Deve ser a coisa mais absurda neste país. Um país que regulamenta tudo e mais alguma coisa, com um código de leis que consta ser dos maiores e mais completos do mundo. Um país que faz o que pode e não pode para atingir metas de despoluição. Líder em matérias ambientalistas. Um país que criou uma taxa específica para emissões de poeiras finas de veículos automóveis e proíbe a circulação em cidades aos carros que não exibam o correspondente autocolante. Um país em que, todas as actividades que envolvam qualquer risco para a saúde ou bem estar físico, estão detalhadamente regulamentadas e sujeitas a licenciamento. Pois este mesmo país, na noite da passagem de ano, permite e encoraja que todos os seus cidadãos se apetrechem de fogos de artifício arrojados e poderosos para explodir a seu bel-prazer por essa noite fora.
Avancemos logo pela vertente ambientalista. Em poucas horas, ao redor da meia noite, este país liberta para a atmosfera cerca de 4000 toneladas de poeiras finas como resultado directo dos fogos de artifício, o que corresponde aproximadamente ao total de todas as emissões provenientes de automóveis neste país durante 2 meses. Os níveis de poluição em alguns centros citadinos ultrapassam os de Pequim. Por vezes esses níveis chegam a atingir, como no caso de Munique, um factor de 10 acima dos limites diários aceitáveis de 50 microgramas de partículas por metro cúbico (fonte). Além disso algumas partículas são tão grandes que causam feridas nas mucosas do nariz e quando chegam aos pulmões representam um elevado risco de cancro. E eu pergunto, para quê?
A malta que põe os filhos cedo na cama começa a explodi-los logo pelo fim da tardinha e daí a maluqueira escala até atingir o pico por volta da meia-noite – sim, porque no meio do estardalhaço ninguém sabe ao certo quando é que passa a meia-noite – e acaba algures pela madrugada. Por altura do pico já o céu está carregado de pó e ninguém consegue verdadeiramente ver alguma coisa de jeito do que está a explodir no céu.
Eu, que cresci na Madeira, habituado ao poderoso e magnífico espectáculo do fim do ano, sempre coordenado, e chegando à hora certa, de tal maneira que se se sincronizasse o relógio pela televisão era possível saber precisamente quando ia começar e que em menos de 10 minutos estava acabado, acho esta versão alemã uma tontaria. Parece que estes adultos todos, que durante o resto do ano são cidadãos conscientes e respeitadores da lei, numa noite só, perdem as estribeiras e andam sedentos por fazer explodir coisas. Não há espectáculo. Só barulho infernal que não termina. Os cães ficam doentes e muitos têm que ser sedados para sobreviver a noite. As pessoas espalham-se pela rua fora em pequenos grupinhos, ou alguns mesmo sozinhos, lançando os seus projécteis a partir de garrafas de espumante vazias. Estas às vezes tombam e lá saem os projécteis em direcção ao automóvel estacionado do outro lado da rua.
Depois há ainda as consequências mais desastrosas. Uma colega minha, que estava de férias num resort de ski, contou que o hotel ao lado ardeu porque alguém resolveu acender fogo de artifício do lado de dentro, ninguém saiu ferido mas o hotel tem agora dois pisos a menos. A polícia de Leipzig encontrou dois dedos numa passagem subterrânea perto da estação de comboios principal. Em Berlim foi 14 o número de feridos graves que deram entrada em hospitais, desmembrados ou a precisar de amputação (fonte). E por aí a fora. Enfim. É o diabo à solta.Impressionante ainda é o facto de que uma boa quantidade destes dispositivos para uso caseiro se encontrar à venda em Supermercados. No supermercado do nosso bairro, onde sempre vamos, lá estavam umas prateleiras cheias deles, entre a zona dos snacks e os stands da fruta. Os alemães gastaram no último final do ano um total de 133 milhões de euros em fogos de artifício, igualando o recorde atingido no ano anterior.
Se pusessem o dinheiro todo numa grande pilha e lhe deitassem fogo, tinham por ventura o mesmo efeito, mas menos pó e barulho. E bastante menos lixo espalhado pelas ruas e parques da cidade na manhã seguinte.
Confesso que nas primeiras vezes que cá passei o fim do ano, fiquei surpreendido por ser assim a celebração e lá fui acompanhar os vizinhos e amigos, na rua, onde invariavelmente estava um frio glaciar, enquanto soltavam os seus explosivos, mas o medo de acidente fazia com que me limitasse a segurar apenas algumas daquelas velinhas de faíscas. Até que nos últimos anos recuso sequer a sair à rua.
Vou acabar esta crónica com uma sugestão, talvez um pouco revolucionária e muito pouco ortodoxa, e no improvável caso de algum alemão em posição para tomar alguma iniciativa esteja a ler este texto, cá vai: Mas que tal se deixassem os municípios recolherem uma taxa voluntária daqueles que querem ver fogo de artifício e depois fossem estes (os municípios) a organizar um espectáculo na praça central de cada cidade para todos verem, algo bonito, vistoso, seguro, sincronizado com um espectáculo de luzes ou música, e de curta duração? E tirassem da mão dos malucos estas toneladas todas de explosivos? É só uma ideia…
Ah, e já agora, Feliz Ano Novo a quem estiver a ler!
Video na nossa cidade:
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 60
Nas notícias por aqui: O vice-chanceler Sigmar Gabriel decidiu não se candidatar para as próximas eleições, deixando a liderança do SPD (Social Democratas) para o anterior presidente do Parlamento Europeu Martin Schulz
Sabia que por cá: Está muito frio…
Um número surpreendente: 50 – o número de toneladas de lixo proveniente de fogos de artifício limpos das ruas na cidade de Munique no dia 1 Janeiro (fonte)