Esta semana o ministro Miguel Relvas, comemorando um ano de governo, declarou com orgulho, ao propagandear programas para jovens em busca de futuro profissional, o seguinte – “Nós hoje já não exportamos só futebolistas, exportamos cientistas, exportamos pintores, artistas plásticos. Hoje temos essa capacidade, esse é o grande bem de um pequeno país. (..)Foi um modelo que endividou, foi, foi um modelo que apostou demasiado em infra-estruturas. (…)o problema de Portugal não é de hardware, mas de software, pois faltou uma estratégia, um modelo de competitividade.”
Gostei do enfase, e da redundância, posta nas artes plásticas, e da trilogia futebolistas, cientistas, artistas. Coisa específica. Relvas omitiu a maior parte das profissões, muitas das quais exportaram coisas boas, saíndo ou não saíndo do país. Na verdade, e falando de artistas, Portugal já exportava artistas no tempo de Salazar. Vieira da Silva, Paula Rego, etc. A exportação não custava dinheiro, embora, a partir de certa altura a Gulbenkian apoiasse. Os artistas desenrascavm-se e desenrascam-se”lá fora” independentemente da formação, do software ou do hardware. No entanto não temos nenhum “Ronaldo das artes”, nem nada que se compare.
Quanto ao hardware, hoje temos muitos museus, práticamente vazios durante a semana (ou com escolas, para dar boas estatísticas de visitantes), excepto o CCB e Serralves nos circuitos domingueiros. O que já não é mau. Queixou-se a mim, longamente, no mesmo dia, um programador de uma das grandes instituições, dessas que não tem dinheiro para fazer a coisa como deve ser. Que o “art world” estava morto neste país. Que o público não vai, o “criticismo” não existe, as galerias não vendem (chegando a fechar exposições antes da data prevista), as revistas desapareceram, ninguém sabe dos artistas que estão nas ruas da amargura sem um tuste para pagar o estudio. Deveriam aproveitar as “oportunidades”, mas com o art world neste estado a coisa é mais do que desmotivante.
Marcel Duchamp dizia que o artista se devia tornar clandestino. Muitos artistas, nas últimas décadas, construiram as suas obras contra o mercado da arte ou o art world, apoiados por vezes pelo mercado e o art world. Ora o mercado e o art world, com as suas opiniões superficiais e a sua especulação de preços acéfala, já cá não estão. Não sei se vão voltar. Aos artistas, como aos arquitectos (dixit Souto Moura), como aos professores (dixit Passos Coelhos), caso queiram sobreviver, só resta emigrar? Talvez…
Mesmo nos anos de ouro, os em que havia dinheiro (os anos 90), o art world português não conseguiu nem construir uma massa crítica séria, nem criar um meio consistente, nem melhorar significativamente a formação, nem criar umaa estratégia lúcida de exportação. Houve, é certo, gente a gastar dinheiro – o Berardo, o Rendeiro, o Oliveira e Costa, entre outros. Alguns aconselhados e bem. Mas visto de fora, parecem seguir a lógica, nem sempre má, do novo-riquismo, da arte como modo de legitimização das fortunas.
Como “produtor” que sou desconfio da competência opinativa da maioria das curadorias, dos críticos ou dos galeristas. Conhecem os modos de circulação e as técnicas de difusão, assim como o busílis do comércio. Mas falta-lhes o olho clínico e uma cultura visual aprofundada. Mas são indispensáveis, porque estimulam, fazem mexer, circular, tagarelar, questionar, etc. Os artistas precisam de feed-back para estimular a sua auto-estima e de carcanhol para sobreviverem ou alimentarem os seus talvez extravagantes vícios. Precisam de uma boa controvérsia para rivalizarem e melhorarem, através da luta, a sua produtividade (falando como um ministro).
É claro que há artistas, que passaram ao lado do art world, e dos quais não sabemos práticamente nada, e que de repente se descobrem. É o caso de Karl Waldmann, um tipo que se fartou de fazer colagens construtivistas-surrealistas-dadaísantes nos anos 30 e 40. A falta de informação sobre ele é gritante, mais parecendo uma ficção. Aqui vai uma das suas imagens com uma imagem de fundo com calçada portuguesa. Será Lisboa nos anos quarenta?
Não sou de lamúrias. No ínicio dos anos 80 queixava-me em manifesto (“proclamação neo-canibal”) de não se exportar arte e do amadorismo generalizado. Em trinta anos e picos temos mais espaços, mais know-how, menos ingenuídade, e artistas-empresários a trabalhar à grande (penso no Cabrita Reis e na Joana Vasconcelos) a dar o exemplo. Continua-se, apesar do desalento, a fazer muitas coisas excelentes na clandestinidade doa ateliers (como se dizia antigamente) que um dia se descobrirão, talvez tarde de mais, ou talvez não. Nestes anos de despesismo temos redescoberto que afinal a arte cá da terra (nesta perspectiva provinciana) tem coisas surprendentes e excelentes, e que urge refazer a “nossa” história de arte numa perspectiva menos complexada. É claro que tudo se “globalizou” e que os provincianismos tendem a desaparecer na dinâmica das redes… Mas neste momento não há mercado aqui, não há público aqui, e só há um resto de criticismo aqui. E o fluxo internacional da arte não anda a passar por aqui (caso houvesse dinheiro cá estaria, óbviamente!).
P.S.
A alta autoridade tributária e financeira tem andado a enganar artistas desprevenidos (dizem-me vários colegas), inspeccionando de A a Z e fazendo confundir, deliberadamente, Benefícios fiscais de Propriedade Intelectual com Direitos de Autor, fazendo reajustamentos incorrectos e falsos, obrigando a dar provas rigorosas de cada acto de comércio (é como pedir aos dentistas que levem os clientes com os dentes para serem inspeccionados) e aplicando coimas maldosas. O rigor fiscal passou para o campo da criminalidade do Estado. Os impostos já são em si uma forma de roubo em nome do bem comum, ainda que haja aspectos positivos nesse mar de corrupção, burocracia e oportunismo de que se constitui o estado. Num meio moribundo e às moscas as afirmações de Miguel Relvas já nem sequer divertem ou servem para exercer a ironia, são apenas ingénuas. E o maior defeito dos governantes não é a hipocrisia, mas a ingenuidade. Os artistas plásticos nunca foram subsidiados, nunca foram objecto de investimento directo, e o dinheiro gasto pelo Estado nesta àrea sempre foi institucional, recaíndo irrisóriamente no comissariado e no apoio às galerias nas feiras de arte (o que é indispensável!). Não adianta fazer o papel de vítima ou de cultivar lamúrias ou de alimentar um inútil ressentimento perante as circunstâncias ou estado, porque acabaremos ainda mais esfrangalhados. Cabe aos artistas, à falta alguém que genuinamente virado para a arte, dar ao art world o que lhe falta agora – público, circulação, debate sério, entusiasmo, e atraír “comércio”, nacional ou internacional. E nesta hipótese de sobrevivência, vamos continuar a asgatanhar-nos, a invejar e a admirar uns aos outros.