Por múltiplas vezes tenho viajado ou visitado locais com a companhia de um guia. Tem este como missão, muito importante, seleccionar o que há de mais relevante a ver. Mas tem também como tarefa explicar o que vamos vendo, usando conhecimentos vários, que vão da História dos locais e das gentes até à crítica de arte. Aliás, todos nós já assistimos à presença de grupos, nos museus, com guias que vão explicando a origens dos quadros e a sua suposta beleza.
Recentemente, conheci terras ermas com a ajuda de guias assim. E, de cada vez que tal se passa comigo – e já há bastante tempo –, acontece-me ensurdecer e olhar a paisagem, ou o que tenho para ver, abstraindo-me das explicações mais ou menos mundanas que o guia tem para oferecer.
Desta última vez, ocorreu-me fazer uma associação entre este tipo de situação e a leitura de romances, que cada vez me é mais penosa. Leio 50 ou 100 páginas e, normalmente, paro. Desinteresso-me.
Mas que têm as duas situações em comum? Vou tentar explicar.
Penso que, nos dias que correm, existe uma progressiva dilaceração entre o interior e o exterior. E, por via da globalização e do uso quase permanente da Internet, o exterior impôs-se de forma asfixiante sobre o interior. Por exterior, entendo tudo aquilo que diz respeito à nossa relação com os outros. E, por interior… já se percebeu. Por outro lado, cada vez estou mais convencido de que a nossa adesão às ideias (filosofia) ou à beleza (arte) é determinada por algo de individual, pessoal, íntimo, que só nos interessa a nós e é irrelevante para os outros. Por estas razões, cada vez mais sinto que a minha ligação ao grande mundo não passa por uma explicação mainstream preparada por agências de viagens para turistas-tipo dos vários países. E, por isso, desligo, tentando absorver o que há de mim na beleza de uma paisagem ou na perturbação que me provoca uma qualquer obra de arte.
Da mesma forma, a maioria dos romances conta-me uma história similarmente exterior, a respeito de gentes imaginárias cuja vida, mesmo ficcionada, não me interessa. Para cúmulo, o texto que leio de autores estrangeiros é sempre traduzido – exceptuando os livros em francês, pois o inglês cansa-me –, quer dizer que não foi escrito pelo «autor» mas por um tradutor, mesmo que este seja de grande calibre. Assim, sem recurso à beleza intencional da formulação linguística, e se o romance não incluir uma transfiguração de beleza que suplante o enredo, vejo-me confinado ao libretto ou às ideias. Para ópera, não tenho paciência – pobre música –; para as ideias, tenho os ensaios ou a filosofia. E, com este espírito, 50 páginas acabam por me bastar.
O Vergílio Ferreira escreveu um dia o texto que reproduzo de seguida. Ele ilustra de forma intocável, claro está, o que pretendo dizer.
Tudo isto se passou há uns oito ou nove anos. Mas qualquer coisa deflagrou no íntimo da memória e distendeu as lembranças para o sem fim das eras. E tudo foi de um tempo muito antigo – a conversa de nada, o fumo dos cigarros no terraço, o mar rebrilhando lá ao longe por entre a rama dos pinheiros. A saudade não está na distância das coisas, mas numa súbita fractura de nós, num quebrar de alma em que todas as coisas se afundam. E tão grande melancolia assim me inundou, que não tenho de mim espírito que chegue para falar dela ou entendê-la. E tenho só para senti-la. (Conta-Corrente III, 380).
Perante uma paisagem bela, um quadro ou uma obra musical de grande dimensão, não só não tenho boca para explicar, como não tenho ouvidos para entender. O nosso contacto com a beleza absoluta deixa-nos de rastos, na solidão do silêncio mais profundo. É uma questão connosco, interior, e nada do que se possa passar em redor – no espaço ou no tempo – tem o mais pequeno significado.
Tenho um truque pessoal para identificar uma obra de arte maior. É que, desde há longos anos, sinto, nessas situações, uma emoção física, uma aflição real que me inunda através de um aperto no peito que parece sufocar. Não me assusto; é um momento de doçura pacífica que me é muito familiar. E tal como não é possível rirmo-nos por nos mandarem rir, também não consigo sentir esse ardor por via de uma qualquer história que me possam contar.