Perguntou-me o que achava eu daquilo. Não era fácil atinar com as palavras, era tarde, pesava-me o cansaço, apetecia- -me ir dormir, contemplava as luzes do golfo, levantara-se uma brisa carregada de humidade, no terraço do hotel tinham ficado os três ou quatro retardatários do costume, era difícil acompanhá- lo, sobretudo numa língua estrangeira para ambos. De quando em vez, ele fazia uma pausa para procurar a palavra exacta e nesses intervalos a minha atenção perdia-se ainda mais, um país sob vigilância, esperava que eu compreendesse, claro que compreendia, compreendia perfeitamente, ainda que para compreender melhor as coisas fosse preciso ter passado por elas, mas eu sabia muitíssimo bem que nesses anos o seu país estava sob vigilância, ou antes, era um país policial, para falar sem rodeios. Nem mais, disse ele, um país policial, e eu era um pobre funcionário do Estado, porque tudo era do Estado, percebe?, quer saber por que motivo na nota biográfica que eu entreguei ao júri do festival eu escrevi advogado no item “pro – fis são”, é simples, porque era essa a minha profissão, eu era um advogado do Estado, por conta do Estado eu defendia as pessoas que o Estado queria condenar, não sei se está a ver o círculo vicioso, eu estava metido num círculo vicioso, era essa a função da minha profissão, aceitar o círculo vicioso, eu era um cão feito para morder a própria cauda, ou melhor, era a cauda mordida pelo cão. E acrescentou: e se bebêssemos qualquer coisa? Excelente ideia, realmente, anuí, para mim talvez uma tisana, as imagens violentas do último filme que nos tinham impingido naquele dia continuavam em technicolor nas minhas retinas cansadas. A violência em technicolor, repetiu, em contrapartida, lá a violência era cinzenta, não era sequer a preto e branco, era cinzenta, e eu tinha de me adaptar àquele cin zento, porque eu era o cinzento funcionário de um Estado que para fazer crer lá fora que a democracia pertencia ao povo garantia aos acusados um defensor oficioso como nas verdadeiras democracias, só que os acusados que me cabiam não tinham cometido furtos, nem burlas, nem homicídios, nem nenhum dos crimes que constam do código penal, tinham cometido o crime de pensar de maneira diferente da maneira de pensar do Estado e tinham exprimido a sua opinião em público ou em privado, porventura em conversa com um primo ou um cunha – do que depois a transmitiam à polícia de Estado. Fez uma pausa, entretanto o empregado chegara com o que tínhamos pedido, mas eu mudara de ideia, preferia um café, um espresso à ita – liana, há ocasiões em que é preciso estar-se bem acordado, são ocasiões raras, perguntei-lhe se conhecia certo provérbio italiano, talvez houvesse no seu país alguma variante próxima, evidentemente que havia: quem muito dorme, pouco aprende, disse com um sorriso, se quiser conhecer uma história insólita sem a levar muito a sério para não dramatizar, eu conto-lhe a história do cão a quem mordiam a cauda.
