre mal remunerada. É de elementar justiça garantir o direito à reforma sem penalizações com 40 anos de descontos, aos trabalhadores da Segurança Social, mas também para os trabalhadores da Caixa Geral de Aposentações, considerando uma bonificação do tempo da idade da reforma para carreiras muito superiores a 40 anos de descontos.
É dito que não há dinheiro. Mas há sempre dinheiro se houver opções. A necessidade de sustentabilidade da Segurança Social não pode travar a elementar justiça social. Pelo contrário, é a defesa da justiça social que deve moldar o sistema e obrigar a construir soluções alternativas de defesa e reforço da sua solidez e missão. Na verdade, a principal ameaça ao sistema público de Segurança Social é a aposta num modelo económico assente em baixos salários, promotor do desemprego e da precariedade, como forma de impedir a progressão salarial, pelo que a inversão estrutural deste modelo é uma exigência de desenvolvimento. Em paralelo, torna-se cada vez mais importante a defesa das receitas da Segurança Social, como o combate à fraude, evasão e dívida, ao regime de prescrições, o uso indevido de verbas do sistema previdencial através de isenções e reduções da Taxa Social Única. E redesenhar um sistema que não penalize o emprego, aposte antes na diversificação das fontes de financiamento.
Valorizar uma vida de trabalho daqueles que nunca foram meninos, para que, pelo menos agora, possam ter dignidade na velhice.
(Artigo publicado na VISÃO 1259, de 20 de abril de 2017)