Nome de referência das letras brasileiras e das literaturas em língua portuguesa, Clarice Lispector está de regresso às livrarias portuguesas, num projeto de publicação da sua obra completa.
É uma iniciativa da Companhia das Letras, que este ano celebra uma década de atividade em Portugal. Os quatro primeiros títulos são relançados já em este mês, a partir do dia 20, proporcionando um encontro ou reencontro com livros emblemáticos do percurso literário da autora.
“Acolher a obra de Clarice Lispector no nosso catálogo é a melhor forma que poderíamos ter imaginado para assinalar o aniversário da Companhia das Letras em Portugal”, sublinham Clara Capitão e Madalena Alfaia, respetivamente diretora editorial e editora do Penguin Random House Grupo Editorial Portugal.
“Ler estes livros pela primeira vez é encontrar uma literatura absolutamente moderna, disruptiva, audaz, extraordinariamente instigante. Relê-los é uma redescoberta permamente de novas matizes, cintilações, camadas sucessivas de significados e intuições, num edifício literário sem paralelo na língua portuguesa.”
A publicação da Obra Completa incluirá não só os romances, mas também outros textos menos divulgados e conhecidos, nomeadamente as crónicas, os contos, as cartas e os textos para a infância, como aliás a Relógio d’Água, a anterior editora da autora, também disponibilizou.
No entanto, para o segundo semestre deste ano está previsto um volume inédito em Portugal, Para não Esquecer, que reúne justamente crónicas e outros textos.
Neste mês de janeiro, contudo, o regresso a Clarice Lispetor faz-se a partir dos quatro romances centrais na sua obra, desde o que marcou a sua estreia ao que foi lançado postumamente. Além do grafismo ousado das capas, com letras recortadas, as edições também se destacam pela inclusão de novos posfácios.
Um dos romances incluído nestes lançamentos iniciais é Perto do Coração Selvagem, o primeiro livro de Clarice, lançado em 1943. Na altura a escritora tinha 23 anos e um percurso no jornalismo, iniciado três anos antes, e também na tradução, uma dimensão que o seu filho, Paulo Gurgel Valente, diz que merecer mais atenção.
Clarice ousou escrever sobre as arestas mais recônditas do nosso pensamento, sobre os sentimentos e desejos mais inconfessados. Procurou e encontrou formas incrivelmente inovadoras de escrever sobre identidade
Tinha também uma enorme experiência de vida, pessoal e familiar, marcada na infância e na juventude pela fuga da Ucrânia, onde nascera, em 1920, pela perseguição aos judeus na Rússia durante a Guerra Civil e, ainda, pelas dificuldades sentidas depois da chegada ao Brasil.
Perto do Coração Selvagem seria logo notado e celebrado pela crítica, sendo ainda hoje um dos seus livros mais lidos. “A leitura deste romance confronta-nos com o que sabemos sobre nós próprios e com o quanto fingimos não saber”, sublinha Susana Moreira Marques no posfácio a este lançamento. Por isso, sugere ao leitor: “Pegue no livro. Pegue no lápis. Encontre as frases para não se esquecer de que a felicidade nunca é dada por ninguém a não ser por nós mesmos.”
Vinte e um anos depois, Clarice publicaria A Paixão segundo G. H., seguramente um dos seus livros mais famosos e comentados. Sucedendo a O Lustre, A Cidade Sitiada e A Mação no Escuro, nos romances, e a um volume de contos, nele se evidencia o trabalhar em torno da linguagem e do fluxo de consciência, do concreto e do abstrato.
É precisamente isso que Carlos Mendes de Sousa sublinha no novo posfácio que escreveu para a edição da Companhia das Letras, o mais extenso dos quatro e do qual pré-publicamos um excerto (ver caixa no final deste texto). No centro da narrativa, uma mulher que, depois de ter despedido a sua empregada, limpa o quarto e se confronta com uma barata, metáfora, símbolo e enigma para todos os nós da sua existência.
Nestes quatro títulos iniciais incluem-se ainda duas obras dos últimos anos de vida da escritora brasileira. Água Viva, de 1973, um romance que, como muitos da autora, desafia as fronteiras do género. Publicado numa época em que a autora era uma cronista muito conhecida, segundo Joana Matos Frias, que assina o novo prefácio, é uma obra que se assemelha à “fala tardia e noturna, por vezes quase sonâmbula, de uma pintora que deseja mudar de meio de expressão e procura assim dar conta, nesta noite ‘mais longa do que a vida’, do seu nascimento enquanto escritora”.
Esta incursão pelos pensamentos de uma pintora não é alheia à ligação que a própria Clarice manteve com as artes visuais, estimando-se hoje que terá pintado pelo menos 22 quadros.
