Escrever sobre João Abel Manta (JAM) agora, para mim, é, mais do que associá-lo inevitavelmente a reflexões sobre a fugaz arte gráfica revolucionária em Portugal há 50 anos: é tê-lo como o centro de duas exposições de que sou o curador, abrindo quase em simultâneo neste mês de abril, uma no Palácio Anjos de Algés, mais abrangente, cheia de surpresas e magníficas peças, e outra que abrirá no dia 25 no Museu Abel Manta, em Gouveia, mais especificamente em torno dessa arte gráfica da revolução, de que o artista foi o mais alto cultor, e não menos impressionante no ineditismo das peças.*
Este ineditismo, essa espantosa novidade de peças dispostas a serem mostradas, seria impossível sem o trabalho de “arqueologia de papel” feito durante o ano passado por uma das duas netas de João Abel, Mariana Manta Aires, que tive mesmo o prazer de ter como assistente de curadoria em Algés (e que, para esta exposição, montou uma peça com base nos azulejos que o seu avô desenhou para o mural da Av. Calouste Gulbenkian de Lisboa, em 1972). Graças à ajuda de uma descendente sua, o artista voltou a impressionar com peças absolutamente desconhecidas e o regresso de peças que se julgavam já perdidas.
Mas voltemos à Revolução de que se comemora o meio século. Este inesperado mas excitante influxo de imagens não só não atenua como reforça a perceção de que, sem os desenhos de JAM, a memória desse ano e meio apareceria hoje algo manquejante. Houve outros contribuintes visuais ao álbum das imagens revolucionárias (Sérgio Guimarães, Vasco, Vespeira, as dezenas de autores anónimos de cartazes e murais), mas as contribuições de JAM são, em quantidade e, sem sombra de dúvidas, em qualidade, a espinha dorsal gráfica do chamado PREC. E eram-no já antes de ter começado, em dezembro de 1974, a colaborar com cartazes para as Campanhas de Dinamização Cultural do MFA: não foi este que tornou JAM um artista revolucionário, mas antes o artista já plenamente revolucionário pelo seu trabalho na imprensa, desde maio desse ano, que decidiu alargar o seu portefólio.
E a se ideia que tínhamos dessa carreira revolucionária do artista era a de um passeio triunfal, criando imagens populares umas atrás das outras, este arquivo “desenterrado” pela sua neta revela-nos que foi vítima de inúmeros insultos manuscritos em recortes dos seus cartoons e enviados anonimamente para sua casa (dois serão mostrados em Gouveia), e, já depois de morta a revolução, de acusações de ter sido o “herói do grafismo gonçalvista”. Como se, num período revolucionário, um artista devesse ou pudesse sequer usar da máxima mesura antes de riscar uma folha; como se, enfim, estivesse ainda sob a vigilância censória de uma ditadura. Quando Ramiro Correia foi enterrado em Lisboa em 1977, após o seu afogamento trágico em Moçambique, os autocolantes com a célebre imagem “MFA,POVO” que JAM desenhara para as Campanhas que aquele dirigira, foram proibidos no velório. Como não perceber então o desgosto com a situação pós-revolucionária em Portugal que JAM exibiu no filme da BBC A white wall in Alentejo, que em 1976 procurava saber o que restava da arte revolucionária portuguesa?
Arte revolucionária ou arte aplicada ou adaptada à revolução? Para além do gigantesco volume de imagens que produziu no período revolucionário, JAM foi único também por, num cartoon de maio de 1974, ter procurado alertar a comunidade artística para a importância de, naquele momento, evitar a obsessão com as “obras primas de galeria”, como se Portugal fosse uma extensão de Kassel, e se aplicar em fazer “bonecos para o povo”. Que a intelligentisia do meio reagiu mal sabêmo-lo por um texto de Ernesto de Sousa na Colóquio-Artes de outubro, que citava essas palavras e as dava, de um modo quase acintoso, como exemplo do que não devia ser feito (teria isso provocado o fim de uma amizade que se soldara na cela de Caxias, em 1948, presos os dois pela associação ao MUD Juvenil?).
João Abel Manta era, pois, um artista revolucionário não só pela praxis, como pela possível reflexão em dias de júbilo nas ruas sobre o que deveria fazer um artista em revolução num país tão atrasado como era o nosso, em que esse público que se procurava atrair não frequentava galerias ou museus, mas consumia avidamente jornais (tão curta como a do cartoon – não publicado nos Cartoons de 1975, e recuperado na reedição deste título em 2023 – a sua resposta no filme da BBC à pergunta sobre se se arrependia de ter colaborado com a revolução fica igualmente como um momento raro dessa reflexão sobre o seu próprio labor gráfico revolucionário).
Não há como não concordar com Ernst Volland, o prefaciador da edição alemã-ocidental dos Cartoons em 1976, quando escreveu que se podia comparar JAM com uma miríade de artistas internacionais, mas que ele tinha sobre todos uma vantagem inultrapassável: a de ter estado no coração de uma revolução e de ter colaborado com ela ao produzir imagens, incansavelmente.
Foi essa uma situação raríssima na história da arte que se cruza com a das revoluções, normalmente dadas a devorar os seus próprios filhos (Maiakovski que o diga, ele que, como JAM, partilhou a situação de ter já um nome feito antes da revolução que lhe deu fama). Mas há que perceber o seguinte: João Abel não precisou da Revolução de 1974-75 para se transformar num revolucionário. Se tirássemos do seu portefólio o que produziu nesse ano e meio, ele ficaria apenas um pouco menos volumoso, mas não menos impressionante. JAM era já revolucionário em 1969, tal como fora 20 anos antes, e, nessas duas décadas de entremeio, fora-o muitas vezes de um modo subtil, mesmo em encomendas estatais (lembremos os azulejos dos edifícios da Associação Académica de Coimbra, hoje entregues a um lamentável abandono), e depois de 1975 continuou a sê-lo de modos diversos.
Adormecida já a revolução, em 1976, não foi ele que acabou meticulosamente, como era seu hábito, uma maqueta (agora exposta em Algés) de um cartaz para uma CODICE que já nem existia, um misto de celebração infantil da liberdade de brincar e do brilhante cartaz “Poder Popular” de Marcelino Vespeira? Que um impenitente pessimista como ele, por vezes tão sombrio, tenha acreditado nessa revolução em que crianças e adultos brincariam como se vivessem um sábado de manhã soalheiro pleno de promessas de futuro pode bem ser a prova de um milagre, que uns chamarão de ingenuidade, mas que a ele serviu como o dínamo de uma teimosia enérgica, um motor que alimentou um compromisso inquebrantável. J
*A exposição “João Abel Manta livre” abriu a 5 de abril no Palácio Anjos de Algés e estará aberta até 20 de dezembro. A exposição “Uma coisa nunca vista: João Abel Manta artista revolucionário” abrirá a 25 de abril no Museu Abel Manta, em Gouveia, e estará aberta até outubro.