Estava a passar pelo Campo Grande e ouvi ruídos estranhos, eram golfinhos a fazer lindas acrobacias no lago, enquanto metiam conversa com os patos que lá vivem. Fiquei feliz. Na esquina da Avenida do Brasil com a Avenida de Roma, cruzei-me com duas renas. Mais à frente, coelhos pulavam despreocupadamente pelos passeios. Parece-me ter visto ao longe um camelo junto à Praça de Londres. Um amigo que é comissário de bordo da TAP diz que há corridas de avestruzes na pista 1 do aeroporto e manadas de antílopes a pastar nas zonas verdes do bairro dos Olivais. Foram ainda avistados linces no Saldanha, veados no Príncipe Real e um casal de pinguins junto à Sé de Lisboa. Os jardins da Gulbenkian receberam a visita de girafas e de pandas. Na zona ribeirinha passeiam-se manadas de elefantes e no Tejo já foram vistas algumas baleias. Esta é a nova cidade de Lisboa. Desconheço se o Zoo entrou em lay-off e soltou parte da bicharada, mas sei de fonte segura que no Parque das Conchas há macacos nas árvores e em Algés foram observadas movimentações de gnus. E também foram avistadas raposas em Monsanto, vacas nas Amoreiras e um puma em Campolide. Esta é a nova Lisboa. Com a cidade deserta, as ruas são agora invadidas por animais. E hoje é dia 1 de Abril, o dia das mentiras.
Um dos efeitos secundários da pandemia que veio mudar o mundo é ter feito disparar a imaginação e o sentido de humor dos portugueses. Nunca, em nenhuma das anteriores crises existiram tantas piadas e graçolas. Somos bombardeados hora a hora pelo Instagram e pelo WhatsApp – sobretudo nos grupos – por parvoíces, algumas bacocas, outras subtis e inteligentes, todas relacionadas com os tempos difíceis que atravessamos. E não é caso para menos. Se Portugal já tinha uma tendência endógena para entrar em monotema, o que fazer agora que um só assunto domina todo o planeta? Ora isto diz muito de nós, e eu acho que diz bem.
O humor e o amor são as armas mais eficazes para aliviar o stress e o medo que nos assola: todos temos um pai com a saúde debilitada, um filho com asma, uma irmã diabética. Muitos de nós têm familiares que trabalham na área da saúde ou que dão assistência a idosos. Metade dos nossos amigos têm pequenas ou micro-empresas que ninguém sabe se vão sobreviver ao vírus económico. Todos temos contas para pagar, prestações ao banco, escolas dos filhos, lares onde vivem pais, uma tia velhinha viúva e muito querida que vive sozinha e que precisa que lhe levem as compras a casa. Estamos todos no mesmo barco e precisamos de muita organização e de muita generosidade para não irmos ao fundo. Estamos todos ligados, muito mais do que imaginamos. O mundo passou a funcionar em streaming. Esta semana vou recomeçar o ballet graças à instalação de um programa qualquer que nem sequer sei o nome porque sou um zero à esquerda em tecnologia, mas já me ando a tratar, senão perco o barco. Aquele barco onde estamos todos metidos, o barco do mundo infetado, o barco do juízo e da esperança, em que todos navegamos à vista, sem saber como será o dia de amanhã, desejando que a morte não nos bata à porta, olhando para rolos de papel higiénico com carinho, quanto arrumamos armários, gavetas, a cozinha e a dispensa, a arrecadação, um bocado a cabeça e o que conseguimos do nosso coração, que toda a gente que é o mais difícil de arrumar.
Estamos todos no mesmo barco e todos os dias nos ligamos ao mundo pelas notícias e uns aos outros das mais variadas formas: telefonema clássico, facetime, stories, posts, houseparty, etc, qualquer forma de chegar a quem mais amamos é boa, o que interessa é chegarmos aos outros. Estamos todos ligados porque o mundo de repente encolheu e ficou todo igual: a pandemia vai chegar à Nova Zelândia e às montanhas do Ladak, é apenas uma questão de tempo. O mundo é uma bola de sabão frágil e bela, uma bola de futebol que não pode jogar, uma laranja que caiu da árvore, sentimos que temos o mundo na mão porque sabemos que uma parte da salvação está em ficarmos sós e quietos, confinados ao nosso pequeno mundo, aprendendo com isto a fazer do nosso lar uma lugar mais limpo, mais belo, mais tranquilo. Todos os dias acordo e penso nos médicos e em todo os profissionais de saúde que estão nas trincheiras. São os nossos almirantes mais preciosos, a par com os timoneiros da logística e os comandantes dos laboratórios na busca incessante de uma vacina, o único meio de resgatarmos o mundo e voltarmos a pisar chão firme. Enquanto não houver vacina, o barco irá enfrentar tempestades, monstros marinhos, mas vamos todos fazer o que sabemos fazer melhor; ser bons para o próximo e conseguir soltar algumas gargalhadas por dia. O humor ajuda, o amor guia, agora mais do que nunca. Mais do nunca, só vamos conseguir se estivermos ligados, mesmo sem fios, por uma força maior.