Quando os habitantes de Pompeia avistaram uma nuvem imensa e escura que ia cobrindo o céu de forma irreversível, não sabiam que a tampa do Vesúvio tinha saltado e que, em poucas horas, ficariam soterrados por um mar de lava. Decorria o ano, segundo a calendário gregoriano, de 79 d.C. Cerca de duas décadas antes, um terramoto abalara a cidade, destruindo-a quase por completo. Os trabalhos de reconstrução foram meticulosamente planeados, com ruas largas e praças espaçosas rodeadas de templos e de edifícios de banhos públicos. No bairro da zona nobre existem ainda ruínas de villas com vários quartos, jardins e paredes com maravilhosos frescos que retratam cenas da vida quotidiana.
À entrada da cidade, numa construção transparente, podem ver-se corpos carbonizados em várias posições. A dormir, a rezar, em posição fetal, homens e mulheres abraçados, homens abraçados a homens, mulheres tentando proteger os seus filhos. Mais do que as ruínas de uma cidade impressionante, foram aquelas figuras eternizadas pela desgraça que ainda hoje me assaltam o sono. Às vezes libertam-se da sua carapaça de lava seca, estendem-me os braços e choram. Acordo assustada e espero pacientemente que a realidade limpe os fantasmas. Nunca mais esqueci a sensação e tristeza e de solidão que me invadiu todos os sentidos quando visitei aquela urbe outrora magnifica, cuja imponência e grandeza me maravilharam ao mesmo tempo que me esmagavam pela sua escala. Parecia-me quase impossível imaginar aquilo tudo debaixo de um mar de lava, mas foi isso mesmo que aconteceu. A lava cobriu toda a cidade até atingir uma altura de seis metros. Alguns habitantes conseguiram escapar ao cataclismo, quase todos por via marítima, mas alguns sucumbiram asfixiados pelos gases venenosos que o vulcão expeliu.
O que nos separa da desgraça de Pompeia não são 2000 anos de história. O que nos separa é o facto de termos visto a nuvem a aproximar-se e de sabermos o que poderia estar para vir. É certo que demorámos algumas semanas a aceitar o inevitável, fomos ingénuos todos os que pensámos que a China é do outro lado do mundo. A realidade mostrou-nos que a China é já aqui, que afinal o mundo é muito mais pequeno do que imaginávamos e que somos todos iguais perante uma ameaça global. Somos todos iguais quanto ao perigo, mas não quanto os riscos a que estamos expostos. Nunca saberemos se os números de mortes que a China revelou correspondem à verdade. Nos países do chamado terceiro mundo – é uma designação horrível e, no entanto, infelizmente, sempre atual – quantas pessoas irão perecer sem qualquer tipo de assistência médica. No segundo país que mais amo depois de Portugal, o nosso irmão de língua e de coração Brasil, está um psicopata no comando de um gigantesco Titanic pandémico que vai afundar de forma veloz e terrifica. No mesmo continente, mais a norte, outro louco infantilizado pelo seu ego sufocante produz discursos com tal soberba e ignorância que quase parecem anedóticos. Aqui mesmo ao lado, em Espanha, idosos foram deixados nas suas camas mortos ao lado de outros que agonizam. E quando 28 idosos foram transportados para outra residência, grupos de habitantes tentaram impedir a entrada das ambulâncias na cidade de La Linea de la Concépcion. Durante a noite, foram arremessados vários engenhos explosivos a partir de casas nas imediações da residência que recolheu os infetados. Espanha está tão perto como a China, acreditem, é ao virar de todas as esquinas de Portugal.
E nós? O que mais podemos fazer do que ter bom senso e confiar no governo e nas instituições? O que mais podemos fazer do que utilizar a internet para enganar a distância e abraçar virtualmente aqueles que amamos? Que mais podemos fazer, enquanto assistimos através dos meios de cominação credíveis ao caos que continua a paralisar o mundo?
Podemos continuar a ter juízo. Podemos continuar a ajudar quem está na linha da frente. Podemos ajudar o vizinho que não tem quem lhe leve comida, pagar o ordenado à empregada que não veio trabalhar e que não tem dinheiro para pagar a renda do quarto alugado onde vive. Há sempre mais coisas que podemos fazer do que aquilo que imaginamos e se o fizermos no nosso prédio, no nosso bairro, estamos todos a contribuir para a reconstrução da nossa casa, em nome de um bem maior. 365 dias por ano, não me pergunto porquê, pergunto-me para quê. É muito importante não perdemos de vista o horizonte longínquo da normalidade reposta, enfrentar o presente para poder abraçar o futuro. A China é já aqui, e esta é uma das muitas lições que estamos a aprender nesta cruzada de precaução e de bom senso.