Foi algo de extraordinário, em directo televisivo: um homem sozinho que, na rua, pelo poder da palavra, consegue travar um processo de ilibação mediática lançado por uma poderosa campanha de comunicação e prestes a ganhar.
Tudo se passou em pouco tempo: o sorriso triunfante de Dominique Strauss-Kahn à chegada ao tribunal de Nova Iorque, as declarações vitoriosas dos advogados do antigo patrão do FMI, o perfil baixo do procurador de Nova Iorque, Cyrus Vance Jr., incitaram os comentadores das televisões franceses, que interromperam os programas habituais, a darem o antigo líder socialista francês como estando já praticamente ilibado das acusações de crime sexual contra uma empregada do hotel Sofitel da daquela cidade, que em Maio lhe destruíram a carreira.
Mas a seguir, o advogado da alegada vítima saiu à rua e fez uma verdadeira declaração de guerra contra Cyrus Vance e o gabinete do Procurador. No passeio em frente do Tribunal, Kenneth Thompson, grande vedeta do mundo judiciário americano, começou a falar como se estivesse num tribunal. E quando acabou, quase meia hora depois, tinha conseguido dar uma segunda volta ao caso.
No seu longo monólogo à imprensa, Kenneth Thompson começou por dizer que as acusações contra a sua cliente eram falsas, e que mesmo se fossem verdadeiras, não mudavam nada ao caso de crime sexual. Descreveu, pela primeira vez, com palavras cruas, as sevícias constatadas pelo pessoal médico na empregada de limpezas do hotel Sofitel – “um ombro demolido” que precisa de cirurgia, “hematomas e feridas na vagina” causadas, afirma pela brutalidade com que DSK agarrou. Disse que ela foi violada na Guiné Conakry, por soldados, antes de imigrar para os EUA, e mutilada sexualmente ainda no seu país de origem. E refutou as acusações de ligação a traficantes de droga lançadas pelo gabinete do procurador. A seguir, o advogado acusou o procurador Cyrus Vance ter “medo” de prosseguir com a acusação contra DSK e afirmou que os seus serviços chegaram a intimidar a sua cliente e a darem-lhe maus-tratos. E concluiu jurando que o processo iria avante, desse por onde desse. Quando acabou de falar, os jornalistas da CNN diziam nunca terem visto nada de semelhante, e o ambiente nos estúdios das televisões francesas tinha mudado.
Até aí, cada comentador, sobretudo os que no passado apareciam como próximos de DSK, sublinhava com força as revelações do jornal New York Times, de manhã, citando fontes do gabinete do Procurador segundo as quais a alegada vítima, uma imigrante guineense viúva e mãe de uma adolescente, não teria a credibilidade moral que lhe fora primeiro atribuída. O NYT refere, no condicional, a eventual existência de uma chamada telefónica a um traficante de droga preso em Nova Iorque, pouco depois da acusação de violação, a 14 de Maio, em que ela evocaria um pedido de indemnização a DSK; diz que houve uma alegada menção de violação num primeiro pedido de imigração para os EUA, depois desaparecida do dossier; e menciona o “trânsito” de cem mil dólares pela sua conta bancária numa eventual cobertura a um tráfico de droga.
Nos estúdios de televisão, estes elementos avançados pelo NYT eram comentados como sendo factos adquiridos. Sobretudo, eram repetidos como provas de que a empregada “fizera” uma cilada a DSK. A seguir à intervenção do seu advogado, o tom mudou e uma certa prudência de linguagem voltou a dominar os comentários.
É verdade que desde manhã, um clima de irracionalidade começara a soprar no Partido Socialista francês: em poucas horas, os apoiantes de Dominique Strauss-Kahn davam já o ex-favorito às presidenciais de 2012 como ilibado das acusações de crime sexual e já o viam, de novo, como o favorito na corrida ao Eliseu. Pouco lhes importou que, de tarde, o juiz americano tenha apenas levantado as restrições à liberdade de DSK dentro dos EUA e mandado retirar-lhe a pulseira electrónica que o restringia à casa nova-iorquina que a mulher, Anne Sinclair, lhe alugara. Ou seja, a acusação de violação prossegue contra o antigo director-geral do FMI, impedindo-o assim de regressar a França para se candidatar às primárias do partido socialista, actualmente na fase de apresentação de candidaturas de lideres do partido.
Na rua, os comentários eram bem diferentes dos ouvidos nos círculos do poder ou nos estúdios de televisão. Os franceses mostram alguma desconfiança com a reviravolta teatral no caso DSK, tal como, no início, uma grande maioria acreditou que haveria uma cilada política contra o ex-director do FMI. Revelações subsequentes sobre um comportamento sexual obsessivo de DSK, pouco conhecido até então fora dos círculos do poder, vieram depois amenizar estas suspeitas.
Deixa também alguma perplexidade neste país a notícia concomitante da demissão de Lisa Friel, chefe da Unidade de Crimes Sexuais da justiça de Nova Iorque, que abandonou as suas funções 48 horas antes da reviravolta no caso DSK, sem que se saiba se esta demissão está ou não ligada ao escândalo. Lisa Friel é considerada como um das melhores magistradas dos EUA e o serviço que ela dirigia até agora atrai os melhores procuradores do país. A Unidade de Crimes sexuais de Nova Iorque estabeleceu a acusação contra DSK e conduziu o inquérito ao caso.