Provavelmente, quando voltar a embalar-te nos meus braços, os sapatinhos de bebé que tenho para ti, já não irão servir. Encontrei-os nas arrumações inevitáveis deste tempo de pandemia. Deviam ter sido para o Lourenço, mas nunca chegaram a sair da caixa. Estão estacionados à porta de casa, à espera do momento em que possa voltar a ver-te.
Ainda não fez dois meses que ali estão, e parece já uma eternidade. Debaixo da mesa da entrada também está um cesto com sapatos, os dois pares que levo à rua, sempre que saio, uns ténis e uma botas, e que descalço sempre que regresso a casa. Em cima da mesa, álcool, desinfetante, uma caixa de luvas e duas máscaras. Agora o mundo é isto, um inimigo invisível transformou as nossas vidas para sempre. Da inocência do teu berço não vais lembrar-te como foi, mas vais ouvir histórias contadas pelos teus pais e tios destes tempos estranhos que agora vivemos. Como o avô e avó estão fechados em casa, talvez oiças também da boca deles.
O avô já quase não fala, há mais de um mês que não o abraço nem o faço rir – sou o palhaço de serviço da família, é uma especialidade como outra qualquer -, e nem consigo imaginar a tristeza em que estará mergulhado. A tristeza é como uma ratoeira de areias movediças muito lenta, vai-te apanhando todo os dias um bocadinho, quando dás por ti não te consegues libertar, a não ser que alguém com muita força e determinação te deite a mão e te puxe. A avó continua aquela força da Natureza de sempre, comunicativa, despachada, sempre a pensar no melhor para os filhos e os netos. Está fechada em casa porque não pode sair, ainda que quisesse, não pode. Podemos vê-la da janela e está sempre tão bonita! Somos todos parecidos com ela e um dia havemos descobrir em ti também uma parecença. Pelo que vejo nos vídeos que a tua mãe partilha, a boa disposição já é comum.
Tudo mudou muito depressa, um dia estávamos a passear no parque, a tua mãe contigo ao colo e eu, e no dia seguinte percebo que não vou poder voltar a ver-te nos próximos tempos e que os sapatinhos vão provavelmente ficar para o próximo bebé da família. És o primeiro da quarta geração, nas fotografias acho-te muito parecido com o teu avô, o mesmo sorriso simpático e afável, vamos ver se quando fores grande também vais gostar de fazer grandes passeios de bicicleta como ele. Não és meu neto, mas és filho da primeira sobrinha que foi o primeiro bebé que embalei e que plantou no meu coração o sonho de ser mãe, portanto sinto-me uma semi-avó e tenho saudades tuas. Tenho saudades do meu filho, da tua mãe, da tua tia, dos outros sobrinhos, dos meus irmãos e cunhados, que no meu caso são a mesma coisa. Tenho saudades dos meus pais, porque o amor é apego, amor é afeto, é abraçar aqueles que são importantes para nós, conversar, cozinharmos juntos, rir, fazer uma festa quando alguém faz anos e cantar os parabéns. O amor é um substantivo, talvez o maior substantivo da Humanidade, mas o que interessa é amar, o que interessa é o verbo, a ação, o gesto, mais do que a intenção e mais do que a palavra. Só que agora, meu querido António, só temos as palavras e seus sucedâneos, vídeos, aplicações nas quais nos vemos todos uns aos outros em tempo real, dizem. Para mim, tempo real era estar mesmo ao lado daqueles que amo e poder fazer tudo isso sem pensar: dar mimos, fazer cócegas, pentear as minhas sobrinhas, rir com o meu filho que dá os melhores abraços do mundo, sentir o calor de todos que estão perto, poder ser mãe, poder ser tia, poder ser avó, no teu caso tia-avó, sem limites nem constrangimentos.
O tempo passa muito devagar porque o mundo está fechado e demasiado depressa pela mesma razão. Se não abrirem o mundo, aqueles que não morrerem da doença correm o risco de morrer vítimas da imobilidade, do isolamento, da falta de dinheiro para pagar a renda, as contas da casa e o pão na mesa. Se o mundo não abrir, vamos todos sofrer ainda mais. A ti, que és o primeiro da quarta geração e chegaste à terra em tempos de pandemia, gostava de te dizer que não há nada mais importante do que a família, que precisamos todos de repensar o mundo para nos ajudarmos mais uns aos outros. E gostava de te pedir, quando fores crescido, que nunca te esqueças que a vida é feita sobretudo de amor, de carinho de amizade, de solidariedade, de generosidade, de alegria e de vontade, palavras que também querem dizer amor.
Os sapatinhos esperam, pacientes, no silêncio da caixa. Se os teus pés, entretanto, crescerem, virão mais bebés, porque há sempre mais vida. Até lá, recebe um embalo virtual no meu colo de mãe e de tia, porque não há maior ternura do que embalar um bebé que sorri para nós com a energia mais pura do mundo. Não sei que mundo será o teu quando cresceres, mas cá estamos todos para te proteger e te amar. Até já, meu querido.