Estou em estado de choque: hoje, às 9 e 30 da manhã, até a Antena 2 passava fado.
Relaxem, não vou escrever mais um desses textos a dizer que o fado não-isto e não-aquilo. Vou antes aproveitar aqui (que ninguém nos lê) para ser mais pessoal, ou seja, para falar da minha vidinha.
Mas gostava de arranjar alguma coisa para dizer mal. Não é assim que se começa uma boa conversa? Não vou falar mal do fado porque já trabalhei com alguns fadistas e acho foleiro a gente morder a mão que nos dá de comer. Pela mesma razão também não vou falar mal do(s) Governo(s), até porque para isso já chegam o Luís Miguel Cintra e o Jorge Silva Melo a queixarem-se da falta de subsídios. Então sobra o quê? Os artistas. Vou falar mal dos artistas, em geral. Quer dizer, de mim, claro.
Quando eu era pequenino fazia desenhos e ninguém me chateava com isso. Só a minha mãe é que perdia a paciência e me arrancava muitas vezes a custo dos desenhos para ir almoçar ou jantar – daqui fica provado aquilo que é do senso comum: que os artistas não precisam de pão para a boca, precisam é de trabalhar.
Foi com a entrada na escola – que se fazia na altura aos 6 anos e não como agora nos jardins(!) de infância onde diligentes educadoras se esforçam em incutir numa criança de 4 anos a poesia de Fernando Pessoa – que percebi que o mundo lá fora esperava alguma coisa desses desenhos. Que se parecessem com alguma coisa, que fossem isto ou aquilo. Lembro-me particularmente do dia em que a minha professora primária me deu os parabéns ruborizada (ela avermelhava-se com facilidade) porque eu finalmente tinha feito um desenho como deve de ser: ou seja, um desenho que ela percebia claramente ser um homem de enxada ao ombro a caminho de casa ao pôr-do-sol. Talvez na cabeça dela este homem fosse o pai herói (estávamos em 1971) qual Lucky Luke nacional, caminhando bucólico ao fim de um belo dia de trabalho. Nunca saberei. Mas passados tantos anos retenho das minhas emoções desse dia um misto de surpresa (esse desenho não era para mim nem menos nem mais do que muitos outros) e de orgulho (o mundo falava-me da importância dele). A partir daqui, duas coisas aconteceram: deixei de ficar surpreendido com os elogios aos meus desenhos (sabia que tinha um público, claaaro) e passei a viver na expectativa do que é que esse público iria dizer dos meus desenhos. Até hoje.
A história repete-se: a minha filha de dois anos martela o papel com uma caneta verde, a ponta de feltro esborrachando-se ritmadamente no branco. Pergunto-lhe “o que é isso?”. Ela faz uma pausa, contempla os borrões de aspecto vegetal e diz “bróculos”. E eu rejubilo (qual professora primária), a vítima passando a carrasco. É óbvio que ela não procurava representar bróculos. A necessidade de dar um significado ao desenho só lhe vem da minha pergunta. Alguém quer melhor explicação para o trabalho do artista? E nos meses que se seguiram a minha filha pegava muitas vezes no marcador verde e dizia-me “vou fazer bróculos”. (Tss tss) Tal pai, tal filha.
Vem isto a propósito do património-não-sei-o-quê que o fado passou agora a ser, por obra de umas quantas professoras primárias (no Bali, parece). A unanimidade nacional, dizem, até a Antena 2, pasmem! O país orgulhoso na tristeza, caramba!