Numa conferência na Universidade do Texas, chegou até a afirmar: “Quanto ao facto de escrever, digo, se interessa a alguém, que estou desiludida. É que escrever não me trouxe o que eu queria, isto é, a paz. O que me descontrai, por incrível que pareça, é pintar. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem compromisso com coisa alguma.”
Escrevia porque não sabia pintar, como chegou a sugerir? Não se sabe, mas sempre defendeu que a pintura era a coisa mais “pura” que fazia.
“Um livro deambulante, concreto e ínfimo, abstrato e inexprimível, uma inteligência dos sentidos e das sensações, mais até do que do pensamento. Torna-se por isso uma constante surpresa, exigência e ousadia”. Eis como, finalmente, Pedro Mexia, em posfácio, caracteriza Um Sopro de Vida, que fecha o lote de quatro relançamentos.
E trata-se, também, do último romance de Clarice, publicado um ano depois da sua morte, em 1978. Uma obra que continua a desafiar estudiosos, como Carlos Mendes de Sousa detalha em entrevista, pois não é claro o que foi efetivamente pensado pela escritora e o que foi reorganizado por Olga Borelli, sua amiga e secretária pessoal nos últimos dez anos de vida.
Exemplos da sua diversidade e do seu experimentalismo, estes quatro lançamentos são, segundo Clara Capitão e Madalena Alfaia, uma boa introdução ao universo da escritora brasileira. “Clarice ousou escrever sobre as arestas mais recônditas do nosso pensamento, sobre os sentimentos e desejos mais inconfessados. Clarice procurou e encontrou formas incrivelmente inovadoras de escrever sobre identidade e liberdade, apontando sempre ao coração da vida. Uma escritora que se antecipou ao seu próprio tempo”.
Foi também a essa obra que o JL dedicou diversas capas, temas e páginas, numa atenção que convocou especialistas, leitores e outros escritores. Além de textos isolados sobre obras especificas, acompanhando as suas publicações em Portugal, o JL fez duas capas com Clarice Lispector.
No número 1109, de 3 de abril de 2013, com textos de Carlos Mendes de Sousa, Nélida Piñon, Affonso Romano de Sant’Anna e Alberto Dines. E no número 1309, de 2 de dezembro de 2020, com textos de Carlos Mendes de Sousa, Isabel Rio Novo, Lídia Jorge, Nélida Piñon e Teolinda Gersão.
O mais abstrato
A paixão segundo G.H., aquele que se tornaria um dos livros mais conhecidos de Clarice Lispector, é um texto maior da literatura do século xx.
O enredo do romance pode ser resumido num breve parágrafo: G.H., uma mulher cujo nome só nos é dado conhecer pelas iniciais, vive confortavelmente no último andar de um elegante edifício no Rio de Janeiro, a chamada cobertura. Na sequência da despedida da empregada, resolve fazer uma arrumação da casa. Dirige-se à área de serviço e entra seguidamente no quarto da empregada, onde pretende iniciar as tarefas de limpeza.
Aí, tem primeiro uma surpresa, que lhe provoca o espanto e a interrogação (um mural desenhado a carvão numa das paredes), e, depois, um choque: o aparecimento de uma barata dentro do guarda-roupa. O desenvolvimento da narrativa decorre desta experiência e não encontramos uma ação propriamente digna de registo, mas acima de tudo uma longa explanação de carácter reflexivo.
Entre a ficção e o ensaio, este romance na primeira pessoa oferece-nos uma das mais originais e esplendorosas meditações encontradas num discurso literário. A dificílima, extensa e desassossegada dicção da voz humana, ao relatar a radical experiência, quando se vê olhada pela barata, é um dizer que queima e dificulta o próprio relato e deixa poucas saídas. Como se a monotonia desértica do monólogo fosse a única forma possível de traduzir a ressonância desse modo dificultoso. Impõe-se, por isso, a urgência da convocação de um “tu” imaginário, em permanente estado de alerta — expediente que contribuirá para um estreito envolvimento entre o sujeito enunciador e o leitor.
A rarefação da trama narrativa em A paixão segundo G.H. leva-nos até um ponto central na literatura de Clarice Lispector: a questão representacional, que por seu turno nos conduz a uma problemática a ela associada — a polaridade entre o figurativismo e a abstração. Muitos leitores se interrogam sobre as dificuldades que o livro pode levantar, em seu pendor abstrato. É A paixão segundo G.H. o mais abstrato dos livros de Clarice? O que esplende no seu mundo não é da ordem da linear captação do real. A própria escritora iluminou as leituras a partir desse foco, num pequeno texto intitulado justamente “Abstrato e figurativo”: “Tanto em pintura como em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu.” Além dos lugares convencionalmente redutores, além dos dualismos pré-concebidos, o figurativo a que Clarice se refere diz o modo como a sua arte pode revelar a realidade mais complexa e não sujeita a constrições categoriais.
Carlos Mendes de Sousa