Um dos nomes fulcrais da dramaturgia portuguesa do séc. XX celebraria amanhã, quinta-feira, 19, cem anos. A assinalar a data, no âmbito das comemorações do seu centenário, sobe à cena, pela primeira vez, a sua peça O Punho, pela Escola de Mulheres, com encenação de Marta Lapa, no Clube Estefânia, em Lisboa. E, a 20, no Teatro Sá da Bandeira, em Santarém, estreia A Arder, a partir de O Judeu, segundo João Garcia Miguel, um primeiro momento de um projeto que terá continuidade no início do próximo ano, no Teatro Ibérico. É a celebração de uma obra dramática, com peças de referência como A Promessa, O Crime da Aldeia Velha, O Pecado de João Agonia, O Duelo e Português, Escritor, 45 Anos de Idade, que importa redescobrir e representar nos palcos portugueses, como salientam os encenadores ao JL. Um tema dedicado ao dramaturgo, com vários textos e testemunhos, que não é possível incluir neste jornal, por absoluta falta de espaço, será publicado em próxima edição
É uma estreia absoluta: O Punho, uma das últimas peças escritas por Bernardo Santareno (BS), publicada postumamente em 1987, vai ser representada, pela primeira vez, nos palcos portugueses. Sobe à cena pela Escola de Mulheres, com direção de Marta Lapa (ML), amanhã, quinta-feira, 19, no Clube Estefânia, em Lisboa, celebrando o dramaturgo simbolicamente no dia em que completaria cem anos. “Trata de um tema mais ou menos tabu, a reforma agrária, um período da nossa História recente pouco falado, mesmo branqueado”, adianta a encenadora ao JL. “Mas é um texto que infelizmente continua atual, que levanta questões muito pertinentes hoje. Basta olharmos para o Alentejo, para o que se passa nas estufas de cultura intensiva e para o modo como vivem os trabalhadores que lá trabalham, na maioria imigrantes”.
O tempo intenso da luta pela reforma agrária, no Alentejo, a seguir ao 25 de Abril, entre 1975 e 1978, é revisitado através do ponto de vista de duas mulheres, “a trabalhadora Maria do Sacramento e a latifundiária, D. Mafalda”, protagonizadas por Margarida Cardeal e Maria d’Aires, respetivamente. “Elas têm uma relação de profundo afeto e grande antagonismo, o que nos dá perspetivas muito interessantes sobre as relações pessoais e sociais”, salienta ML. “Santareno construía personagens femininas muito fortes e essa é também para nós uma mais-valia deste texto”.
O Punho será apresentada em alternativa a O Pecado de João Agonia, a peça prevista no programa das comemorações, numa coprodução com o Teatro da Trindade, um projeto que acabou por cair. Fernanda Lapa, a grande impulsionadora e coordenadora da celebração do centenário de BS, que a iria encenar, com Vicente Batalha, na impossibilidade da sua concretização apenas pela Escola de Mulheres, por questões orçamentais e por implicar um grande elenco, escolheu O Punho. E, antes da sua morte em agosto, a atriz e encenadora fez ainda a adaptação do texto, a dramaturgia, a versão e instalação cénica, a escolha dos figurinos, do elenco e das equipas artísticas e técnicas. “A Fernanda estava com muita vontade de encenar este texto e até ao fim acreditou que conseguiria, mas infelizmente não aconteceu”, explica ML. “Como era seu desejo, eu e o Rui Malheiro assumimos a direção artística, mas não se trata de uma tentativa de fazer o espetáculo como a Fernanda faria”.
A preocupação de ML foi com “o modo como se comunica e pode trazer para a atualidade as questões levantadas no texto, que é datado”. “Pensamos como criar empatia no público hoje”, acrescenta. “O grande objetivo é que aquelas personagens nos toquem e atravessem para repensarmos tudo e percebermos que, afinal, as coisas lamentavelmente não mudaram assim tanto”.