A brisa amainara de um momento para o outro e dera lugar a uma noite transparente, na marginal passou um grupo que cantava Cielito lindo, da parte da manhã tínhamos visto um fil – memexicano a concurso, não ganhava, o realizador e os actors sabiam-no, era um filme simples e muito verdadeiro, daqueles que nos festivais importantes não levam prémios, talvez algum crítico subtil venha a falar dele. Eles perceberam e entraram no jogo, disse eu. Também eu nessa altura entrara de certa ma neira no jogo, disse ele, mas entra-se no jogo, por viciado que esteja, quando se espera que a carta vencedora há-de sair um dia, é esta a perversidade do círculo vicioso, é como Aquiles e a tartaruga, no papel a tartaruga ganha a corrida, a lógica é convincente, mas a verdade é que Aquiles é Aquiles e a tartaruga somos nós, desculpe-me a divagação zoológica, este salto do cão para a tartaruga, acontece que no processo partíamos os dois ao mesmo tempo, em teoria a tartaruga podia chegar antes de Aquiles, a meta consistia na absolvição dos acusados, meta a que a tartaruga nunca chegava, e a minha corrida consistia em ir a pé-coxinho no encalço de um pé veloz, por forma a que ele não cortasse a meta com demasiados metros de avanço, assim como assim a vitória era dele, digamos que eu me contentava com alguns centímetros, eu trabalhava ao centímetro, não sei se me faço entender, a equação era a seguinte: menos um centímetro de avanço, um ano de trabalhos forçados a menos, dois centímetros, dois anos a menos, e assim por diante, por vezes chegava a ter de contentar-me com milímetros, tentava roer alguns milímetros, dois ou três meses de prisão a menos representam tanto na vida de um homem, por exemplo: o meu constituinte não pretendia de modo algum atentar contra a segurança do Estado, é certo que os livros encontrados no seu apartamento foram publicados em França, mas chamo a atenção deste ilustre tribunal que se trata de textos sobre a Revolução Francesa, a qual, como sabemos, pôs termo à monarquia absoluta: coisas assim, e do Ministério Público nem uma objecção, uma pergunta, um reparo, porque a corrida estava ganha à partida, a sentença já estava lavrada, bastavam uns quantos minutos de uma suposta reunião na sala do conselho para que os juízes viessem ler uma folha que já traziam no bolso, mas com quanto pesar ouviam o meu ar razoado, os meus discursos que pediam clemência ou reivin – dicavam o direito de pensar, consoante os milímetros que pretendesse roer na circunstância.
Fez um gesto com a mão como que a dizer basta, pegou nos cigarros e no isqueiro pousados na mesa, deixou uma nota no prato com a conta. Não quero maçá-lo mais, disse em voz baixa, você está cansado, e esta história já lá vai. Então, num gesto de descabida familiaridade para com alguém que eu conhecera há pouco, detive-o pegando-lhe pelo braço. Não podemos consentir que esta história seja engolida pela noite, disse eu, peço-lhe. Estava a perder-me em pormenores, disse ele, desculpe, vou procurar ser sintético, aliás esta velha história afinal é simples, pelo menos agora parece-me simples e os pormenores empobrecem- -na, acontece que certo dia, dia fatídico, não tinha nem um milímetro para sacar, estava completamente a zero, tinha de ficar pregado à linha de partida, havia de poder argumentar que o meu constituinte era inimputável, mas isso nem sequer era plausível, não era atenuante que se adequasse a um jornalista de talento conhecido por nunca ter discordado do regime, podia lá ser, um homem como ele não respondia pelos seus actos?, haviam de se rir na minha cara. O caso era este: o meu consti tuinte transmitira a um semanário alemão determinados documentos relativos à repressão do regime, tinha um infiltrado no Ministério do Interior e preparara as coisas com cuidado, pedira um passaporte para se deslocar a Frankfurt a fim de escrever uma peça sobre a decadência da Alemanha Ocidental, imagine, atravessaria a fronteira a dez de Janeiro e no dia doze de Janeiro, sábado, o semanário publicaria as fotocópias dos documentos com uma reportagem assinada sob pseudónimo. Não sei o que aconteceu, o semanário tinha as fotocópias em seu poder havia algum tempo e talvez receasse que aquilo fosse extemporâneo, a vossa imprensa vive no medo de que a notícia envelheça, o inevitável nunca acontece, o imprevisto, sempre, escreveu alguém, e o imprevisto resumia-se a isto, a um banal episódio de antecipação, tal era a situação da tartaruga, já não