Definir a obra de Pedro Cabrita Reis é uma tarefa árdua. Com provas dadas na pintura, desenho, gravura, escultura e fotografia,é impossivel apelidá-lo de algo que não seja artista. Do silêncio e das inquietações filosóficas fez a verdadeira matéria com que constrói as obras, numa tentativa de fazer delas algo mais que um mero relato da verdade.
É curioso e entrega-se sem reservas ao espanto, isto é, acolhe o inesperado, transformando-o numa das forças motrizes da criação artística. Nada é deitado fora, nada se perde tudo se transforma.
Aos 67 anos, há 50 a criar e a exercitar consistentemente tal lógica de renovação, Pedro Cabrita Reis (PCR) convida o público a perder-se entre as 1500 obras que compõem ATELIER, exposição patente até 28 de julho, de quinta a domingo, das 14h às 18h, nos oito pavilhões da Mitra, em Lisboa.
A retrospetiva de vida e obra, porque, no fundo, andam ambas de mão dada – é a celebração do “derrapanso”” neologismo do próprio, que é a criação de qualquer obra de arte. E dispensa qualquer tipo de organização lógica, porque, sublinha PCR, “lógica não é uma palavra que me agrade”.
O enorme ATELIER surge antes como uma obra de arte composta por várias obras de arte, vindas do acervo pessoal do artista. Uma espécie de autorretrato, desenhado ao longo de 50 anos, em que as feições até podem ter mudado, mas a pessoa, o ser, assegura, é exatamente o mesmo que, aos 15 anos, se confirmava, a pouco e pouco, artista.
A viagem que o público é convidado a fazer quer-se sem mapas, sem folha de sala, sem referências temporais, organização cronológica ou temática. Serve apenas uma boa dose de curiosidade, qualidade que, segundo o artista, é a única necessária para alimentar a capacidade de nos maravilharmos.
A curiosidade é o modo como deixamos vir a nós aquilo que, ainda sem saber, fará parte da construção da obra
pedro cabrita reis – artista
“Reivindica-se, neste espaço, a aleatoriedade, o acaso típico dos ateliers. Cria-se uma identidade que vem da maneira como as coisas estão postas num atelier, sem preocupações de ordem didática ou de outra qualquer”.
Não é a primeira vez que PCR desafia os visitantes a perderem-se nos meandros da sua obra, desenhando os próprios passo ao longo da exposição e construindo, “dentro do seu espírito, uma possibilidade de entendimento” da mesma. Só que desta vez, fá-lo em grande escala.
Entre as 1500 obras escolhidas contam-se peças tão variadas como diversos autorretratos a grafite e acrílico, estudos em gesso e pedra para as “Três Graças”, comissariadas pelo Louvre, algumas das composições autobiográficas de fotografias e notas escritas à mão da série E outros sítios mais, os desenhos da maré baixa ou óleos da recente série The Age of Decay.
Há ainda dezenas de esculturas, desenhos, assemblages de pedaços de madeira, tecido, galhos de árvore e tinta e telas de várias dimensões onde, por vezes, a tinta é usada como autêntica matéria de construção tridimensional.
Numa porta pintada de verde lê-se a branco: “A revolução sou eu”. É fácil imaginar PCR proferir tal frase. É que, apesar de não ter “a menor inclinação para esoterismos, religiões e crenças”, o artista assegura ter “uma enorme crença em Cabrita”.
A esta alia um confiança profunda no inesperado, essencial ao seu processo de trabalho. “Podemos pensar, imaginar ou desejar aquilo que queríamos fazer, mas, no ato da realização do pensamento, o que aparece são circunstâncias que não estavam previstas, coisas que o próprio trabalho, a praxis da criação artística traz e que não estavam à partida inscritas no projeto”, explica entre dois bafos de charuto.
No meu exercício de criação artística, em vez de um esforço em procurar coisas, eu encontro-as. É o trabalho que mas traz. Coisas que não esperava, que não sabia que iam acontecer
pedro cabrita reis – artista
Apesar de ATELIER ser uma retrospetiva de 50 anos de trabalho, 1500 obras, ainda assim, são muitas…Define-se como um criador compulsivo?
Definir é uma ambição prévia. Não me defino, reconheço-me como tal. Por exemplo, no decorrer do processo de montagem e desenho da exposição, como aliás já é uma prática comum, fiz cerca de 20 obras novas. A exposição tem essa característica, presente não só no decorrer do processo da sua realização, mas também naquilo que foi, é e será, enquanto eu estiver vivo, a identidade do meu processo de ação.
A compulsão criativa é reflexo de uma procura, ou pura e simplesmente não consegue existir sem ela?
