Quem se interessa por Museologia e tem a possibilidade de ir visitando Museus ao longo dos anos rapidamente se apercebe de padrões. Por exemplo, que parecem existir regras para mostras de Arte Moderna, no sentido em que (assim colabore o acervo) há associações de pintores e temas que se repetem, de Los Angeles a Copenhaga. De tal modo que o que começa a chamar a atenção são as exeções, autores que surgem suficientes vezes para serem notados, mas não as suficientes para os considerarmos membros efetivos.
Um deles é Lyonel Feininger, pintor norte-americano de ascendência alemã e que, de resto, trabalhou regularmente na Alemanha, ligado ao Expressionismo e sobretudo à Bauhaus, até à ascenção do Nazismo. Há nisto uma ligeira batota: Feininger chama a atenção de quem já o conhece enquanto um dos mais museologicamente representados autores de banda desenhada que poucas vezes é referido enquanto tal. E acrescenta-se outra batota: o trabalho de Feininger em BD foi de muito curta duração, as séries de grande formato para jornais americanos Wee Willie Winkie’s World (1906-07) e sobretudo The Kin-der-Kids (1906). Que este trabalho seja continuamente citado como um marco da banda desenhada clássica, e que Os Meninos Kin-der mereçam por isso a exelente restauração e edição em grande (enorme) formato de Manuel Caldas (Libri Impressi), é o maior testemunho à qualidade que Feininger trouxe para a BD. Não esteve sózinho, claro. Na época havia espaço (quer em número, quer em tamanho das páginas), os autores tinham experiências prévias diversificadas, a linguagem não estava ainda consolidada ou o mercado massificado. Um tempo ideal para experiências, de Winsor McCay a George Herriman, passando por Cliff Sterrett ou Gustave Verbeek. No entanto, talvez a inspiração mais directa para The Kin-der-Kids passe mais por uma tira também protagonizada por miúdos aventureiros, The Katzenjammer Kids do germano-americano Rudolph Dirks (iniciada em 1897), e, por sua vez, inspirada na clássica história ilustrada alemã Max und Moritz de Wilhelm Busch (1865).
Não que Os Meninos Kin-der chamem logo a atenção pelas personagens e situações, que o tempo curto da série mal deixou estabelecer, e sobretudo vaguear das premissas iniciais (ou mesmo explicar por completo). O que fascina no trabalho de Feininger é a alternância de soluções, o jogo de formas e cores, o uso do surreal e do absurdo mesclado com os elementos não-tipificados da narrativa (como a oposição entre o mecânico Japansky e o espetral e clarividente Misterioso Pete) para criar algo que, um pouco como o trabalho de Tiago Manuel em Sai do Meu Filme, usa (conscientemente ou não) os códigos e a aparência de uma história infantil para melhor perturbar. E não apenas com elementos narrativos óbvios, como a caça à baleia (p. 11), já que a crueldade não estava ausente deste tipo de BD (à semelhança das histórias “infantis” que a antecederam). Feininger também perturba graficamente com um hipnótico trabalho de composição. Se há casos de páginas equilibradas numa busca de simetrismo que se viria a tornar “clássico” (como exemplificado com a torre do campanário da p. 18) noutras instãncias Feininger cria claros desequilíbrios que nem sempre desfaz, deixando vinhetas com largas manchas “vazias” (por exemplo nas p. 21, 24, 27, 33), por vezes aumentando a espetacularidade da cena, por vezes fazendo pensar se não “falta nada” no desenho. Noutra perspectiva, se há muitas páginas “protagonizadas” por manchas planas monocromáticas (ou com tramas ligeiras), surgem noutros locais sombras e arestas a sugerir o Expressionismo (p. 23, 27), ou ainda o enovelar de uma miríade de traços, como nas magníficas páginas-turbilhão de tempestade (sobretudo a p. 28). Por outras palavras: Os Meninos Kin-der estava ainda à procura de uma certa coerência/identidade quando acabou, tornando-a por isso mesmo num manancial de surpresas e experiências que têm a obrigação de interessar (também) novos autores demasiado presos a códigos, sejam eles “clássicos” ou (pior ainda, pela atitude intolerante que costumam gerar) “alternativos”. Os Meninos Kin-der é uma edição romântica, numa altura em que é lícito desconfiar se ainda há suficientes leitores para a BD em papel. Uma loucura que se admira e agradece.
Os Meninos Kin-der. Argumento e desenhos de Lyonel Feininger. Libri Impressi, 40 pp., 22 Euros.