se tratava de roer alguns milímetros, talvez pudesse conseguir o internamento no manicómio, era um pouco melhor do que os trabalhos forçados, porque os intelectuais que iam lá parar trabalhavam menos e eram tratados com mais respeito, mas era pior sob um ponto de vista moral, quando me levantei para botar palavra não me sentia nem cão nem tartaruga, sentia-me um autêntico verme, isto para continuar a baixar na escala biológica, mas como dizia há pouco o inevitável nunca acontece, o imprevisto, sempre. E o imprevisto foi que a porta da sala abriu-se, entrou um funcio – nário que conduziu um senhor até à barra do tribunal, era um homem alto, um pouco grisalho, algum oficial de diligências, pensei, segurava na mão um papel que estendeu aos juízes, os magistrados leram-no um após outro e puseram-se a confabular entre eles, a um gesto do presidente do tribunal o contínuo encaminhou-se para a porta e mandou entrar um jovem com um microfone e uma câmara de filmar, o jovem instalou o microfone no meio da sala, a seguir armou o tripé onde montou a câmara de filmar por forma a enquadrar os juízes de frente e a mim e ao acusado de costas, o presidente do tribunal fez-me sinal para me levantar, chegara a minha vez, a toga pareceu-me demasiado pesada nos ombros e de repente senti um calor exagerado numa sala onde se tiritava, estava a defender um caso realmente difícil, mas debitei o meu arrazoado com convicção apesar de não servir para nada, como lhe disse demoravam-se poucos minutos na câmara do conselho, os juízes daquela democracia tinham pressa de regressar a casa, sobretudo no Inverno, quando as ruas de Varsóvia ficam cobertas de neve gelada e é melhor recolher antes do anoitecer. E no entanto tardavam, e os minutos passavam. Havia um tal silêncio naquela sala, você não imagina, falar em silêncio sepulcral é um lugar-comum, mas não encontro outras palavras, ou melhor, para homenagear um escri – tor do país onde nos encontramos, dir-lhe-ei que era um silêncio de além-túmulo. Finalmente, o colectivo de juízes regressou, mas antes de ler a sentença o presidente teve o cuidado de dizer que errar é humano, que perseverar no erro é que é diabó – lico, e o tribunal estava certo de que o acusado não iria reincidir, era uma pessoa por de mais estimada pelo governo e pelo povo para perseverar no erro e que, tal era a sentença, a reparação que dele se esperava era o reconhecimento público do seu erro, eventualmente no diário do Partido, que lhe oferecia toda a sua generosa hospitalidade. Não obstante a perversidade desta via de saída, porque, como nos processos estalinianos, queriam que ele próprio se reconhecesse culpado, não chegaram a condená- -lo, não tiveram a coragem de o condenar, o que nesse tempo era realmente insólito no meu país. Felicitei o meu cons tituinte, que ostentava no rosto uma expressão incrédula. Eu ansiava por abandonar a sala para conhecer aquele homem distinto, o ilusionista que hipnotizara as feras e mudara sob o olhar dos espectadores o número de circo. Ele não achara nada de estranho naquilo tudo, por vezes os artistas são assim, eu nunca vira pessoalmente o realizador em causa, conhecia-o apenas de nome, o que me interessava era o porquê daquela irrupção, mas que pergunta, não se tratava de modo algum de uma irrupção, ele era muito simplesmente um dos realizadores do Instituto do Estado para o Documentário, um organismo do Estado, lembrara- se de fazer um documentário sobre os processos movidos a cidadãos acusados de actividades contra o Estado, pelo que solicitara ao Estado a devida autorização, autorização que lhe foi obviamente concedida pelo Estado, porque uma instituição estatal não pode impedir a um dos seus realizadores de filmar os processos que têm que ver com o Estado. Naturalmente, todo o material filmado teria de passar pelo crivo de altos funcionários do Estado para receber a respectiva aprovação antes da montagem, está-se a ver que nunca tal aprovação seria concedida, mas isso era secundário, porque o que importa é filmar a realidade, e cabia a esses funcionários arquivarem a realidade, não podiam deitá-la fora, e eu sabia tão bem como ele que os funcionários do Estado, neste caso os juízes, não gostam de ser julgados por outros funcionários do Estado, porque o nosso Estado assen tava na suspeita recíproca, único elemento de coesão que o mantinha de pé: aí tem, o objectivo era este, filmar para depositar nos arquivos o nosso presente, estava esclarecido? Aqui