Já era noite quando à saída de um centro comercial dei de caras com aqueles homens e mulheres que se deslocam diariamente à zona do Saldanha.
Esperavam ali, ao frio, que chegasse a carrinha de uma organização de solidariedade para distribuir alimentos. A fila formava-se sob o halo amarelento da iluminação pública, e olhando para ela percebi o quanto a época natalícia realça as injustiças fomentadas pelo modelo económico em que vivemos. A quantas famílias terá a crise roubado o Natal?
Já vi muitas filas daquelas em vários lugares de Lisboa. Até notei que ocorreram mudanças nos últimos anos. O género de “clientes” das carrinhas da sopa servida em tigelas de plástico branco já não se limita a apenas pessoas com ar de quem vive na rua e dorme à entrada de uma instituição financeira num aconchego de caixas de papelão.
O sem-abrigo “clássico” continua a aparecer. Mas, nas pequenas multidões que se juntam à noite, ali como noutras zonas da cidade, destacam-se também “pessoas normais” e com “bom aspeto”. Possuem ainda um teto sobre a cabeça e um sítio onde tratar da higiene pessoal. Não vão ali “por vício” ou para “sacar uma refeição de borla”, como ouvi, no outro dia, da boca de um taxista que fingi ignorar.
Nestes tempos de crise, as instituições de solidariedade não têm falado noutra coisa. Há uma nova pobreza gerada pelo esboroamento da classe média e, dizem, os pedidos de ajuda aumentaram. Se, no início da crise, a “nova pobreza” era envergonhada, a vergonha deu lugar à necessidade de ir para a fila.
Para muitos os de “bom aspeto”, a escolha é simples, mas dura: gastam o pouco dinheiro que têm em comida ou no aluguer de um quarto?
É certo que alguns deles terão ainda trabalho. Mas o que ganham não chega: 11% da população empregada portuguesa está em risco de pobreza, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Vivem com menos de 422 euros por mês (o chamado limiar da pobreza). Ao mesmo tempo, revelam os números do Ministério da Economia, há cada vez mais portugueses a auferir o salário mínimo. O seu número aumentou mais de quatro vezes nos últimos 10 anos: de 4,5% da população ativa em 2006 para 20% em 2015. E isso não aconteceu porque os salários ainda mais baixos tivessem sido aumentados.
Enveredámos por um modelo de sociedade que está a a criar uma enorme população que, apesar de trabalhar, não consegue sair da espiral da pobreza.
A queda na pobreza é atualmente um risco real para 1em cada 5 portugueses (19,5%). E isso já depois das transferências sociais. Sem estas, o risco seria de 47,5 por cento. Quer dizer que, se não existissem apoios sociais, a pobreza seria uma ameaça real para metade da população.
A chamada taxa de privação material é elevadíssima, afetando 21,6% da população. Os dados do INE apontam ainda para que metade dos portugueses não tem capacidade para passar, anualmente, uma semana de férias fora de casa. Quatro em cada dez – quatro milhões de pessoas – não conseguem assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada próxima do valor mensal da linha de pobreza (422 euros), sem pedirem dinheiro emprestado. Um em cada quatro – 2,5 milhões – não tem meios para manter a casa adequadamente aquecida. Um em cada dez – um milhão – não consegue assegurar o pagamento atempado de rendas, encargos ou despesas correntes. Por fim, 3,5% dos portugueses não se pode dar ao luxo de ter, de dois em dois dias, uma refeição de peixe, carne ou equivalente vegetariano – o que traduzido em números absolutos é um universo de 350 mil portugueses.
O vislumbre daquela fila, o trânsito caótico característico da época natalícia e os magotes de pessoas apressadas, correndo a fazer as últimas compras de Natal, mostraram a facilidade com que a época em que se festeja o nascimento de Cristo, filho de refugiados pobres tentando escapar a Herodes, degenerou num irracional ímpeto consumista.
É urgente repensar não só a forma como nos habituámos a celebrar o Natal, mas também a condução da economia enquanto ferramenta de políticas para beneficiar toda a sociedade e não apenas uma parte.