Picasso dizia, e com muita justeza, “eu não procuro, encontro”. Tenho verificado que, no meu exercício de criação artística, em vez de um esforço em procurar coisas, eu encontro-as. É o trabalho que mas traz. Coisas que não esperava, que não sabia que iam acontecer.
Se, de repente, dás um pincelada para a esquerda em vez de para a direita, ou se, quando estás a fazer uma escultura, em vez de pregar uma madeira decides colá-la ou aparafusá-la, essa simples nuance no modo de fazer ensina-te coisas que não estavas à espera. Não estavas preocupado se poderias ou não fazer isso, mas, ao fazê-lo, encontras uma solução que não te tinha sido anunciada antes.
Este encontro com o inesperado é motivo de espanto?
Penso que não tenha usado a palavra espanto por acaso. De facto, segundo a forma como olho o meu trabalho e me imagino enquanto autor, o espanto não é tanto a perplexidade com o inesperado, mas sim a verificação da importância de algo que vem sem que tenha sido desejado, ambicionado ou construído.
É a capacidade de revelação. Na criação de uma obra de arte, parte-se de um lugar qualquer e dão-se uns quantos passos no sentido de perseguir a ambição, de fazer esse desenho que é prévio ao final da obra. Porém, mal acabámos de dar meia dúzia de passos, já estamos perdidos, nada existe como imaginávamos.
Como é que se lida com isso?
A única forma que temos de deixar que a obra de arte se revele a si própria e se construa com o nosso olhar, a nossa perceção e sensibilidade, é deixar que ela nos ensine. Há aquela frase extraordinária, “o caminho faz-se caminhando”. Uma obra ensina o seu autor a desenvolver-se, aparece no decurso do processo de ser feita.
Não interessa quantos planos temos, quantos esboços fizemos, nem a vontade que gostaríamos de imprimir à obra. Esqueça. Ela tem um crescimento mais vasto do que aquilo que poderíamos imaginar e é aí que nos é pedida uma abertura de olhar chamada curiosidade. A curiosidade é o modo como deixamos vir a nós aquilo que, ainda sem saber, fará parte da construção da obra.
Ao longo da vida, aprendeu particularmente com algum obra em específico?
Não posso indicar uma obra ou um momento em que tenha aprendido mais do que noutro. Todas as obras trazem coisas novas, que acrescentamos àquilo que achávamos que já sabíamos. E todos esses momentos são aprendizagens. É um processo inevitavelmente ligado ao ato de fazer.
Aprende-se com tudo, desaprende-se com tudo, ignora-se com tudo, recusa-se a reconhecer transformações com tudo. E, apesar disso, a obra muda. É o processo de fazê-la que a transforma em qualquer coisa maior.
A única coisa que se pode exigir ao artista é que se deixe levar, ao mesmo tempo que tenta impor a este processo um desígnio, um objetivo. Nesses dois fazeres, aparentemente não coincidentes, aparece a obra, sai dessa fricção.
Aprende-se com tudo, desaprende-se com tudo, ignora-se com tudo, recusa-se a reconhecer transformações com tudo. E, apesar disso, a obra muda. É o processo de fazê-la que a transforma em qualquer coisa maior
pedro cabrita reis – artista
Apesar de esta dinâmica lhe ser hoje tão clara não terá sido sempre assim, sobretudo por ter começado ainda adolescente. Quando é que se apercebeu que tinha nascido artista?
São coisas que nos acompanham. Sabes, vais sabendo, cada vez sabes mais, à medida que continuas. Não há momentos particulares, não há sobressaltos. Vai-te chegando, vais-te apercebendo. É algo que se vai cimentando na forma como vês o mundo todos dias que te levantas, todas as semanas que estás vivo.
Quando se cresce, cresce-se também naquilo que se é, ao mesmo tempo que se percebe o que se quer ser. Desde muito novo que eu tinha essa sensação, sempre percebi que era verdade, que era algo que tinha dentro de mim para o qual nunca encontrei substituições. Nunca quis ser arquiteto, nem médico, nem engenheiro, nem bombeiro nem piloto de aviões. Sou isto, há muitos anos.
Recorda-se da chegadas às Belas Artes, um sítio onde talvez tenha encontrado muita gente com as mesmas inquietações?
O problema é que se chega aquele sitio e percebe-se que não há assim tanta gente com essas inquietações… Ainda assim, teve uma importância muito particular, porque foi um lugar onde encontrei pessoas da minha idade, com quem ia beber cervejas, conversar e passear, vivendo num encontro de emoções, sonhos e coisas que se queriam fazer. Dessa espécie de magma nascia aquilo que cada um viria a ser.
