“Ursotigre para sempre, make-up artist noutra vida. Reconheceu as primeiras sementes da Missão Dimix, fez tudo para florescerem. Associada. Dinamizadora de atividades no terreno, responsável pela comunicação e administração… sonha com equipa!”
É assim que Sónia Pessoa, 44 anos, fundadora da Missão Dimix, se apresenta no site desta Organização Não Governamental para o Desenvolvimento, sediada em São Tomé e Príncipe. Uma bio resumida que lembra as suas “vidas” anteriores, ainda em Portugal, do projeto de tricô à profissão de maquilhadora.
Nós quisemos saber com que linhas se cose uma associação sem fins lucrativos que tem por objeto a promoção e defesa dos direitos humanos, especialmente das crianças e jovens, e apoio ao desenvolvimento nas áreas da educação, ambiente, saúde e igualdade num país atravessado pela linha do Equador. Sónia explicou o seu sonho de resgatar “infâncias roubadas”.
Trabalhar com crianças em São Tomé é como receber um presente todos os dias?
É muito gratificante trabalhar com crianças, porque elas são curiosas por natureza. E, em São Tomé, ainda mais, porque as crianças aqui têm falta de atenção e de tempo de qualidade por parte dos adultos.
Há dez anos, a Sónia imaginava-se aí?
A verdade é que tudo começou com um acaso. Há dez anos, era maquilhadora de moda, fazia alguma publicidade, teatro e videoclipes, mas, apesar de ter bastante trabalho e de serem coisas interessantes, não me sentia muito realizada enquanto pessoa no mundo. Sentia que não fazia grande diferença. Gostava da parte criativa do meu trabalho, mas sentia-me um pouco inútil.
Vem das artes, não é?
Estudei Design de Interiores e fui sempre pelo caminho da arte. Claro que a maquilhagem tem essa parte, mas não é todos os dias e já trabalhava nisso há uns 12 anos. Vamos tendo várias vidas e eu, às tantas, não me identificava com o que fazia. Tinha consciência de que não estava satisfeita, mas também não sabia para onde me direcionar.
E que acaso foi esse que a levou até São Tomé e Príncipe?
Em 2015, vim de férias com o Bobby, o meu namorado, e gostámos imenso. Nunca tinha pensado cá vir e foi o meu sogro quem nos fez essa sugestão. Estivemos uma semana e pensei logo em regressar, mas não como turista. Nada contra os turistas, mas fiquei com vontade de fazer alguma coisa que fosse útil para o país. E o que mais me marcou foram as crianças, talvez porque ao longo da vida sempre pensei muito no tema da infância.
Cresceu no Alentejo, perto de Évora, mas no meio do campo. Como é que foi a sua infância?
Foi uma infância feliz, embora com alguma tristeza, porque perdi o meu pai aos seis anos. Mas sempre me deram muito carinho. Por mais que a minha origem seja humilde, sinto que fui acarinhada pela família e isso faz toda a diferença na vida de uma criança.
Estava a contar que chegou a São Tomé e…
O que me tocou mais foi as crianças, até porque fizemos logo amizade com o Dinix, um menino de 13 anos. Começámos a conversar com ele e depois todos os dias o encontrávamos, sem combinar, porque estávamos no ilhéu das Rolas, que é muito pequeno. Eu tinha curiosidade em saber como era a vida das crianças aqui, como era a escola… o Dinix é muito tímido, mas lá ia respondendo. A certa altura, já nos fazia companhia nos nossos passeios pela floresta e criámos uma amizade que dura até hoje.
E, um ano depois, a Sónia já estava de regresso.
Tinha saído de cá com a certeza de que queria voltar e ser útil, mas dada a minha profissão não sabia o que iria fazer. Então, estive um ano a pesquisar sobre o país e concluí que queria promover tempos livres com as crianças, porque percebi que as escolas, tal como em Portugal, são limitadas no que diz respeito a atividades extracurriculares. E eu acredito que os tempos livres nos levam a descobrir outras coisas de que gostamos de fazer.
Decidiu, então, avançar com atividades para as crianças descobrirem os seus talentos?
E para poderem ser crianças – crianças mesmo. E tive vários amigos a dizerem-me que para fazer isto devia criar uma associação, coisa que não me passara pela cabeça. Percebi logo que iria ter muitas burocracias pelo caminho, o que eu, sendo da área das artes, não aprecio. E a verdade é que elas têm-me sobrecarregado ao longo destes anos, roubam-me tempo às atividades. Se soubesse o que sei hoje… [Risos.]
Seguiu o caminho da arte?
Juntei a educação pela arte e a educação ambiental, porque, como em todo o planeta, temos de cuidar da natureza em São Tomé. A arte é um bom veículo para sensibilizar e desenvolver atividades com as crianças. Ela não é apenas um caminho para se ter uma profissão, também tem a capacidade de educar e de fazer com que uma pessoa se sinta melhor. Pensei, então, em desenvolver atividades que lhes permitissem ser crianças, porque há infâncias roubadas e elas trabalham muito.
E a educação não formal pela arte, pelo que percebi da vossa conta no Instagram, também tem sido uma boa maneira de chegar ao apoio ao estudo.
Exato. Através do desenho, por exemplo, conseguimos incutir o gosto pela leitura. Há que saber levar as crianças de forma a elas desenvolverem as suas capacidades sem ser com aquela rigidez da escola que muitas vezes faz com que digam: “Eu não gosto de ler.” Acredito mais no lado lúdico para captar a atenção das crianças e fomentar o amor pela natureza.
Daí as atividades de recolha de plástico?
Desde o início que fazemos arte com resíduos plásticos apanhados na praia. Quando eles aparecem na praia, o mar já passou, já os lavou. Com as crianças não gosto de andar a apanhar na rua, por causa da segurança e de eventuais contaminações. É sempre na praia.
Nalguma praia em especial?
Apanhamos em várias praias, em várias comunidades. Na cidade de São Tomé [a capital], mas também no distrito de Cantagalo e noutros distritos onde vamos fazendo grupos de atividades.
Usa o plural, porque envolve a comunidade ou a Dimix tem uma equipa própria?
Estive sozinha no terreno, com as crianças e os jovens, até 2022, porque acredito que as pessoas têm de ser pagas pelo seu trabalho e queria criar uma equipa local. Portanto, demorou um pouco a Missão ter possibilidades para isso. Fizemos várias campanhas e neste momento somos sete, a contar comigo, o que é bom porque sozinha estava a ser muito complicado.
Que arte fazem com plástico encontrado na praia?
Muitas coisas, mas a certa altura já tínhamos tanto plástico que me pus a pesquisar máquinas que o transformam em objetos. Encontrei-as e fiz várias campanhas para comprá-las, porque ainda tinham um valor avultado para nós, mas nenhuma deu certo. Acabei por conseguir fazer essa compra com o apoio da área social do Boom Festival, em 2019, e assim nasceu a oficina de transformação de plástico onde se criam piões, pentes, bases para copos, fruteiras… Com a venda desses objetos não ficamos só dependentes de doações e conseguimos juntar algum valor para o pagamento de salários à equipa. Vendemos no Hotel Omali e na associação, perto de uma comunidade que se chama Santana, onde temos as oficinas, as atividades com as crianças e a loja.
No vosso Instagram, também vi umas mochilas e umas bolsas muito coloridas, lindas.
Ah, sim, entretanto, criámos uma oficina de costura para também termos produtos alternativos ao uso do plástico. Trabalhamos com um costureiro, o Hélio, a quem damos emprego. Eu não coso nada. Só vou escolhendo os tecidos e ele tem as ideias e cose. E assim podemos oferecer atividades de costura a crianças e jovens interessados.
Nada que ver com as peças lindas da Ursotigre, a marca de tricô com gorros, camisolas e cachecóis inspirados em animais que a Sónia tinha em Portugal?
A Ursotigre acabou por ficar um pouco adormecida por causa da associação, porque é tudo artesanal e falta-me tempo, mas quem sabe um dia consigo voltar a ela. Como as crianças são curiosas, já fiz oficinas para aprenderem tricô, mas aqui, em vez de criarmos peças para agasalho, usámos plástico para criar objetos úteis, como capas para bancos.
Já pensou em replicar a Missão Dimix noutras zonas do país?
Gostava muito de conseguir chegar a todos os distritos de São Tomé, mas a falta de recursos ainda não tornou isso possível. Há muitas associações aqui, portuguesas e estrangeiras, mas dedicadas só às atividades com crianças não são assim tantas e justificam-se porque elas representam mais de metade da população. Todas as crianças deveriam ter direito aos seus tempos livres e a ter o seu tempo para ser criança.
Sente que elas aí não têm tempo para ser crianças?
