A história de um grupo étnico de Myanmar (ex-Birmânia) que não é amado por ninguém, discriminado e perseguido durante décadas e forçado a viver em campos num sistema de “apartheid”. Aos olhos de todos.
E a história de quem lá viveu e trabalhou. Que viu, ouviu e calou. Até que o previsível aconteceu. Em menos de cinco semanas, 600,000 Rohingya fugiram para o Bangladesh, contando histórias de mulheres e crianças violadas, mortes indiscriminadas e de aldeias inteiras queimadas. A ONU já admite um genocídio. Talvez tarde demais.
Durante os dois anos que vivi em Myanmar, nunca pronunciei a palavra proibida. O máximo que a autocensura se atrevia a dizer era “the R people” [o povo R]. E mesmo este “atrevimento” só em surdina e com pessoas de confiança. O politicamente aceite, fora e dentro de portas, era mencioná-los como “a comunidade muçulmana de Rakhine”.
Tanto secretismo e medo para me referir aos Rohingya, um grupo étnico que vive no estado birmanês de Rakhine, colado à fronteira com o Bangladesh. Essa vizinhança e um passado de cruzamentos fronteiriços é a base do argumento oficial (aplaudido pela maioria da população budista) de que esta comunidade é Bengali- um nome depreciativo e colado à força pelas autoridades birmanesas para acusá-los de serem emigrantes ilegais vindo do Bangladesh, negando-lhes, por isso, a nacionalidade. Mas são várias gerações que ali vivem há séculos. Nunca conheceram outra terra. Oficialmente não existem, nem para Myanmar, nem para o Bangladesh. E até recentemente, seguiam (oficialmente) invisíveis aos olhos do mundo.
Para encurtar a história:
– 1824-1948: durante o domínio britânico, houve uma significativa migração interna de trabalhadores provenientes do que é hoje a Índia e o Bangladesh para aquela que era na altura a província da Birmânia, parte da Índia britânica.
– 1951: Cinco candidatos Rohingya foram eleitos deputados nas eleições gerais do país, incluindo uma das primeiras duas mulheres a conseguirem assento parlamentar
– 1982: Na nova lei da cidadania, os Rohingya não foram reconhecidos como um dos 135 grupos étnicos do país.
– 2012: Confrontos violentos entre as duas principais comunidades de Rakhine – budista e muçulmana- resultaram em 200 mortes, casas, escolas e mesquitas queimadas e milhares de Rohingya desalojados.
Na resposta aos confrontos entre as duas comunidades de 2012, o governo retirou todos os Rohingya do centro de Sittwe, capital do estado de Rakhine, e colocou-os em campos. 130,000 pessoas presas em campos de deslocados, com guardas e arame farpado à porta. 130,000.
E tudo a céu aberto. As organizações, nacionais e internacionais, passaram a providenciar dentro dos campos os serviços básicos que estas 130,000 pessoas não podiam mais aceder: saneamento básico, espaços de aprendizagem para crianças, cuidados médicos. 130,000, rodeadas de arame farpado, com guardas à porta.
Sem nunca pronunciar a palavra R, visitei por várias vezes os campos de Sittwe, assim como algumas aldeias, mais a norte, onde a maioria da população é deste grupo étnico. Lá, na impossibilidade de colocar mais de um milhão de pessoas em campos, fecharam-se as entradas e saídas de aldeias inteiras com cancelas e postos de polícia, recolher obrigatório e a proibição de se movimentarem para fora desse perímetro. E nós, calados.
Em 2015, logo após as eleições que deram a vitória esmagadora à Liga Nacional para a Democracia, partido de Aung San Suu Kyi, visitei mais uma vez um dos campos de Sittwe. Pela primeira vez, vi esperança. Milhares de Rohingya festejaram com emoção a chegada ao poder da Prémio Nobel da Paz. Viam nela o início do fim do pesadelo dos R. Recordo-me de falar com um jovem, professor de inglês até ao dia em que foi expulso de casa e atirado para dentro do campo, que vertia lágrimas de alegria ao afirmar que a situação deles ia mudar e que em breve poderiam todos voltar às suas casas, escolas e mesquitas. E lembro-me de disfarçar, de fazer de conta que acreditava e prender as minhas lágrimas de raiva, já há muito contaminadas por um pessimismo mudo.
Com a crescente ascensão dos grupos budistas extremistas, com os cada vez mais frequentes protestos contra todos que pronunciassem a palavra proibida, com a aprovação das quatro “leis da protecção da religião e da raça”, que tinham como alvo sempre o mesmo grupo étnico, fomos assistindo, no camarote, em silêncio.
Em Dezembro do ano passado, ainda em Myanmar, escrevi aqui a medo sobre o Ebrahim e o que víamos a olho nu, mas (publicamente) calávamos. E sem nunca mencionar a palavra proibida:
Mariana Palavra conta a história de Ebrahim, um jovem da “minoria mais perseguida do mundo”. O slogan inconsequente, que encaixa bem nos leads e nos critérios editoriais, pode já não ser suficiente para travar o destino premonitório e explícito da expressão
(…) Ebrahim pode estar morto. Há mais de dois meses que ninguém pode entrar na tal zona a norte do tal estado, desde que um grupo alegadamente islâmico atacou postos fronteiriços, matando nove guardas. A partir daí recomeçou o pesadelo do grupo étnico de Ebrahim. Os militares tomaram conta de toda a zona e expulsaram jornalistas e organizações humanitárias. Os relatos foragidos que foram chegando, fragmentados e por confirmar, fazem temer o pior.
Mais de 25 mil pessoas, sobretudo mulheres e crianças, conseguiram fugir e entrar ilegalmente no Bangladesh, através de subornos e travessias arriscadas de rios e selvas. É de lá que chegam agora relatos que confirmam o que já se publicava nos jornais do mundo: aldeias inteiras do norte deste estado de Myanmar terão sido queimadas, mulheres violadas, homens mortos ou presos indiscriminadamente.
Do céu, os satélites tiraram fotos que confirmam que pelo menos 1500 casas foram queimadas. Certo também é que antes dos alegados ataques de 9 Outubro, mais de 3 mil crianças com desnutrição aguda grave recebiam tratamento. Com a interrupção de todas as actividades humanitárias, há dois meses e meio, todas estas crianças estão em sério risco, passo o eufemismo. Para não falar de tudo o resto (e de Ebrahim), que tarda em ser confirmado.
Deixar entrar imediatamente a ajuda humanitária a esta zona de Myanmar – país que tem sido aplaudido pelo mundo pela reforma e exemplo democráticos – será pedir muito?
Isto foi há um ano. A ajuda humanitária regressou passado uns tempos. Mas voltámos a calar.
A 25 de Agosto de 2017, a violência regressou em força a Rakhine, com um novo ataque de um grupo islâmico e um imediato contra-ataque implacável por parte dos militares birmaneses.
Em menos de cinco semanas, mais de 600,000 pessoas, na maioria mulheres e crianças, conseguiram fugir para o Bangladesh, contando e mostrando marcas de violações, ferimentos de minas- propositadamente colocadas no caminho da fuga- aldeias queimadas, assassinatos indiscriminados. Finalmente, a ONU já admitiu a possibilidade de se estar perante um genocídio.
O governo nega tudo e quem está ou visita o país continua sem pronunciar o nome (como a recente visita oficial do Papa Francisco foi disso exemplo). Agora que estou fora e assisto de longe ao que há muito adivinhávamos, apetece-me gritar SALVEM os R-O-H-I-N-G-Y-A. Mas já é tarde demais. E a culpa também é minha.