Não imagine que falávamos de grandes teorias. Eram coisas simples, namoros, colegas, críticas à escola e por aí fora. No meu caso, mais do que um lugar responsável por uma formação teórica ou prática, a Escola de Belas Artes serviu para navegar nesse mar de encontros com pessoas que, como eu, estavam lá a estudar, foi um território aberto em que os alunos se encontravam. Hoje em dia, provavelmente, não só não reconheceria como não perceberia nada do que se passa lá dentro.
Poderíamos dizer que a Escola foi o seu primeiro atelier?
Sim. E sabe porquê? Eu entrei nas Belas Artes em 1973. Quando se deu o 25 de Abril, fomos todos para a rua fazer a celebração da Liberdade e da Democracia. A verdadeira escola era a vida e, nesse sentido, Belas Artes esvaziou-se, porque os alunos estavam na rua a tirar o curso, eu inclusive.
A consequência mais engraçada disto tudo é que, de repente, as salas não tinham ninguém e eram grandes ateliers onde podíamos trabalhar sem nos andarmos todos a acotovelar uns com os outros.
O 25 de Abril teve imensas consequências positivas na História de Portugal, no que diz respeito à Escola de Belas Artes, a grande vantagem foi as salas ficaram cheias de espaço, permitindo-nos ficar por ali, a pintar, a conversar…
Guarda memória de algum professor em particular?
Um ou outro professor deixou marca, pela sua qualidade, pela forma como se relacionava com os alunos, pela inteligência e iluminação daquilo que nos trazia. Lembro-me perfeitamente do Jorge Pinheiro, um artista extraordinário que, felizmente para todos, ainda está entre nós, e que deixou uma obra ímpar. Quando me lembro da Escola de Belas Artes, lembro-me fundamentalmente dele.
Mas havia outras pessoas engraçadas e estimulantes como a Margarida e a Maria Calado, professoras de áreas teóricas, a Silvia Chicó e o Lagoa Henriques, um pedagogo notável que, embora também fosse escultor e professor de escultura, deu o testemunho mais criativo e estimulante enquanto professor de desenho.
O desenho é importante para si? Usa-o como uma ponte entre a pintura e a escultura?
O desenho tem uma importância incontornável, única, e deve ser sempre entendido como uma prática em si própria, indispensável, a meu ver. Não é uma coisa entre isto e aquilo, nem uma área coadjuvante de outras áreas. É, em si própria, o princípio, o processo e o fim. É uma ginástica espiritual, que nos permite manter uma boa saúde intelectual para podermos refletir sobre as nossas práticas enquanto pintores ou escultores.
O desenho tem uma importância única e deve ser sempre entendido como uma prática em si própria, indispensável (…) o princípio, o processo e o fim. Permite (…) podermos refletir sobre as nossas práticas enquanto pintores ou escultores
pedro cabrita reis – artista
Desenha todos os dias?
Quase todos os dias. E não faço desenhos para pinturas ou para esculturas. Para isso tenho desenhos mentais. Quando estou com uma folha de papel à frente, eu desenho pelo desenho. Não é um aparato técnico que uso para preparar a construção de outras obras. Tem um valor autónomo, uma massa crítica, uma identidade própria.
Sabe que o desenhos não se corrigem, deitam-se fora. Já a pintura é uma cosmética do olhar, pode-se disfarçar, corrigir. Mas a forma de corrigir um desenho é mandá-lo para o caixote do lixo e retomar, recomeçar uma vez, e outra, e outra, e outra. O desenho tem esse rigor, essa pureza, essa grande exigência mental e é maravilhoso por causa disso.
Portanto, por cada desenho que vemos nesta exposição existirão dezenas no caixote do lixo
Alguns terão ido, sim. Embora eu deva confessar que não deito nada fora. Reorganizo tudo. Um desenho que tenha corrido mal, deito-lhe por cima três ou quatro chávenas de café e um copo de vinho, e transformo-o numa pintura sobre papel. Não se deita fora nada, tudo é passível de ser reutilizado.
Até pode haver um momento em que falha, um momento em que a coisa não correu bem, mas não interessa, é meu, tenho de assumi-lo. Depois pego e volto a trabalhá-lo como quiser. Não se afogam os filhos, só na mitologia grega e nas obras de Wagner.
Não se afogam filhos, mas certamente que nem todos os “filhos” entraram nesta exposição. Como é que se escolhe o que é que fica em casa?
Em casa ficaram algumas coisas, umas porque, do ponto de vista técnico e físico, era impossível mostrá-las. É o caso das peças da exposição A Roving Gaze, que fiz em Serralves, em 2019. Ainda assim, nos primeiros dois pavilhões há paredes com fotografias das obras que não podiam ser expostas aqui. Era a única forma que tinha para trazer para a exposição imagens que me permitissem completar a revisão de processo que é este ATELIER.
E como é que decidiu a disposição no espaço das obras escolhidas?
