Quando o mundo ainda não tinha despertado para os chips já Chris Miller, de 36 anos, imergia nas profundezas de uma indústria que hoje está por todo o lado. Desde os eletrodomésticos em casa aos carros, telefones, centros de dados, mas também nas prolíficas empresas de armamento, tudo precisa de chips. O autor d’A Guerra dos Chips – O Combate pela Tecnologia mais Crucial do Mundo (D. Quixote), professor na Fletcher School da Universidade Tufts, em Massachusetts, EUA, explica como apenas cinco países dominam o desenho e o fabrico destes pequenos semicondutores de silício, que têm gravados milhões de transístores (interruptores minúsculos, que se ligam e desligam, para processar os zeros e os uns da linguagem de computação). Só a título exemplificativo: um smartphone da Apple precisa de cerca de uma dúzia de chips – cada semicondutor A14 (o processador principal) tem 11,8 mil milhões de transístores gravados no seu silício. Em poucos meses, a empresa taiwanesa, que os produz, fabrica mais de um quintilião de transístores, ou seja um número com 18 zeros.
Além disso, a corrida aos chips levou os EUA a impor várias restrições à exportação de chips para a China, pedindo o mesmo a outras nações, que fazem parte da rede de fornecedores. Nenhum país do mundo consegue, sozinho, fabricar chips, mas a China quer tomar a dianteira.
Existem biliões de circuitos num chip. São os dispositivos mais pequenos alguma vez fabricados?
São certamente os dispositivos mais pequenos que os humanos produziram em massa. Se olharmos para os chips de um smartphone comum, por exemplo, só o chip principal tem entre dez e 20 mil milhões de transístores gravados, e cada um deles é aproximadamente do tamanho de um coronavírus. Por isso, sim, não existe nada tão pequeno a ser produzido de forma tão rápida.
Em que tipo de objetos encontramos os chips?
Eles estão em todo o lado. São fundamentais para telefones, computadores, centros de dados e infraestruturas de telecomunicações, bem como para todos os dispositivos que venhamos a ter em casa. Estão em todos os objetos que tenham um botão de ligar e desligar, e estes podem ter apenas um chip ou dezenas ou centenas deles. Um carro, por exemplo, tem, em média, cerca de mil chips. A máquina de lavar a loiça tem chips, o frigorífico ou a máquina de café, também. É difícil encontrar qualquer coisa que não implique o uso de pelo menos um chip.
Qual a cadeia de fornecedores para o fabrico de um chip e quais os maiores players desta rede?
É uma rede bastante complexa, talvez a mais complexa que existe no fabrico de um produto. São precisos produtos químicos ultrapurificados, máquinas especializadas e software com capacidades únicas.
Esta produção envolve o desenho, o software e materiais do Japão, dos EUA, dos Países Baixos, Coreia do Sul e Taiwan. Cerca de 90% dos chips mais avançados são fabricados em Taiwan, com recurso a máquinas e a software dos países que mencionei. Temos de pensar nesta cadeia de produção como um todo e não apenas no processo de fabrico.
Não existe um país que, sozinho, consiga fabricar chips de ponta?
Não.
A maioria dos chips tem um uso civil, como os smartphones e computadores, mas os militares também precisam deles. Continuará a haver um controlo no acesso às principais tecnologias, no futuro?
Penso que a principal tendência de hoje, tanto no uso civil como no militar, é a aplicação da Inteligência Artificial a uma ampla gama de sensores de comunicação. Vemos isso nas manchetes dos jornais em relação à venda de aplicações para o ChatGPT. Os militares também estão a investir nos sistemas de Inteligência Artificial, e isso requer um conjunto completamente diferente de semicondutores, para juntar dados de comunicação e fazer com que os chips comuniquem de um aparelho para o outro. Embora 98% dos chips produzidos sejam de uso civil, os militares estão concentrados em garantir que têm acesso aos chips de que precisam, porque estes serão importantes e cruciais para a defesa e a inteligência.
Começou a trabalhar neste livro em 2015-2016. No entanto, foi em 2020, durante a pandemia, que passámos a ouvir falar mais de chips. O entendimento geral era que havia uma crise no abastecimento de chips. A sua opinião é diferente, e argumentou que a cadeia de fornecedores até funcionou muito bem, dadas as circunstâncias. O que aconteceu, então?
Penso que a maioria das pessoas não percebeu que, durante a pandemia, apesar de haver alguma escassez no mercado global, foram fabricados mais chips. Em 2020, mais do que em 2019, e em 2021 mais do que em 2020. O problema foi que a procura cresceu de uma forma que não era previsível, e as empresas, que durante as últimas décadas se tornaram dependentes de chips, como é o caso dos fabricantes de automóveis, não estavam preparadas para essa maior procura e foram incapazes de resolver o problema de produção. Um carro novo precisa de cerca de mil chips para ser fabricado.
A procura aumentou muito devido ao teletrabalho. Houve mais necessidade de computadores, e as empresas tiveram de aumentar os seus centros de dados.
Em termos geopolíticos, de que forma a corrida aos chips é importante?
Neste momento, a cadeia de produção é dominada por cinco países: EUA, Japão, Taiwan, Coreia do Sul e Países Baixos. Porém, o maior comprador mundial de chips é a China, que gasta tanto dinheiro a importar semicondutores como em petróleo. Desde 2014 que o governo chinês injeta milhões e milhões de dólares para se tornar independente nesta indústria. Isto teve dois efeitos: em primeiro lugar, levou a uma grande distorção no mercado; em segundo, países como os EUA e o Japão ficaram preocupados com o facto de as empresas chinesas virem a desenvolver recursos não só importantes para os telefones e computadores como também para fins militares.
