No dia em que Fausto morreu, o presidente da Câmara de Lisboa entregou a medalha de Mérito Cultural da Cidade ao cançonetista Tony Carreira.
No dia em que Fausto morreu, a visita a uma qualquer das “grandes superfícies”, que pomposamente ainda se consideram “lojas da especialidade” na venda de discos, renderia a conclusão de que, na melhor das hipóteses, lá morariam um ou dois exemplares de Por Este Rio Acima.
No dia em que Fausto morreu, uma aventureira consulta às playlists das rádios nacionais mostraria que, entre os felizes contemplados pelos iluminados decisores da divulgação diária e/ou semanal, não constava nenhuma canção de Fausto Bordalo Dias.
Tristeza? Claro que sim, perante o nebuloso silêncio que se abateu, em torno de uma obra única, coerente, teimosa, cheia de lições e de pistas, equilibrista em doses sábias de acutilância, estudo prévio, intensidade e paixão.
Surpresa? Nem por isso – o próprio Fausto encarregou-se de antecipar este e outros cenários num capítulo maior do seu caminho discográfico, que esbarrou no desinteresse e nas febres da moda, no facilitismo vigente, nos compadrios interesseiros em que vivemos, subjugados pela fast food musical ou, melhor dizendo, industrial.
Chama-se A Ópera Mágica do Cantor Maldito, vale como um retrato impiedoso e cáustico do nosso devir coletivo e só quem estiver privado de sensibilidade e atenção não descobrirá por ali muitos toques de autobiografia. Foi lançado em 2003, mas o prazo de validade está longe de se esgotar, bem pelo contrário.
Sem a urgência das mudanças em velocidade da época revolucionária, em que se alojam os discos Pró Que Der e Vier (1974) e Um Beco com Saída (1975), o criador recuperava as vestes – na verdade nunca abandonadas – de “cantor de intervenção”, farpela que parece assustar muitos e que continua a ser tão incómoda como indispensável a quem queira ir buscar às canções mais do que um passatempo amorfo com efeitos entorpecentes próximos aos dos opiáceos. O cenário envolvente é que tinha mudado.
Até para alguém cujos códigos artísticos foram sempre cristalinos: um amor desmedido pela música tradicional portuguesa, com a raiz de chulas e corridinhos depois trabalhada à medida de um talento singular e de um rigor único, bem documentado em todos os seus discos, dos mais conceptuais ou “históricos” aos que pareciam ser – e não eram – apenas conjuntos de canções (como Para Além das Cordilheiras, de 1987, ou A Preto e Branco, de 1988, o seu reencontro quase íntimo com a África onde cresceu); uma tomada de posse peculiar do seu próprio tempo criativo, sem perder tempo a pensar nas leis da periodicidade, por estar indisponível para pressas rendidas ao intuito comercial – veja-se, tão só, os longos intervalos que separam a sua monumental trilogia da diáspora, com uma dúzia de anos entre Por Este Rio Acima (1982) e Crónicas da Terra Ardente (1994), e mais 17 entre este notável segundo andamento e o remate superlativo com Em Busca das Montanhas Azuis (2011); a precisão, quase de ciência exata, com que ajustava os poemas (a que por aqui se referirá o especialista António Carlos Cortez), de que vale a pena sublinhar a transcendente riqueza do léxico utilizado, mais ainda em tempos em que a Língua parece encolher, às melodias, às harmonias e aos burilados e esplendorosos arranjos; a forma exigente, talvez em busca das montanhas da perfeição, como se apresentava em palco, partidário de que não podia adotar a mais comum das táticas, a da meia bola e força.
Fausto justifica a ideia de um “antes” e um “depois”
Fausto justifica – como disse um amigo e estudioso do seu trajeto, Viriato Teles – a ideia de um “antes” e um “depois”. Não será o único, se pensarmos nas ligações que manteve com José Afonso ou Adriano Correia de Oliveira, talvez mais ainda na proximidade com José Mário Branco ou Sérgio Godinho, a nossa “ínclita geração” das cantigas.
Se José Mário Branco foi, entre muitas outras qualidades, o homem dos rasgos no som e na produção, das inquietações sucessivas, das paixões pelo erudito e pelo fado, juntando a isto uma peculiar dimensão teatral ou cénica, se Sérgio Godinho é o que melhor percorre – pela sua particular aptidão “ecuménica” – uma desejável ponte entre gerações, sucessivamente identificadas com as suas investidas sem nódoa, Fausto fecha muito bem esta troika, passe a palavra e fique a ideia.
Voltaram, os três, a afirmá-lo sem reticências em Três Cantos (espetáculos e disco, em 2009), como já o tinham feito para um filme de Luís Galvão Teles (A Confederação, de 1978).
A diferença principal, no que diz a respeito aos feitos de Fausto Bordalo Dias, está na adoção, teimosa e lúcida, de um “livro de normas” mais dirigido, mais estrito mas não mais estreito, nas suas opções musicais. Que a sua forma de tocar – e era, já agora, um instrumentista eleito, reconhecido de forma unânime pelos seus pares – fazia transbordar e que a sua personalidade artística, meticulosa, conhecedora, profunda, transformadora, pouco dada a fogos fátuos e a compromissos de ocasião, remetia para horizontes sempre largos, “mais do que prometia a força humana”, “tomando sempre novas qualidades”.
Ouvir hoje um qualquer dos discos assinados por Fausto tornou-se ainda mais premente
Ouvir hoje um qualquer dos discos assinados por Fausto tornou-se ainda mais premente, pelo olhar histórico alternativo que nos proporciona, e que inaugurou muito antes da forçosa revisita aos compêndios, escolares ou não, pela dimensão humana e pelo pensamento, estruturado mas aberto, das suas “cantigas de tese”, pela dimensão tão próxima e tão acessível, e por isso mesmo tão difícil, das canções de amor, em que era grão-mestre.
Apesar das confluências e mestiçagens das suas descobertas musicais (mas não só), quase apetece dizer que Fausto era o último dos puros.
Guardo para mim as memórias pessoais do que vivi com ele, dos desafios que me fez (falar sobre Por Este Rio Acima a bordo de uma traineira no Tejo, “que vida boa era a de Lisboa”, ou escrever o texto de apresentação de A Ópera Mágica do Cantor Maldito).
Com uma ressalva apenas, face ao mito urbano de que Fausto não gostava de dar entrevistas. Nunca o notei. Mas talvez seja mais correto dizer que o cantor não gostava era de perder tempo a responder a perguntas de quem não se tinha preparado para as fazer. Pois se ele tinha feito o seu trabalho…
Continuarei a ouvi-lo, sempre, e a fazer ouvi-lo, sempre que puder. Na esperança de que haja mais quem pegue na sua obra e lhe vá dando “mais uma volta e outra volta ainda” – como já aconteceu com Né Ladeiras, com os Couple Coffee, com Amélia Muge, com A Garota Não, entre muitos outros. Insistirei em fazer escala, entre as muitas possibilidades que este reportório descomunal abre, numa das tangentes à perfeição da Música Portuguesa: “Lembra-me Um Sonho Lindo”.
Sem perder de vista duas declarações, que talvez se complementem, como só acontece com os muito grandes: “Assim se faz Portugal / Uns vão bem e outros mal”. E “Atrás dos tempos vêm tempos / E outros tempos hão de vir”. Como o tempo de Fausto é eterno, haja esperança nas melhoras.