Pense no Haiti, reze pelo Haiti. A canção parece vir mesmo a propósito da catástrofe ocorrida na ilha das Caraíbas, mas, na verdade, e de forma inteligentemente irónica, a música Caetano Veloso e Gilberto Gil, inserida no álbum Tropicália II fala do próprio Brasil. Na altura, nos anos 90, corria uma campanha de ajuda humanitária ao Haiti – aquele que é um dos mais azarados países do mundo tinha acabado de sofrer as consequência de um devastador furacão. Caetano e Gil quiseram chamar a atenção para o absurdo de estar a ajudar o Haiti perante a miséria que se vive/vivia no Brasil. Por isso cantam “O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui”. E o tema tem uma toada hip-hop que se ajusta ao tom de protesto.E uma música de intervenção.
A verdade é que perante o tremor de terra, o minuto maldito em que a terra quase engoliu um país, a miséria haitiana é incomparável. E toda a ajuda é bem vinda, seja do Brasil ou da Somália.
Não obstante, a letra tem alguns pontos que se aplicam a actual situação, que são precisamente aqueles que aproximam o Brasil da república das Caraíbas. É também isto que se vê aqui e ali: “De ladrões mulatos e outros quase brancos/ Tratados como pretos/ Só pra mostrar aos outros quase pretos/ (E são quase todos pretos)/ E aos quase brancos pobres como pretos/ Como é que pretos, pobres e mulatos/ E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. Os mortos podem chegar aos 500 mil, mas o mais difícil é cuidar dos vivos, pois “pense no Haiti, reze pelo Haiti”
Letra de Haiti (Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui