Duas semanas antes da data anunciada para o fim da quarentena, armei-me de coragem, venci o medo e fui visitar os meus pais. Tinham passado 9 semanas desde que tomara a decisão de não o fazer, a bem da segurança deles. Na família, irmãos, cunhados, sobrinhos e netos, fomos unânimes na política de proteção da saúde de ambos, forte no caso da minha mãe, e muito frágil no caso do meu pai.
Eu tenho uma sorte dos deuses com a família que me saiu. Sim, porque a família não se escolhe. Não se escolhe em que país nascemos, a época em que vivemos, a escola que nos acolhe. Não escolhemos se vamos ser altos ou baixos, com sardas ou com diabetes, com cabeça para os números, ou com talento para dançar. Não escolhemos os irmãos, a cor dos olhos nem o tamanho do nosso coração.
Tomei a decisão no final da tarde de segunda-feira e, no telefonema diário à minha mãe, informei-a. Não era uma intenção, nem uma pergunta, apenas lhe disse que no dia seguinte o ia fazer, sem rodeios.
Nessa noite, tive um sonho estranho e assustador. Estava ao largo de uma praia desconhecida, tinha nadado com dois amigos e subíramos para uma rocha que tinha um pequeno planalto, onde ficámos a conversar. Sem darmos por isso, a maré desceu muito depressa, e quando olhámos em volta e para baixo percebemos que estávamos como que presos num precipício. Ao ver o que se passava, o meu amigo saltou e vimos o seu corpo mergulhar lá em baixo, um ponto quase perdido pela distância.
Sempre tive medo de mergulhar de lugares altos. Ainda tentei treinar tal habilidade durante a adolescência, mas saltar de uma prancha com a altura de três metros já me provocava uma sensação horrível. Saboreava o voo, contudo, o impacto na água dava-me náuseas e medo. E, além disso, faço parte das pessoas que, por razões de saúde, estão proibidas de praticar qualquer atividade ou desporto de impacto. A razão é simples: quando tive um AVC, um exame médico revelou que as artérias cervicais do lado direito eram muito mais estreitas do que é expectável num adulto, com a dimensão semelhante às de uma criança de 3 anos. Foi uma dessas artérias que ficou temporariamente entupida por um coágulo. E o coágulo foi lá parar porque eu tinha um buraco no coração. O buraco foi consertado, mas as artérias continuam do mesmo tamanho. O meu calcanhar de Aquiles é muito mais acima, mas não há problema, porque já sei onde é e como me proteger, dentro do possível.
Do alto da rocha que se tornara num penhasco, a minha amiga e eu ficámos aterrorizadas, paralisadas pelo medo. O planalto era tão pequeno que nem sequer nos podíamos deitar. Era impensável passar lá a noite, não íamos ter posição para dormir, o pânico cercou-nos como um manto. A minha amiga começou a chorar e a gritar, e eu nem podia virar-me para a abraçar, sentia que se saísse da posição em que estava, corria o risco de cair. Então ela desequilibrou-se e caiu. Não se atirou como o meu amigo, simplesmente caiu para trás. Não tive coragem para virar a cabeça e ver se a sua queda tinha sido milagrosa ou fatal. O mar estava cada vez mais longínquo, como se a rocha tivesse também subido. Chegara ao momento ao qual já não podia escapar. Enchi o peito de ar, pus-me de pé, fechei os olhos e finalmente lancei o corpo para um salto de fé.
Acordei encharcada de suor e de medo. A minha cama é confortável, o meu quarto é lindo, tem uma vista de mar extraordinária, aqui estou protegida. Os meus pais estão protegidos na casa deles, felizmente não estão num lar, e eu preciso de os ver, preciso de me sentir perto deles, mesmo sem beijos nem abraços, o que me corta o coração em postas, porque o meu pai é o homem mais terno e meigo que conheço. Ele é mesmo as duas coisas juntas, que para mim não são exatamente o mesmo. A meiguice está na carne, a ternura no coração, e ele possui as duas no grau mais elevado que conheço num ser humano. Nunca o visitei sem ficarmos de mão dada enquanto conversamos, nem sem lhe cobrir a testa de beijos antes da partida.
Desde o início da quarentena que o seu estado de saúde se agravou. Não acredito que sinta medo de morrer, o que ele sente é uma tristeza imensa de não poder alimentar-se da vida daqueles que criou. Os nossos pais são os nossos pilares, as nossas árvores, filhos e netos são os pássaros que nelas habitam. Com a chegada de bisnetos, sente-se no ar uma alegria nova e fresca, mas faltam o toque, o riso, os almoços de família, falta a união que se celebra em cada reunião familiar. E tudo isto está a secar-nos por dentro.
Fui ver os meus pais de máscara, levei desinfetante e sapatos de usar em casa num saco para calçar à entrada. Mantive a distância de mais de dois metros sem tocar em nada. Mas fui, e acabou-se. Fui agendar abraços, sentir o cheiro dos móveis antigos, rever as fotografias da família na sala, rir com a minha mãe e fazer rir o meu pai.
Nesse dia, decidi saltar do planalto e mergulhar no azul do incerto, confiando que, se executasse o meu voo em consciência, nada de grave poderia acontecer. Nem a mim, nem a eles. O que nos está a matar é não viver, é não fazer isto ou aquilo com medo disto e daquilo. Nunca tive medo de nada, só de ser enrolada numa onda maior e mais forte do que eu.
O importante não é o salto, o importante é a aterragem.
Sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar, é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio, porque é no terror do vazio que o voo acontece. O vazio é um espaço de liberdade, de ausência de certezas. Mas é isso que tememos, não ter certezas. Por isso trocamos o voo pelas gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram, e eu não sou pássaro de gaiola, não sou refém de nada. Eu sou um pássaro livre que nasceu e cresceu graças à proteção das árvores que são os meus pais, e também já sou a árvore do meu filho e dos meus sobrinhos. Todos somos pássaros e todos nos tornamos árvores.
O mundo tem de abrir, nós temos de saltar. Os abraços virão quando puder ser. Mas a voz, a presença, o olhar, nada disso é igual num encontro de Zoom ou numa chamada de FaceTime. Nada se compara à energia vital da proximidade física.
Fui sem medo e, depois desse dia, voltei a ir, e irei todas as vezes que me apetecer. O desconfinamento vai tirando as pessoas de casa, a vida parece regressar lentamente a um novo normal ao qual nos vamos habituando. Podia ter esperado duas semanas, mas não quis. Quis ganhar tempo, oportunidades e conversas, quis adiantar o afeto e a alegria.
É preciso vencer o medo. Viver não cansa, o que cansa é viver como se não estivéssemos vivos.