chegados, perguntei-lhe se podia dar-me a sua morada, o telefone era de evitar, sendo um apaixonado por cinema, eu gostaria de me encontrar com ele. Mas não o fiz logo, na verdade o cinema interessava-me pouco, só o fiz na devida altura, serei breve, caso contrário acabo por fazer disto um guião, o Inverno estava a acabar, recebeu-me no seu apartamento, um lugar despojado, só lá tinha livros e cartazes, nesse tempo éramos todos pobres. Disse-lhe que gostava de lhe propor outro caso para um do cumentário, um processo ainda mais difícil do que o anterior, coisa digna de integrar os arquivos dado que o réu não era sequer uma pessoa, era a representação de uma peça, não sei ao certo se drama ou comédia, classificasse-a como bem entendesse, era teatro, um espectáculo praticamente sem guião, quase sem palavras, falava-se com o corpo, havia um encenador, é certo, mas num espectáculo há os actores, o autor da música, o luminotécnico, o cenógrafo, impossível sentar tanta gente no banco dos réus, está a ver, nem uma palavra contrária aos ideais do Estado: por assim dizer, o réu era a maneira, considerada subver – siva, de levar à cena o dito espectáculo, mas a própria acusação era pouco clara, haverá maneira de acusar uma maneira? Venha daí filmar um processo à ficção, disse-lhe eu, um processo à ficção em estado puro. Ele aceitou, e filmou a leitura do auto de acusa ção por parte do Ministério Público, uma leitura que se revelou de tal modo grotesca que o próprio Ministério Público se deu conta disso e a certa altura começou a hesitar, não foi preciso os juízes reunirem-se na câmara do conselho, o presidente do tribunal objectou que a acusação não tinha consistência jurídica e que a representação podia ter lugar. Passaram-se meses, talvez um ano, em que não tive necessidade de me encontrar com ele. Até que um belo dia vi-me novamente forçado a bater- -lhe à porta. Mas desta vez não se tratava de uma récita, tratava- se da realidade, da vida de um homem, como então disse, porque a condenação que poderiam aplicar-lhe equivalia a sepultá- lo vivo. Expus-lhe o caso, e ele ouviu-me com atenção. Que pena, disse ele, fá-lo-ia com todo o gosto, de momento, infelizmente, o seu documentário estava parado, o Instituto do Cinema não tinha película, ele já a requisitara às autoridades competentes há mais de um mês, mas ainda não o tinham reabastecido, eu conhecia melhor do que ele a lentidão da nossa burocracia, talvez a película chegasse depois do Verão. Tive como que um sobressalto, creio que nem sequer arranjei tempo para pensar naquilo que dizia, disse: venha daí, mesmo sem película, mestre.
Fez uma pausa. Acendeu um cigarro, hesitou como se receasse não ser levado a sério. Foi assim que se filmaram os meus processos seguintes, continuou, com a câmara vazia, e em todos eles as sentenças foram generosamente indulgentes. Desse curto documentário, menos de meia hora, que efectivamente filmou e que continua sepultado nos arquivos de um Estado defunto, o remanescente, umas boas duas horas pelo menos, ou seja, as imagens rodadas sem película, são as mais emocionantes, mas vivem tão-só no arquivo da minha memória e a dado momento quase me pareceu vê-las projectadas no ecrã desta clara noite de Maio. Calou-se, dando-me a entender que nada tinha a acrescentar, ergueu o copo num brinde a qualquer coisa só dele e disse a seguir: agora percebe por que razão não escrevi “argumentista” na minha ficha biográfica, mas isso não tem importância, a coisa mais cómica desta história toda é a frase que eu lhe disse para convencê-lo a filmar sem película: mestre, o que está aqui em causa é a realidade, não um filme. Agora, que ele já não está entre nós e este festival lhe dedica uma retrospectiva integral, com exclusão do seu filme mais importante, aquele que não ficou guardado em película, ocorreu-me um desejo que não sei se é nostalgia ou queixume: gostaria que por artes mágicas ele irrompesse da noite, um instante que fosse, para rir comigo daquela minha frase.
Pusera-se de pé. Esboçou um gesto amplo que me pareceu desprovido de significado, como se abraçasse a noite. Daquela minha frase, acrescentou, mas não só dessa frase, de muitas outras coisas, só nós dois poderíamos rir, ele e eu, de muitas outras coisas, realmente, agora que já não é possível, mas receio ter abusado da sua paciência e do seu cansaço, encontramo-nos amanhã de manhã para a primeira sessão, é um filme tirado de um best-seller, boa noite.