É comum a pergunta sobre o proveito de se ler um autor cuja obra tem 700 anos. Como se o tempo presente, do ponto de vista estético, fosse um especial privilégio em relação a épocas passadas. Poderíamos responder genericamente que ama os grandes escritores de todos os séculos quem gosta de aprofundar a sua visão do mundo e vive com a necessidade de satisfazer as emoções da beleza desfrutando a imensa felicidade de ler. Direi, porém, duas breves razões por que continuam os miraculosos versos de Dante Alighieri a deleitar as inteligências sensíveis.
As inteligências sensíveis têm a virtude de perceber os altos valores artísticos que, como já escrevi, “conjugam a acuidade cognitiva e a densidade espiritual, a consistência intelectual e a sensibilidade refinada, a originalidade inventiva e o domínio e apuro técnico da linguagem” (1). Não se enganaram decerto os infatigáveis fiéis que, ao longo de séculos, vêm frequentando assiduamente a obra dantesca, lendo e relendo, comentando, memorizando, investigando, dedicando a Dante “o longo estudo e grande amor” que ele afirma ter devotado ao mestre Virgílio (Inferno, I, 3). Não se equivocaram tão-pouco os que no poeta da Comédia vêm tomando alimento e estímulo para as próprias criações, escritores sobretudo, mas também artistas visuais, teatrais, musicais e cinematográficos, pois uma obra, por mais original, nunca é um fenómeno isolado, mas uma rede complexa de relações intertextuais. A de Dante é hoje e sempre fonte de maravilha e iluminação.
A feição da Comédia que antes de tudo importa para a sua vitalidade é de natureza linguística, na medida em que um texto literário é comunicação verbal e o juízo de valor que fizermos sobre ele depende primordialmente das qualidades estético-literárias. A arte prodigiosa de Dante cria um discurso moderno (não a glosa a qualquer auctoritas ou a iteração de poéticas tradicionais da cultura medieva, mas a originalidade conceptual e de composição verbal da criatividade sem precedentes), numa língua inovadora e imponente (construída em vulgar florentino, acolhe na rica diversidade lexical vernáculos italianos, sicilianismos, provincialismos, galicismos, latinismos, arcaísmos, neologismos).
O título Comédia, evitando os constrangimentos da tragédia, é ele próprio justificado pelo desejo de ampla liberdade linguística e pluralidade estilística, o que se verifica não só na ascese literária da primeira para a terceira cantiga, como na variação no interior de cada uma (lemos no Inferno elevações trágicas e no Paraíso termos crus), exprimindo o técnico e o artístico, o prático e o espiritual, mimetizando a lírica cortês ou estetizando matéria científica, filosófica e teológica, fazendo uso do erudito e do popular, adequando coerentemente a palavra, a sonoridade e o ritmo do verso à conveniência dos temas, lugares, situações e personagens – históricas, monstruosas e mitológicas, religiosas, nobres e plebeias, nos modos particulares do agir e pensar, como na vida interior (2). Do amor e valorização da fala vernacular materna (considerada por Dante superior ao latim), bem podemos recolher hoje a inteligência das formas de explorar as infinitas possibilidades expressivas de uma língua.
O autor Dante Alighieri põe na voz do poeta Dante a narração da extraordinária viagem de elevação humana de que fora protagonista pelas três condições da eternidade cristã, Inferno, Purgatório e Paraíso. A memória escrita desta peregrinação de sete dias pretende ser um exemplum que, alicerçado na experiência pessoal vivida, testemunha ao ouvinte ou leitor a condição das almas no além, os tormentos infernais dos pecadores sem perdão, as expiações dos que podem esperar ainda redenção e o júbilo pleno dos beatos na cândida rosa paradisíaca. Dante avisa os mortais sobre a necessidade de ponderar o uso que fazem do livre-arbítrio durante a passagem efémera por este mundo, e como do seu bom ou mau uso dependerá depois o ser em toda a eternidade. Neste sentido, escrevi no prefácio referido, “o poeta assume-se como mensageiro divino e a escritura da Comédia, na verdade de que é portadora, toma o valor apostólico de um novo Apocalipse e de um novo Testamento” (3).
O poema está ao serviço de uma missão salvífica em prol da humanidade. No turbilhão da crise pessoal de exilado da Florença natal (migrando de cidade em cidade, sem casa própria) e das crises do Cristianismo e do Império (usurpado o trono de Pedro e vacante o do Imperador), Dante, assume a autoridade para denunciar a corrupção do poder religioso e a ausência do poder temporal, que deixava a sociedade à mercê de toda a perversão e das mais violentas discórdias. A sua dolorida e furiosa crítica a Florença e à “serva Itália”, a visualização dos vícios humanos condenáveis, são um juízo universal sobre a avidez de domínio e riquezas, a “cega cupidez” na origem da corrupção dos princípios sagrados e das prepotências, violências, depravações e injustiças. Na epístola a Cangrande della Scala, senhor de Verona, dedicatário do Paraíso, o poeta explicita o propósito da Comédia: “O fim do todo e da parte é remover os viventes desta vida de um estado de miséria e conduzi-los a um estado de felicidade” (XV, 39).
Ora, mesmo se o mundo dantesco é muito diferente do nosso, dos pontos de vista religioso e teológico, político e social, filosófico e moral, espiritual e passional, os valores de inspiração cristã que defende o autor da Comédia, de vida pacífica e harmónica em solidariedade com o próximo e orientada para o bem comum, não são exclusivos de uma confissão religiosa, de agnósticos ou ateus. Nada do que Dante combate se eliminou, infelizmente, na nossa era, e a felicidade, independentemente da beatitude ultraterrena, é uma responsabilidade do ser humano de boa vontade em todo o tempo e lugar desta vida. Também nisto Dante é não só nosso contemporâneo, mas, como disse Gianfranco Contini, chegou já ao futuro bem antes de nós.