Se ao nascermos todos temos por garantida a equitativa distribuição da morte, essa derradeira niveladora, não é menos verdade que há seres cuja existência é desde cedo marcada pelo signo do privilégio, e que por isso partem com um avanço tantas vezes irrecuperável para quem deles não beneficia para os reptos da vida. Há privilégios coletivos, que decorrem de contextos históricos e geográficos, dos quais todos nós nesta ponta do continente europeu, ou que alguns de nós, com determinado tom de pele ou de determinado género, beneficiamos, e há os privilégios individuais, fruto da estratificação da sociedade, passados de geração em geração dentro das mesmas famílias. São os privilégios de classe. António Osório (AO) é — ele seria o primeiro a admiti-lo — um desses privilegiados.
Para o que aqui nos ocupa, o privilégio económico por si só não produz nenhuma vantagem substancial, embora uma situação material desafogada possa contribuir, e muito, para o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo, reduzindo a ansiedade que a luta pela subsistência acarreta, proporcionando as condições para a aquisição de competências diferenciadoras e criando disponibilidade para uma abertura ao mundo sem a qual toda a arte é estéril. Mas é de outro tipo a vantagem que calhou em sorte a AO. Falo da vantagem que decorre de uma sólida formação iniciada na infância por uns pais que souberam e quiseram calibrar a sensibilidade do filho segundo os mais elevados padrões, transmitindo-lhe o amor pela grande poesia e pelos valores que esta veicula — ou não fosse AO descendente de uma família que ocupa há séculos um lugar central na vida cultural portuguesa.
Se raros são os afortunados, muito mais raros são os que sabem honrar a sua sorte. Osório pertence à estirpe dos que souberam conformar-se à responsabilidade que vem com o privilégio. Só a aceitação dessa responsabilidade explica que o poeta, ao contrário de tantos dos seus pares, acossados pela urgência de se afirmarem ou pela necessidade de reivindicarem para si um lugar que não lhes estava reservado, tivesse hesitado tanto em publicar os poemas que ia produzindo com a paciência e a meticulosidade de quem se habituou a admirar a magnanimidade do que é grande e abstrato e a dignidade do que é pequeno e concreto, e não transige consigo, à luz dos exemplos que recebeu, nem se compraz com as honrarias mundanas, se não forem, antes de mais, um justo e merecido reconhecimento pela seriedade abnegada do seu zelo.
Sintomaticamente, é desse lento amadurecimento que nos dá conta o poema que abre o livro inaugural do poeta:
A Raiz Afectuosa
Com os anos a pouco e pouco a raiz afectuosa penetrou no fundo da terra até chegar ao mais pequeno e mais antigo veio de lágrimas.
Poema de uma economia vocabular espantosa, outra das marcas desta poesia, ele combina desde logo — com esta “raiz afetuosa” que se alimenta neste “veio de lágrimas” — dois dos elementos fundamentais desta poética: uma valorização dos afetos, atitude oposta à tão portuguesa autocomiseração pelas ofensas sofridas, reais ou imaginárias, e uma aguda consciência da morte e do sofrimento, próprios e alheios, que, mais uma vez contrariamente ao que a tradição nos habituou, opera uma valorização da vida em toda a sua extensão.
Atitude que entre nós tem paralelo apenas em Vergílio Ferreira, embora mais dado à lamúria e ao queixume, e que este condensou na formulação lapidar que deu título a um dos seus mais belos romances, Alegria Breve: a da aceitação da vida tal como ela é, com as suas tragédias e os seus júbilos, a sua brevidade e irrefutabilidade, indubitavelmente preferível ao apagamento da não-existência e à ignorância que a si mesma se ignora. Há um poema de Décima Aurora (1982) que cristaliza esta atitude na perfeição:
Augúrio
Não antecipes a tristeza de morrer: não queiras muito às lágrimas: consola-te bebendo-as. E sê grato ao dia em que, vivo, as tragaste.
Se no poema anterior tínhamos um veio subterrâneo e neste o consolo das lágrimas como autenticação da vida, a verdade é que, no seu conjunto, a poesia de AO é pouco dada à introspeção e às monotonias do claro-escuro. Os seus versos são cristalinos, deles dimana a leveza da luz mediterrânea, lisa, não granular, diáfano véu pousando sobre as coisas, as pessoas e os animais, transfigurando a dor em beleza por ação da compaixão, esse bálsamo que o egoísmo não segrega.
Não é por acaso que comparece na sua poesia um desejo irrefreável de acolher e louvar, o que desde logo a singulariza num universo poético, como é o nosso, em grande medida herdeiro do romantismo, com a sua exacerbação do individualismo narcísico, e dos movimentos modernistas, com o seu estilhaçamento egoico, ainda derivados daquele. É quase como se o poeta, reconhecendo a dívida pelo privilégio, assumisse a missão de defender os desfavorecidos, arrancando-os ao anonimato e conferindo-lhes uma individualidade que, mais não podendo, os dignifica. Aliás, o civil AO assumiu de facto esta missão, ao escolher a profissão — que era, de resto, a do seu pai — de advogado, termo que na sua origem latina significava, não se cansava de repetir, aquele que vem em auxílio de um acusado.
É, pois, com naturalidade que na sua poesia comparece tudo o que, pelo mero facto de existir, é digno de figurar na crónica do tempo, tudo o que está ameaçado, tudo o que é condenado ao silêncio, tudo o que está moribundo e é, assim, por obra e graça do discurso poético, como que embalsamado para memória futura, constituído acervo para antepor à vinda dos bárbaros, que com a sua efusão, o seu estrépito orgíaco, a sua cegueira punitiva, as suas soluções higiénicas, tudo ameaçam diluir num indistinto caldo sintético.
A morte virá certamente, e com ela o esquecimento. Mas como dizia AO na curta-metragem A Felicidade da Luz (2019), “é preciso compreender a morte para julgá-la bem”. Todo o labor de uma vida são subsídios para essa compreensão. Quando a morte vier e saldar a vida em destino, independentemente do avanço ou do recuo do nosso ponto de partida, não é irrelevante aquilo que lhe vamos entregar, porque, e creio que essa é a grande lição que podemos retirar da poesia de António Osório, esse será o nosso testemunho para os que ficam e para os vindouros, e, se houvesse Deus, “Fortuna […] dos que poderiam apresentar-se limpamente diante [Dele]”, dos “que não causam dano nem semeiam a culpa”, para só citar dois versos desse grande testamento que é “O Pão das Palavras”.
Cito, para terminar, o insigne verso do poema “Amor de Si”, de O Lugar do Amor (1981): “Oxalá eu possa tranquilizar os meus vermes.” Humilde intenção de quem não só diante de Deus, mas até dos mais desprezíveis dos seres se quer apresentar impoluto, para que ninguém lhe possa apontar o dedo e acusar de ingratidão, para que nenhum privilégio tenha ficado sem retribuição. Exemplar sem ser grandiloquente, incorruptível sem ser heroico, e sem pecado, além do pecado original de amar com a violência e a candura do amor.