‘Agradeço-lhe a gentileza, mas não é necessário tratar-me por Dr.”, disse eu esta semana a uma funcionária bancária. A reação não foi de alívio mas de desconforto. Sem usar o Dr., a bancária ficou com menos ferramentas para assegurar a necessária formalização na relação entre cliente e funcionário. A língua nada tem de inocente. Cada palavra está cicatrizada pelos acidentes da História e porta uma carga de simbolismo que cada falante reitera em cada utilização. Por outro lado, todas as sociedades adotam códigos intuitivos de estratificação social e económica. Dessa convergência nasceu o tratamento por Dr., entranhado na sociedade portuguesa como uma forma de debutação social. Quem não é gostaria de ser e, quem já é, insiste em ser tratado como tal. A ausência do Dr. deixa um vácuo de senioridade e respeito.
A maioria das línguas oferece pronomes que sugerem diferenciação. Em sueco temos o Du (informal) e o Ni (formal), em alemão o Du (informal) e o Sie (formal). Outras línguas, mais complexas, oferecem variantes de respeitabilidade. O japonês tem uma vertente honorífica (Keigo), com subvariantes para expressar cortesia, respeito ou humildade (Teineigo, Sonkeigo, Kensongo) que são aplicáveis de forma muito subtil a pessoas do círculo interno ou externo. As divisões linguísticas são feitas por círculos de proximidade e não necessariamente por estratificação económica ou social. Desde a década de 60 que a sociolinguística, ou sociologia da linguagem, estuda a forma como as aspirações sociais influenciam os padrões do discurso. Bill Labov, um dos principais investigadores nesta área, escreveu sobre a apropriação, por parte de afro-americanos e de imigrantes, do inglês falado pela elite branca nos EUA como estratégia de aceitação.
Nunca será tecnicamente possível para o português falado em Portugal abdicar de diferenciações verbais. A língua apenas limita-se a expressar as clivagens existentes na sociedade. Mas o que gera surpresa é a ineficácia da ferramenta mais usada – o Dr. e Dra. – para atingir os seus objetivos. Num grupo de especiais, quem é especial deixa, por definição, de sê-lo. De acordo com os Censos 2011, nos últimos dez anos, o número de licenciados em Portugal duplicou. Se no início do século XX o debate estava centrado em expandir a educação escolar básica a toda a população, hoje a discussão é sobre o que fazer com tantos licenciados. A matemática é incombatível: quem insiste em ser tratado por Dr. insiste em ser considerado mediano. Além disso, quanto maior for o capital social e mais educada e confiante for uma população, menos a autoestima de cada indivíduo depende de títulos. Suecos e finlandeses, por exemplo, não usam pronomes de tratamento ou títulos académicos no dia a dia (como Sra. Dona, Eng. ou Dr.) e o uso formal da 2.ª pessoa do singular (Te em finlandês ou Ni em sueco) é usada apenas em situações de formalismo extremo. Ao ligar a um cliente, uma bancária escandinava diria “bom dia Isak Svensson, tenho um novo produto para ti” tenha o Isak 20 anos ou 80 anos. Seja ele Dr. ou estudante. Privilegiado ou remediado.