Habituados a existir num mundo antropocêntrico que, há séculos, nos ensina a definir-nos enquanto seres humanos antes de nos definirmos enquanto seres vivos, temos vindo a subtrair-nos de tal forma da grande ordem natural das coisas, que nos tornámos incapazes de entender a nossa morte como aquilo que ela realmente é: início de vida.
Não a nossa, certo, a de centenas de outros seres não humanos, mas vivos, como larvas, bactérias ou mesmo árvores e plantas.
De facto, bastar-nos-ão apenas alguns minutos dedicados à observação da Natureza, para chegarmos à conclusão que a associação do conceito de “morte” exclusivamente ao de “fim da vida” é uma construção profundamente humana.
A desconstruí-la, prestando tributo às sucessivas mortes responsáveis, na Natureza, pela renovação diária da vida, surge a aclamada Sagração da Primavera da companhia italiana de dança e artes performativas Dewey Dell, que chega ao Teatro Variedades, de 22 a 24 de maio, pela mão do Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas – FIMFA.
O espetáculo de dança e formas em movimento vencedor de prémio DANZA&DANZA 2023 como melhor produção italiana, apresenta uma interpretação da obra revolucionária de Igor Stravinsky, substituindo as personagens humanas por larvas, flores, folhas, cogumelos, fungos e insetos, os quais, por oferecerem com as suas mortes a possibilidade, uns ao outros, de nascerem, tomam o lugar da virgem que, na versão de Stravinsky, é escolhida para ser sacrificada num ritual de Primavera.
O drama que se desenrola na narrativa original é replicado na nossa interpretação a um nível microscópico
Teodora Castelluci – coreógrafa e bailarina
“O drama que se desenrola na narrativa original é replicado na nossa interpretação a um nível microscópico”, explica a coreógrafa e uma das bailarinas do espetáculo Teodora Castelluci, sublinhado precisamente que, em vez de uma eleita para ser sacrificada, “há vários eleitos, como a papoila que surge na primeira parte do espetáculo, ou os fungos do segundo ato que, quando libertam as suas esporas, esvaziam-se, perecendo”.

Com o palco mergulhado na penumbra, as primeiras notas de Stravinsky enchem um cenário semelhante a uma gruta na qual se encontra um enorme ovo. Dele sai uma larva,“um animal que, de certa forma, une as esferas da vida e da morte”, sublinha Teodora, pois “se pensarmos bem, é o início da vida de muitos insetos, mas também o primeiro inseto que encontramos quando há uma morte”.

À medida que a música progride, o solo da larva é substituído por uma coreografia ritmada de dois breakdancers semelhantes a aranhas, seguindo-se sequências coreográficas com inseto polinizadores, “relacionados com a fecundação das plantas e flores”, uma papoila, um grupo de folhas, uma enorme aranha, fungos e outros insetos.
Cada coreografia é enfatizada por figurinos que, por si só, poderiam ser um personagem. Formas sinuosas, longas faixas de tecido e andas transformam de tal forma os bailarinos e a forma como se movem em palco, que nos esquecemos de estar na presença de seres humanos.

“Procuramos assemelhar-nos aos insetos não tanto através de movimentos coreografados para conseguir esse efeito, mas mais através da criação de figurinos que nos obrigassem a mover na mesma forma que os insetos se movem”, revela Teodora Castelluci.
É precisamente devido às particularidades destes figurinos “capazes de esconder de tal forma o ser humano ao ponto de levá-lo a parecer toda uma outra coisa”, que a coreógrafa considera que o espetáculo, ainda que seja inteiramente interpretado por pessoas, sem a utilização de marionetas, se enquadra num festival como o FIMFA.