Diariamente, estão connosco cerca de 60 crianças e jovens, mas claro que há uns que vêm nuns dias, outros que vêm noutros dias, porque trabalham muito em casa. Essencialmente, fazem tarefas de casa e tomam conta dos irmãos mais novos. Nós temos atividades para crianças a partir dos 6 anos e às vezes elas não aparecem porque têm de ficar em casa, cuidar dos seus irmãos bebés. Eu sempre ajudei a minha mãe, mas tinha tempo para brincar e para estudar. E ajudei a tomar conta da minha irmã, mas não a criei, não tive essa responsabilidade. Aqui, as crianças estão um pouco sobrecarregadas e vai demorar muitos anos até que as pessoas deem mais importância à infância e percebam o seu papel no desenvolvimento humano.
Onde é que a Sónia se imagina daqui a dez anos?
Gostava de estar cá, mas não sei o dia de amanhã. São Tomé é um sítio onde me sinto bem, mas tem algumas limitações, nomeadamente do ponto de vista da saúde. Portanto, tenho esperança de estar cá daqui a dez anos e sonho poder chegar a todos os distritos, para todas as crianças de São Tomé terem as mesmas oportunidades. Não me vejo a levar a Missão para outro país, a opção é concentrar energias neste território.
E o que é feito do Dinix, o menino que conheceram na vossa primeira viagem?
Quando voltámos, um ano depois, fomos logo procurá-lo. Queríamos saber se estava bem e a família contou-nos que ele não ia à escola e pediu-nos ajuda para convencê-lo a voltar. E conseguimos isso. O Dinix tinha ficado na 3.ª classe e agora, aos 22 anos, está no 12.º ano, na área de Humanidades. Fui a sua encarregada de educação durante alguns anos, nos últimos dois a família pediu para tê-lo mais perto e então ele mora no Sul. Mas estamos sempre em contacto e fico feliz que continue determinado em estudar.
Ele vai prosseguir os estudos?
Ainda não sabe, mas tem feito todos os anos, passo a passo, com dedicação, e estou a torcer pelo futuro dele, seja lá o que escolher. O Dinix é sensível à causa da infância, porque já viu crianças a passarem muito mal. Apesar da sua timidez, numa entrevista a uma rádio surpreendeu-me porque disse as coisas como elas são, enquanto eu estive um bocadinho com paninhos quentes, como estrangeira que sou. Era um momento-chave e o Dinix mostrou como tem um bom coração. E as coisas ditas por ele é muito diferente do que ditas por mim.
Porque a Sónia continua a ser uma estrangeira em São Tomé?
Sinto-me em casa e tenho bons amigos santomenses, porque cá é fácil fazer amizade, mas sou estrangeira em muitas coisas. Às vezes, há uma diferença cultural, tal como em Portugal não conseguimos fazer amizade com toda a gente porque não nos identificamos ou não temos os mesmos valores. Essencialmente, tenho a noção de que sou estrangeira quando há questões burocráticas, mas há amigos que são família.
Um deles é o João Carlos Silva, da Roça São João dos Angolares? A certa altura, a Missão Dimix fazia lá umas exposições, não era?
E não só exposições. Estou-lhe muito grata porque nos cedeu espaço para fazermos as nossas atividades, mas chegou uma altura em que precisávamos dos nossos próprios espaços e de seguir outro caminho.
Porque escolheu chamar “Missão Dimix” à associação? Vê-a como uma missão?
Vejo-a como uma missão, um propósito, de chegar à infância. Quase como um caminho e não tem nada que ver com religião. O caminho seria uma missão de apoiar crianças como o Dinix. O nome foi em homenagem à nossa amizade com ele.
E porquê Dimix e não Dinix?
É a minha péssima memória [risos]. O Bobby achava que ele era Dinix, mas disse-me: “Bom, mas tu deves saber melhor.” Então, registámos a associação e só quando fomos à procura dele é que percebi que tinha cometido um erro. Mas, mais importante do que o nome, foi a intenção e a aposta no desenvolvimento.
Desenvolver é a palavra?
Precisamos de desenvolver a empatia em toda a parte, mas em muitas regiões do mundo parece que não estamos a evoluir nesse sentido. Há demasiada gente a sentir-se superior, porque falta sensibilidade para olhar para as outras pessoas. Também falta sensibilidade para dar importância à educação. Nelson Mandela dizia que ela é a arma mais poderosa do mundo, mas não vejo isso no mundo. E o planeta precisa de ter consciência dos direitos humanos. Estamos a abusar da Natureza, mas já sabemos que ela se recompõe. Nós é que poderemos não nos recompor, porque faltam condições para todas as pessoas poderem crescer e desenvolver-se em harmonia, sem guerras, com saúde, com educação. Fico um pouco desiludida com o estado do mundo.