Nunca se morreu tão pouco e nunca a medicina foi tão eficiente desde que o escocês Alexander Fleming descobriu, por acaso, o primeiro antibiótico, a penicilina, em 1928. Mas tal como o antibiótico sepultou o ciclo da quinina, descoberta pelos espanhóis nas montanhas do Peru no século XVI, também o invento de Fleming parece estar em risco.
O mês passado, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou um estudo global aguardado com ansiedade pela comunidade científica. Conclusão? Estamos no início da “era pós-antibiótico”. Porquê? Nunca a medicina teve que conviver com tantas bactérias multirresistentes. Causa? O uso indiscriminado de antibióticos, o que encoraja as bactérias a desenvolverem novas formas de sobreviver a tratamentos. Segundo a OMS, na ausência de um medicamento eficaz, pequenas infecções ou mesmo uma simples diarreia podem voltar a ser tão fatais como nos tempos anteriores à descoberta da penicilina. O Fórum Económico e Mundial estima que as infeções resistentes podem reduzir o PIB de um país em até 1,6%. No caso de Portugal, um dos maiores consumidores per capita de antibióticos do mundo, isso representaria mais de 2 mil milhões de euros. A OMS alertou que se não mudarmos a forma como produzimos, prescrevemos e usamos os antibióticos, o mundo irá perder cada vez mais estes benefícios na saúde pública e as implicações serão “devastadoras”. Há três semanas, um dos programas de TV mais vistos no Brasil noticiou que alguns segmentos da população regrediram 60 anos na sua capacidade de combater infecções.
Mas mais do que uma questão imunológica, este problema talvez reflicta a obsessão das sociedades modernas com a sua imortalidade. Um novo antropocentrismo. O consumo descontrolado de antibióticos (seja pela prescrição de fármacos ou pelo consumo de carne) revela a nossa ansiedade com a nossa própria finitude. Como escreveram os sociólogos Calvin Moore e John B. Williamson, especialistas em história universal da morte, a sociedade moderna ocidental é aquela que vive mais traumatizada e receosa com o fim da vida e, por isso, rodeia-se de instituições, símbolos e objectivos que reprimam este receio primitivo. É revelador que todos aqueles que se dedicam à continuidade e ao aperfeiçoamento humano – seja a combater doenças, alimentar os pobres ou proteger contra desastres naturais – são entronados pelas sociedades modernas. A cultura opõe-se à natureza e tenta transcendê-la. A evolução natural da medicina levará à personalização, à robotização e à manipulação genética. A minha geração dará um grande salto de longevidade. Mas não poderemos evitar de perguntar-nos: até onde estamos dispostos a ir para resistir à própria morte?