Há muitos anos que passo as semanas mais agitadas da chamada época balnear no campo. O campo é uma coisa que, ou se apanha de pequenino, ou já não entra no sistema. Quem nunca andou pelo campo a ver a estrelas, a laçar um cavalo para o montar ou a caçar gambozinos, acha o campo uma seca. Eu acho uma bênção. Nunca me canso de observar a dança das árvores e de ouvir a passarada e as cigarras, que parecem ter hora certa para os seus cânticos e que, quando interrompem ou terminam a sua algazarra tão particular, o fazem o uníssono, como se fosse regidas pela mão experiente de um maestro de uma sinfónica de estirpe.
Durante as semanas de mais calor, há muito que não sou cigarra, tenho sempre um livro entre a cabeça, o coração e os dedos que quero terminar. E enquanto não o faço, não descanso. Assim, o dia tem duas partes: a manhã fresca e silenciosa para escrever, e a tarde em família para conversar, rir e dar passeios, nadar, ir dar uma volta à cidade mais próxima ou visitar amigos que vivem nas redondezas. Nunca me importo de escrever no verão porque escrever não tem estação, no meu caso só tem horário, sempre cedo, quanto mais cedo melhor.
As feiras no campo são boas para quase todas as idades: o ar do campo faz bem aos bebés, o espaço dá liberdade às crianças, o sossego convida às sestas, a vida em família é boa para jogar Damas, xadrez, crapot e mahjong. Por acaso mahjong nunca aprendi, já retiro alegria e diversão suficientes em observar as peças, maravilhosas e enigmáticas, herdadas de uma avó loira e bonita que adorava os netos e era louca por ducheses. Se estivesse em Lisboa, talvez nem reparasse na beleza das peças do jogo, mas o campo tem destas coisas, uma pessoa pacifica-se, mergulha num mar de serenidade e segue o apelo da contemplação. Parece que é tudo uma pasmaceira e que nada se passa, mas não é verdade.
Um dos segredos da felicidade é a integração, sentirmos que somos parte de um todo maior. Não apenas que fazemos parte, mas que somos uma peça integrada. Quando caminho pela manhã antes de começar a escrever sinto-me um girassol, um pardal, uma cigarra, uma oliveira. Sinto-me parte da terra que piso. E à noitinha, quando reconheço as constelações que enfeitam o céu, oiço a voz meiga do meu pai e explicar aos filhos e os netos o mapa celeste. E vejo Vénus sempre perto da lua, quando a noite acabou de cair ou o dia está quase a chegar. Ela já lá estava milénios antes, possui a discrição das grandes rainhas, a sabedoria das sacerdotisas. A lua é meia estouvada, tanto está agitada de cheia, como apagada de nova. Muda muito, mas no fundo não muda nada, por isso é mais parecida com a Humanidade. Imagino que são amantes. No campo imagina-se muita coisa, e quando se é escritor e poeta, ainda mais. E depois são as mesas cheias, enfeitadas com três gerações de pintinhos de todas as idades, os cabelos despenteados ao pequeno-almoço, as piadas novas e velhas, a matriarca á cabeceira que é como o maestro invisível das cigarras, tudo harmonioso, seguro, tranquilo, tudo límpido e aconchegante. Uma casa de família é isto mesmo, cigarras e formigas, pardais e outros que tais, um ninho gigante onde cabem todos.
No início do período renascentista, os italianos, sempre dados às artes porque sempre tiveram bons patronos, reinventaram a aurea mediocritas, uma filosofia de vida que escolhia o campo como cenário perfeito para viver e criar, uma vida confortável e frugal, com tempo para pensar e para criar. Os poetas portugueses do século XVI cultivaram esta corrente, Sá de Miranda e António Ferreira recuperaram-na em belos sonetos e profundas elegias o ideal proclamado pelo grande Horácio, no seu poema original: «…encontra esperança na tristeza, alegria no medo, as adversidade da mudança irão fortalecer o teu peito(…) sê forte no infortúnio, enfrenta o tormento com bravura, nunca sejas menos do que sensato e caça a vela….». O último termo é náutico, mas a metáfora é universal. E mesmo sem mar à vista, no campo o olhar perde-se no ondular dos campos sob a brisa suave. Ficamos mais suaves, mais bucólicos, mais puros.
Às vezes cai uma brandura pela calada da noite, que é como quem diz um pouco de humidade, que faz com que as plantas e flores fiquem viçosas na manhã seguinte. E esse viço chega à alma pelo olhar e pelos outros sentidos. Para quem gosta, as férias no campo são uma delícia, como apanhar amoras e figos e comer tudo debaixo de uma árvore, lamber os dedos e conversar com os pássaros.