A água quente envolvia o meu corpo com carícias.
Mergulhei lentamente até aos ombros, calcando o corpo na areia movediça.
A lua assistia curiosa ao mergulho nocturno.
Um corpo esquálido e de uma impressionante tez pálida furtava-se da opressão pesada da atmosfera terreste.
Do bafo quente que os monstros da terra exalam, e que se estendem como presas pegajosas nos nossos ombros, que nos agrilhoam os membros a vaguear mortolências pela crosta terreste.
À hora que os monstros terrestes dormem, ressonando hálitos amargos de putrefacção regeneradora, o meu corpo entregava-se mansamente à soberania da água.
Um transfuga lento. Desfazendo-se da argila, do pó, do sulco de musgo que pesava como um fardo crucifixo nas costas.
Como uma marca de eterna e atroz escravidão do natureza.
A cabeça rugosa, mantinha-se erecta à tona de água, num terror petrificado, escutando qualquer movimento.
Subitamente, o meu corpo boiava.
Ganhava uma energia invulgar.
Os meus membros impulsionavam-me com uma facilidade que nunca experimentara em terra firme.
Era uma sensação sublime; de poder e libertação que me crivava os olhos de lágrimas salgadas.
Num gesto abrupto de repulsa e chamamento, o mar devolvia-me a terra.
Empurrava-me de novo para as areias movediças.
Escapava-se de novo, lançando-me um esgar de troça perante a minha impotência.
Movido por uma tenaz vontade sobrenatural, continuava a rastejar, como o havia feito toda a vida.
Rastejava instintivamente em frente.
Buscava a mansidão da luz que estendia o seu tapete luminoso e fluorescente sobre a água.
Um cone de luz interminável que se extinguia no sorriso maternal da Lua.
Era ali certamente, no sorriso da Lua que conheceria as doçuras da maternidade, que desconhecia, porque sempre havia rastejado só no mundo.
Era o único ser rastejante vivo do mundo.
O resto eram os monstros terrestes.
Sabia que se rastejasse o suficiente, descobriria a origem do som que soprava em rajadas, ora zangadas, ora em brisas ternas e melodiosas de voz trémula de carícias.
Sabia que o som do vento, era a voz da Lua, a voz da minha mãe.
O rumorejar do mar no seu vaivém altivo e inefável era o chamamento.
Era o movimento perpétuo que obrigava a rastejar continuamente.
O meu ventre magoado deixava atrás de si um interminável rasto.
Um caudal de esperança que marcava o destino do meu trilho.
Nunca olhar para trás.
Nem sequer sabia o que ficava para trás.
Apenas um rasto fino, imperceptível e efémero, que traçava o sentido da minha existência.
E que o vento e o mar, cúmplices, se encarregavam de apagar, ocultando os vestígios da minha passagem.
Enterrando fundo no anonimato da areia regular o meu passado sem história.
Uma linha recta para rastejar até à lua.
Era só isso que sabia.
Era só isso que precisava de saber.
Mais nada importava.
O mar regressava, numa onda dócil que me estendeu a mão enternecida e me puxou com uma candura que eu nunca havia experimentado na inerte matéria terreste.
Puxou o meu corpo devagarinho.
O vento, normalmente distante, cavernoso e impávido, baixou as suas colossais beiças, e soprou com firmeza paternal, nas minhas costas, empurrando-me para o mar.
O meu ventre sentia de novo as carícias do mar.
Massajando-me com uma hospitalidade tranquilizadora.
Já não rastejava.
Deixara de rastejar.
Agora nadava.
Nadava furiosamente, com agilidade, subtileza e uma alucinante velocidade.
Nadava em direcção ao cone de lua.
Com cabriolices de menino, nadava como se a água fora sempre o meu elemento natural.
O mar marejava alto e em bom som, parecendo aplaudir.
Nos céu, as estrelas faziam-me adeus com sorrisos cintilantes.
A lua, comovida … embevecida … soltava uma lágrima luminosa, que caía lá bem ao fundo no mar.
Era para lá que eu ia.
Para colher a lágrima da minha mãe.
Eu que era filho do Vento e da Lua, e protegido do mar e das estrelas.
Eu que finalmente me libertara da escravidão da terra, do musgo, da areia e do terror dos monstros terrestes.
Nadava, nadava sempre em frente.
Submergi a cabeça.
Mergulhei fundo no mar e escutei o silêncio magnífico que só se escuta nas conchas e no coração do oceano.
Continuei a ver o caminho de luz que se desenhava e por ele nadei para sempre.
Para longe de terra, cada vez mais longe.
Até ao dia em que a ela voltasse para nidificar ou morrer.
Para prolongar o terrível ciclo de vida das tartarugas.