Quando chamaram o Sr. Ezequiel eu não disse nada, pensei: “Já tem a sua idade, está próximo da reforma, eu ainda sou novo, isto não é comigo”.
Quando chamaram a D. Filomena, eu não disse nada, pensei: “Chegava sempre tarde e passava o dia ao telefone. Eu chego sempre a horas, isto não é comigo”.
Quando chamaram o Gonçalo, eu não disse nada, pensei: “Com aquele ordenado e todos aqueles privilégios não poderia ficar aqui muito tempo, rápida é a ascensão, grande é a queda. Isto não tem nada a ver comigo”.
Quando chamaram a Susana, eu não disse nada, pensei: “É natural, o seu trabalho é meramente técnico, hoje em dia qualquer máquina pode fazer aquilo, eu bem lhe avisei que deveria tirar uma pós-graduação ou coisa assim. Isto não tem nada a ver comigo”.
Quando chamaram o Paulo, eu não disse nada, pensei: “Pelo menos este não tem filhos nem família para sustentar, acaba por arranjar qualquer coisa. Isto não tem nada a ver comigo.”
Quando chamaram a Daniela, eu não disse nada, pensei: “Também, com aquele mau feitio, sempre a protestar, a exigir melhores condições e a responder mal aos patrões. Isto não tem nada a ver comigo”.
Quando chamaram o Jacinto, eu não disse nada, pensei: “Quem lhe manda vestir-se assim? Sempre com a camisa para fora e os sapatos desapertados. Isto não tem nada a ver comigo.”
Quando chamaram a Isabel, eu não disse nada, pensei: “É o que dá estar sempre a engravidar, e depois os filhos passam o tempo doentes, quando não é o Antoninho é a Joaninha, quando não é a Joaninha é o Afonsinho. Isto não tem nada a ver comigo”.
Quando finalmente me chamaram, e disseram que era mesmo comigo, eu apenas me perguntei: porque fiquei tanto tempo calado?
(Inspirado num poema de Betrolt Brecht)