Disse à empresa de logística com quem trabalho o que iria fazer e pedi-lhes que fossem buscar as minhas obras a um armazém grande, fora de Lisboa, onde tenho isto tudo guardado, mais o resto que não veio. Eles perguntaram o que é que era para trazer e eu respondi-lhes que enchessem os camiões e fossem trazendo. E assim foi.
Depois, já aqui na Mitra, a minha equipa, que para este projeto foi constituída por mais de 20 pessoas, começou a abrir e desembrulhar tudo. Tínhamos obras no meio do chão, encostadas às paredes, umas por cima das outras. Foi nesse caos original que, aos poucos e poucos, foi nascendo aquilo que viria a ser a exposição, a qual poderia ter sido esta ou outras 50 diferentes.
Trabalhamos todos em todos os pavilhões ao mesmo tempo, montamos e remontamos, numa experiência muito enriquecedora. Foi aquilo a que se poderia chamar uma performance. A aprendizagem que uma exposição destas pode trazer começa no próprio processo de ir identificando as obras e dar-lhes destinos, ainda assim submetidos a muitas transformações. Foi engraçado.
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2024/05/240520_LB-Cabrita-Reis-Expo-50-Anos-08-05-24-7733-1600x1067.jpg)
Havia coisas que já não se lembrava de ter feito?
Coma idade, o tempo, isto (apontando o charuto e o copo de whisky) e outras maldades que fui fazendo a mim próprio, a memória para a chamada vida real tem-se diluído. Mas a memória daquilo que é o meu trabalho não. No atelier chamam-me disco rígido. Dizem que a memoria é seletiva. É provável.
Se assim for, a minha memória escolheu selecionar o meu trabalho. Lembro-me de tudo o que fiz e, muitas vezes, lembro-me até onde fiz, as coisas que me aconteceram no processo de criação e exposição dessa obra; ou, no caso das peças terem sido vendidas, a quem vendi, porquê e como.
Ainda se revê nas primeiras obras?
Não me lembro de ter sido diferente do que sou agora. Provavelmente, os políticos, os advogados e as pessoas que trabalham com negócios têm a perceção de que a sua vida se vai transformando naquilo que são as expectativas burguesas da transformação que a idade traz. Melhor para eles, sabem onde é que estão.
Já nós, artistas, temos uma forma diferente de nos vermos a nós mesmos e de estarmos no mundo. Provavelmente, nunca saberemos onde estamos, porque, na realidade, estamos sempre no mesmo sítio: o da criação.
Não há diferenças entre criar aos 20 anos e aos 67?
A diferença é que talvez saibamos fazer melhor algumas coisas, mas não quer dizer que tenhamos qualquer forma de vida diferente. O drama é não conseguirmos integrar a ideia de estarmos a envelhecer, porque a nossa cabeça é exatamente a mesma que era quando estávamos com os nossos amigos de Belas Artes a beber cervejas, a discutir o fim do mundo e a propor-nos tomar conta da sociedade e da arte e correr com os outros.
A criação artística é uma forma material de afirmar a identidade, o que se é
pedro cabrita reis – artista
O que lhe apetece fazer a seguir?
Vou-me dar ao prazer de descobrir. Esta exposição tem sido um ato de aprendizagem. Ao vir aqui todos os dias, percebi coisas que já intuía, mas que me vim a certificar. Devem-se seguir muitas pinturas de paisagem e de figura humana, mas, acima de tudo, seguir-se-ão coisas que ainda não sei. Nada está fechado.
Na vida de um artista não há períodos fechados, podemos pegar no nosso trabalho e retomá-lo a qualquer momento, reformulando-o, redesenhando-o, reconstruindo-o. No final de contas, a criação artística é uma forma material de afirmar a identidade, o que se é.
Não há pontos de partida nem de chegada?
Na criação artística não. Está-se sempre no meio, num lugar onde se pode ir para qualquer lado que se queira. O processo de criação artística é uma espécie de deserto estimulante e enriquecedor, uma paisagem na qual estamos num determinado lugar, a partir do qual podemos ir para onde nos apetecer. Seja qual for o caminho será a direito, continua-se a fazer o que se faz, renovando, reconstruindo e transformando. Talvez seja sempre a mesma coisa. E qual é o mal disso?
Qual a consequência desta transformação constante?
A nossa arte fica mais próxima da forma como olhamos o mundo, dando aos outros – porque é para isso que a arte serve, para os outros – um olhar novo sobre uma coisa que eles já abordaram antes. Uma obra de arte serve para isso: aumentar a inteligência e oferecer às pessoas que a vêm uma maneira de transformar a sua posição no mundo e a forma como se vêm a si próprias. As obras de arte não servem para mais nada