A combinação destes dois fatores levou os países-chave no fabrico de chips a impor medidas de restrição à China, com o objetivo de afastá-la da vanguarda da tecnologia.
O que a China pode, ou não, fazer no futuro?
Nenhum dos componentes químicos necessários a um chip é produzido na China, assim como as ferramentas de software. Isto torna particularmente difícil qualquer grande avanço, porque esta indústria progride a um ritmo mais rápido do que qualquer outra, e talvez seja a maior aceleração de sempre na História da Humanidade. Basta ver que o número de transístores num chip duplica a cada dois anos, o que quer dizer que este é o tipo de tecnologia mais difícil de todas as que existiram.
A Inteligência Artificial é a última corrida aos chips?
Na última década, todos os acontecimentos relacionados com a inteligência social surgiram, numa pequena parte, graças aos avanços na forma como os sistemas da Inteligência Artificial são construídos, mas, numa parte muito maior, devido aos avanços no poder de computação, que nos levaram a treinar estes sistemas com quantidades maiores de dados. Tem havido uma significativa investigação, levada a cabo por vários grupos, para analisar a quantidade de dados usados no treino de sistemas de Inteligência Artificial, e a conclusão é de que a quantidade de dados tem duplicado a cada seis ou nove meses, ao longo da última década, o que é algo extraordinário.
Quais as empresas que produzem chips para a Inteligência Artificial?
Há apenas duas empresas que estão no centro desta indústria. A NVidia, sediada na Califórnia, desenha cerca de 90% dos chips com tecnologia de ponta para a Inteligência Artificial, enquanto à TSMC – Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, em Taiwan, cabe fabricá-los.
Que papel têm desempenhado os chips, nomeadamente nos drones, na guerra da Ucrânia?
Se olharmos para as aplicações de defesa, o que sabemos, hoje, é que é difícil encontrar uma peça de equipamento militar que não tenha alguns, muitas vezes dezenas ou centenas, semicondutores no seu interior. Nesta guerra, verifica-se que ambos os lados dedicaram grande parte da sua atenção ao desenvolvimento de canais de comunicação, que se têm mostrado relativamente seguros de serem destruídos pelos adversários. A Ucrânia depende muito das comunicações providenciadas pelo satélite Starlink [da empresa SpaceX]. Os russos têm tentado bloquear os sinais de comunicação dos ucranianos. Portanto, há uma competição pelo controlo do espectro eletromagnético, através do qual todas as comunicações se concretizam. Temos visto que os drones são controlados pela mão humana, mas há uma crescente quantidade de automação nestes aparelhos. Ora isso sugere que, no futuro, grande parte do equipamento será autónomo, e, para isso acontecer, são necessários chips bastante avançados.
Em janeiro, o Presidente dos EUA, Joe Biden, esteve nos Países Baixos e pediu ao governo neerlandês que fizesse restrições à exportação de chips da empresa ASML para a China. Neste fim de semana, Biden recebeu o homólogo da Coreia do Sul e o primeiro-ministro do Japão. Os chips terão estado, outra vez, na mesa das negociações?
Certamente. A Coreia do Sul, o Japão e os EUA estão alinhados em termos de trajetória da regulamentação para a tecnologia e têm dado passos no sentido de apertar as regras de transferência de conhecimento tecnológico. Fala-se pouco deste aspeto nos media anglo-saxónicos, mas a Coreia do Sul desenvolveu um centro de dados capaz de rastrear as viagens internacionais que qualquer pessoa da sua indústria faça, o que é notável. O desenvolvimento tecnológico vai para lá das medidas tomadas pelos EUA ou pelos países europeus, já que, para a Coreia do Sul, Taiwan e Japão, esta indústria é de fundamental importância.
Todos estes países veem-se cada vez mais envolvidos numa corrida ao armamento com a China: a indústria de defesa da Coreia do Sul aumentou muito nos últimos dois anos, e recentemente o Japão duplicou o seu orçamento militar.
Competem não só em termos militares, para terem o maior número de aviões ou de navios, mas também em novos recursos de computação, que podem ser implementados.
A Índia já entrou na equipa dos protagonistas da “guerra dos chips”? Até que ponto é um dos beligerantes?
Bem, esse tema é interessante. Neste momento, a Índia ainda é um participante muito pequeno na indústria eletrónica de grande escala. O governo indiano e os empresários estão a esforçar-se para mudar isso, através da injeção de muito capital. No entanto, esta é uma atividade em que é muito difícil adquirir competências especializadas e, como tal, serão precisos muitos anos até que a Índia consiga replicar o que se faz na Ásia.
A Rússia tem estado a mapear as zonas onde existem cabos submarinos. Os Açores são um desses locais. Portugal está em perigo?
Nas últimas três décadas, nenhum país pensou cuidadosamente nas possíveis implicações de segurança destes cabos, mas isso está a mudar. Se falar com alguém da defesa militar de uma das principais potências mundiais, eles dir-lhe-ão que, caso haja uma crise, estão cientes dos riscos que correm no que toca às suas comunicações, mas que também sabem que as comunicações fornecem recursos defensivos.