Vi o filme com emoção depois de uma quase sesta com um simpático filme que passou antes. Julguei que iria a dormecer, para minha infelicidade. Quase uma hora de planos fixos. E no entanto tanta acção e sobressalto. Neste filme não se sente apenas o corpo conformado/inconformado do mercenário Paulo Figueiredo a testamentar, mas também o corpo pequeno e frágil da realizadora a tentar pensar e a perceber as implicações de uma narrativa de alguém fiel aos ideais de um mundo antigo, e a uma lógica implacável e cruel que implica tudo, desde os ideais fascistas de coragem, patritismo, violência e sangue, até ao seu uso preverso pela CIA ou pela Espanha a democratizar-se.
Senti ao longo filme Salomé a arriscar frente a alguém que mostra a sua monstruosidade e que sabemos que pode usar da violência contra ela, que quer e não quer contar a história, porque é esta narrativa que dá sentido a uma vida que perdeu quase todo o sentido – e tudo o que sobra é um fluxo narrativo feito de flash-backs, como se a montagem fosse um processo da memória, contaminado já pela grande montagem caótica em que se tornou a cultura. Salomé remonta e serializa a narrativa de Paulo em pequenas secções, como se fosse uma pontuação, para podermos digerir e tornar mais reais as coisas, dessentimentalizando-as, dando-lhes vigor e um caracter algo literário. Entre os provérbios populares, as narrativas das histórias aos quadradinhos, os heróis dos filmes de guerra, o cowboy solitário, o psicopata, a narrativa de paulo é limpída, com as suas frases curtas e lapidares, por vezes interrogativas, eivadas amíude de humor, ou mesmo nuas na sua radical crueldade. Na fala Paulo tem o estilo de uma narrativa americana, diria ele, “sem mariquices”, directo, chamando as coisas pelos nomes, ou à antiga portuguesa, agarrando o touro pelos cornos.
O desconforto deste discurso interroga o nosso conforto e a hipocrisia que coexiste com a suposta democracia, ou mesmo com os discursos que à sombra da democracia a desconstrõem. A posição usual dos artistas é partir do status quo como algo adquirido, em que podem exercer o desconforto, e sentirem como legitimo o reconhecimento ou o apoio económico desse status quo. É um belo paradoxo. Paulo está numa posição semelhante, mas mais ingrata. É na fidelidade radical a um status quo que deixou de reconhecer que se vai aprofundando um ressentimento e construindo uma marginalidade que desde o ínicio se sabia inevitável.
Não sabemos quantos homens paulo matou. Talvez centenas. É-me mais horrível ouvir a maneira como matavam com sadismo, à granada, os homens nas sanzalas, e dessa lógica de guerra, terror contra terror, impiedosa guerrilha de ambas as partes, do que os trabalhos cirurgicos de matar etarras. Ninguém sai ileso, nem o estado português, nem os movimentos de libertação. A guerra, o serviço militar, era o assassinato não só consentido, mas legitimado, todos o sabemos. O nacionalismo, seja de esquerda ou direita, seja comunista, fascista, ou democrático, tem a essa lógica. Quando a guerra cessa os militares, sentem-se perdidos, desamparados, privados da sua razão de ser e da sua psicose. É deste desespero que nasce o mercenário. O que Paulo tenta sugerir é que somos nós os responsáveis, mas que também lhe agrada esse papel maldito, como o do heroi tradicional. Salomé tenta demarcar-se sem aprofundar o tema, com uma espécie de notas de rodapé. Seria estúpido o narrador ser mais opinativo, porque a função do filme é confrontar-nos com a brutalidade dos factos. Somos nós que temos que aprender a defendermo-nos. É a nossa consciência que tem que ter força. A realizadora não pode desculpar a crueldade que aí vai, nem mascará-la com moralismos de última hora.
Qualquer interpretação que tente ler este filme como uma apologia do mercenário ou como veinculadora da ideologia fascista é absurda e descabida. Salomé não está a fazer poesia épica, mas a mostrar a multiplicidade de fragilidades que coexistem com a violência. Nesse sentido este é um filme lírico em que surge a consciência dupla quer de Paulo quer de Salomé, vindas de campos opostos e que desmontam simultaneamente o épico. É claro que o épico sempre se desmontou a si mesmo, basta ler a Íliada ou os Lusíadas, e nelas perceber que o épico é a fatalidade, e o que o alimenta é a “bela morte”, inexorável e triunfal. Mas o filme deixa, no fim, Paulo entregue a si, à sua morte, sem deslumbres, e Salomé, pelo contrário, a uma vida que ainda não dispensou o encantamento. Talvez não tenha mais nada a dizer sobre Paulo, porque há que viver a vida e fazer outros filmes.