Jacinta. Menina sozinha entre muitos irmãos por ter nascido diferente. O desvio grande da anca começou a notar-se muito cedo, caminhava como se uma das pernas estivesse presa num buraco que se prolongava numa vala infinita. Muitos irmãos que a faziam sentir-se isolada pela sua peculiaridade, mas nunca complexada, porque Jacinta nunca se deixou tentar pelo número da coitadinha. Era apenas diferente. Os pais diziam -lhe que nunca iria casar, não ia aparecer homem que a quisesse. Mas a gaiata tinha muita vida, os olhos cor de amêndoa e uma cabeleira farta e encaracolada que lhe dava carisma. Ainda hoje tem isso tudo, embora os fios cor de prata já se vejam entre os outros dos seus cabelos . Arranja-me as unhas com competência e desvelo, enquanto me conta a sua história.
Ia para a escola montada numa égua que se chamava égua porque a pé nunca mais lá chegava. Montava em pêlo, às vezes com uma manta por baixo. A Jacinta diz que montava em osso e eu anoto todas as expressões no meu caderninho mental, esperando nunca esquecer as mais importantes.
A égua era a sua melhor amiga. Comiam as duas pão e melancia. Ela dava-lhe tudo à boca e a bicha relinchava de alegria. Um dia o pai vendeu a égua e o desgosto foi tão grande que ainda hoje se comove a falar daquilo.
Jacinta herdou o coração daquela égua e imitou-a em tudo. Fez-se forte, altiva, como se o desvio da anca lhe desse mais da vida do que todos diziam que lhe ia tirar. Os pais queriam comprar-lhe uma máquina de fazer malhas e prendê-la para sempre na armadilha doméstica com a desculpa assente no seu defeito físico. A miúda não cedeu. Foi trabalhar para o campo, depois no restaurante da família, quis por idem no negócio mas não a levavam a sério. Um dia chateou-se e abalou para Setubal onde fez limpezas. Tinha boa mão para o corte de cabelo e vai de começar a arranjar o cabelo da patroa. Depois tirou um curso da especialidade em Alcacér e abriu o salão na aldeia, numa casa que o pai ajudou a construir. É lá que estamos as duas a conversar e só me apetece ficar mais tempo a escolher a cor do verniz para ficar a ouvir as histórias da Jacinta e da sua superação.
Afinal casou e vive feliz com o seu par. Tiveram um rapazito, atilado por sinal. Aquilo demorou, andou anos deprimida com medo de ser alfeira, e foi durante esse período estéril que leu um dos meus primeiros livros. Diz que lhe fez muito bem, ria muito com as descrições da alta sociedade, às vezes em voz alta ao marido, e depois riam-se muito os dois a imaginarem a vida dos ricos lá de Lisboa, palavras dela. Diz que lhe fiz muito bem e eu sorrio com placidez e gratidão porque afinal é para isto mesmo que escrevo, para dar coisas às pessoas e fazer com que se sintam mais felizes.
Escolhi o verniz cor de rosa Barbie como é costume e deixei o salão já com a Jacinta no meu coração. Dei-lhe um grande abraço, parece que o brilho daqueles olhos, ainda e sempre de menina decidida e temerária, se instalou debaixo da minha pele.
Jacinta nunca baixa os braços nem dá tréguas à preguiça: vai com frequência a Lisboa e ao Porto fazer formações e sabe tudo de cabelos, depilações unhas e afins. Já não faz massagens porque não dá conta. Qual máquina de malhas, qual quê! A menina coxa escapou às malhas do destino que a mentalidade fechada da aldeia onde nasceu a quis condenar. A égua foi a sua primeira aliada, a sua melhor amiga e a sua grande referência na vida. É das pessoas mais felizes que conheci na vida. Afinal, é só preciso ter um coração forte, cerrar os dentes e seguir em frente, com o desenho dos nossos sonhos bem claro e nítido.
É a força da vontade. É a força da vontade.