A voz do teatro
Em Santarém, terra do dramaturgo, o centenário começara a ser assinalado na sexta-feira, 20, com a estreia no Teatro Sá da Bandeira, de A Arder, a partir de O Judeu. O espetáculo, com encenação de João Garcia Miguel (JGM), envolve um conjunto de estudantes e atores amadores locais, com quem foi desenvolvido um projeto de formação desde outubro. “É uma peça com um cariz simbólico muito forte em que, de alguma maneira, se pode encontrar uma certa identificação com António José da Silva do próprio Santareno, que se sentiria um pouco ‘Judeu’, repudiado, odiado, censurado, proibido durante o Estado Novo”, sublinha JGM.
António José da Silva, chamado O Judeu, dramaturgo da primeira metade do séc. XVIII, considerado um dos fundadores da ópera portuguesa, autor de comédias como Guerras do Alecrim e da Manjerona e a Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, foi perseguido e torturado, nos cárceres do Santo Ofício, e queimado nas fogueiras da Inquisição, aos 34 anos. Sobre a sua vida Camilo Castelo Branco escreveu o romance O Judeu, em 1886. Foi a partir desse texto, que lhe terá sido sugerido pelo ator Sinde Filipe, que BS escreveu a peça, publicada em 1966. “É muito interessante que tenha tratado a temática dos judeus e o sofrimento que lhes foi imposto. A Inquisição em Portugal foi gigantesca, é devastador o número de pessoas que foram julgadas e queimadas. E é uma parte da nossa História que foi apagada, esquecida”, diz JGM. “E, como sabemos, a questão com os judeus é muito mais vasta, com o nazismo e por aí fora até hoje, o texto tem muita atualidade e uma grande força, dada a noção que cada um de nós pode ser condenado e queimado na fogueira social. A ideia, como também se diz na peça, é iluminar o povo, dar luz a cada um para ver como pode continuar a ter abertura ao Outro”.
Para o encenador, ao construir A Arder, que tem também “humor além do drama”, trata-se de “sonhar e inventar um pouco, sem ameias ou prisões. É um trabalho muito aberto de um autor sobre outro autor que trata de outro autor”, faz notar. “Estou a trabalhar sobre o Santareno, que trabalhou sobre António José da Silva. É teatro sobre o teatro”. Como sempre acontece, no seu método de trabalho JGM fez uma “longa e lenta aproximação” ao universo do dramaturgo, no último ano e confessa que “o espetáculo tem sido uma aventura de descoberta do próprio dramaturgo. Dessa maior “intimidade” com a “singularidade” da sua obra de Santareno, resultará um segundo momento, com a apresentação Homens a Arder, de novo a partir de O Judeu, pela Companhia João Garcia Miguel, no início de fevereiro, no seu espaço, no Teatro Ibérico, em Lisboa. Dessa vez com interpretações de Sara Ribeiro e Miguel Moreira, entre outros. “Quero trabalhar muito a ideia que todos estamos a arriscar cair, com muita rapidez, numa zona de antagonismos, ódios sociais, incompreensões, estranhezas. Ao mesmo tempo, é a perda da possibilidade das individualidades, das diferenças face à homogeneização”, afirma. “Mas acredito que todos juntos encontraremos soluções para continuar a cumprir o nosso projeto de Humanidade”.
O Judeu foi antes encenada uma única vez, por Rogério Paulo, no Teatro Nacional D. Maria II, em 1981, com Rui Mendes, protagonizando António José da Silva, e Ruy de Carvalho, no papel de Cavaleiro de Oliveira. “Era um grande elenco e recolhi testemunhos, na minha pesquisa, que revelam uma memória afetuosa desse momento, mas as críticas foram duras, por um certo lado impossível de encenar, de alguns dos seus textos que, pela sua complexidade e extensão, são um verdadeiro desafio ao teatro”, lembra João Garcia Miguel. E, por outro lado, assevera: “Ele é um dos dramaturgos do séc. XX com uma obra mais consistente e fundamental do ponto de vista da relação com a nossa História. Para escrever O Judeu, fez uma recolha gigantesca de textos. Nessa medida, é um documento histórico fabuloso.
Publicado no JL 1308, de 18 de novembro de 2020.