Joana Brandão, 45 anos, foi escolhida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), com sede em Genebra, Suíça, para liderar a estratégia de comunicação e de angariação de fundos em Portugal. Depois de 17 anos de experiência acumulada, em funções idênticas, nas ONG Aldeias de Crianças SOS e Amnistia Internacional, estreou-se em 2021 no novo cargo, enquadrado na estratégia global do ACNUR para dar a conhecer as missões da organização no mundo. Avançou com o registo legal, formou equipa e, em novembro, a Portugal com ACNUR – uma réplica de organizações já estabelecidas em 11 países – passou a contar com o estatuto de utilidade pública, fundamental para conceder benefícios fiscais aos doadores da causa. Natural de Santarém e formada em Psicologia, Joana diz ter-se “ligado ao mundo” em voluntariados em Cabo Verde e na Argentina. Um mundo que, na última década, duplicou o número de refugiados. É disso que falamos, agora que se completa um ano da guerra na Ucrânia, responsável por oito milhões desses refugiados, além de mais 5,3 milhões de deslocados internos.
Na Ucrânia, os refugiados representam 30% dos habitantes, antes de 24 de fevereiro de 2022, sendo que muitos já conseguiram regressar. Qual é o ponto de situação ao fim de um ano de conflito?
É chocante. Falamos de um país que tinha 43 milhões de habitantes e neste momento tem 35 milhões. Metade destes, 17,6 milhões, precisa de ajuda urgente, incluindo cerca de 4,4 milhões de pessoas que entretanto regressaram. Uma das grandes preocupações do ACNUR, neste momento, é o frio. Estas pessoas enfrentam não só a subida dos preços, mas também muitos cortes de eletricidade. Durante o dia, podem ter temperaturas de menos 20 graus e, quando há falhas de energia, numa hora a casa fica completamente congelada. Há relatos de crianças com as pernas a gelar e que não conseguem dormir. São situações gravíssimas. Há pessoas que ficaram sem janelas, outras vivem em abrigos frágeis e temporários.
Qual tem sido a ação do ACNUR no terreno?
O ACNUR está na Ucrânia desde 1994. Porque os conflitos não surgiram agora, embora não tivessem esta dimensão. Há mais de 100 funcionários no país. No escritório de Kiev, também existe uma cave, um abrigo onde se trabalha quando soam os alarmes de ataques aéreos. O ACNUR atua não só a nível de emergência, ou seja, a salvar vidas e a dar bens essenciais às pessoas no momento em que as emergências surgem, como está a acontecer, também, na Turquia e na Síria, na sequência do terramoto. O ACNUR consegue montar uma resposta em 72 horas e apoiar cerca de 600 mil pessoas. Assim o fez na atual operação na Ucrânia e nos países vizinhos, juntamente com outros parceiros. Até hoje, o ACNUR já ajudou 4,3 milhões de pessoas.
A missão na Ucrânia está mais vocacionada para a ajuda cirúrgica, do bem de primeira necessidade,ou prolongada no tempo?
Falamos de ajuda monetária, por exemplo, que é algo que muitas vezes se esquece e que é essencial. As pessoas ficaram sem nada e precisam de dinheiro para ir a um supermercado, para pagarem despesas básicas, para conseguirem refazer a vida. Falamos sobretudo de abrigo, numa primeira instância, de cobertores, colchões, roupa de inverno, comida, cuidados de saúde, apoio legal e psicossocial. Mas também se trabalha muito em soluções duradouras. O plano para este ano já está definido e a ser preparado com o governo, assim como há programas de acompanhamento aos refugiados que fugiram para outros países. Existe um esforço de articulação muito grande com os governos para sensibilizar os atores locais e nacionais para acolher pessoas e proporcionar-lhes oportunidades de integração a nível social e económico. Se ainda há respostas de emergência, é porque infelizmente todos os dias há bombardeamentos e novas zonas a serem bombardeadas.
O que envolve de novo o plano para 2023?
Uma das ações planeadas, em parceria com o governo da Ucrânia, chama-se Home. O objetivo é criar soluções de habitação para quem regressou e para quem ficou com a casa danificada.
Que bens materiais fazem mais falta neste momento?
Mais do que bens, precisamos de dinheiro. É preciso assumir isto. É importantíssimo para o ACNUR ter apoio financeiro. No ano passado, atingimos um número recorde de pessoas forçadas a fugir. Falamos de uma em cada 77 pessoas. O ACNUR precisa de parceiros para conseguir responder a tantas pessoas. Portanto, é essencial que possam confiar no ACNUR para dar essa resposta no local. Na Ucrânia, é agora necessário colocar janelas, reparar telhados, disponibilizar geradores em cidades onde as pessoas passam frio. Num primeiro momento, instância, falamos sempre em itens básicos de socorro, como água, cobertores ou roupa quente, mas a felicidade que uma janela traz a uma família, quando a temperatura marca menos 20 graus, é total.
Perante a maior vaga de refugiados desde a II Guerra Mundial, uma só organização não consegue acudir a todos. Como se escolhe a quem ajudar?
Um dos critérios é a vulnerabilidade das pessoas. Na perspetiva do ACNUR, é atuar junto das pessoas deslocadas e refugiadas, mas num momento de guerra tem muito que ver com a resposta que é montada de imediato com as autoridades, quando é possível, e com as ONG e outros parceiros. É uma ajuda não discriminatória, na tentativa de ajudar o maior número de pessoas.
A Europa respondeu bem às necessidades humanitárias?
Por um lado, sim. É importante ver que os países se mobilizaram rapidamente e que as pessoas também quiseram ajudar. Do nosso lado, a generosidade das pessoas e das empresas foi incrível. Se era possível ter sido feito mais, quer na Ucrânia quer noutras emergências, às vezes mais invisíveis, é sempre. Porque existe algum ódio e xenofobia que bloqueiam um pouco estes processos de integração. Mas, para esta emergência, houve uma abertura muito grande na Europa.
A ativação da diretiva europeia da proteção temporária atenuou as consequências para estes refugiados?
Simplifica a integração das pessoas, acelera os processos. Falamos sobretudo de mulheres e crianças. 80% das pessoas forçadas a fugir no mundo são mulheres e crianças. A prioridade é voltarem para casa, mas entretanto precisam de um sítio onde viver, de voltar a colocar os filhos na escola, de encontrar um emprego.
Como avalia a resposta de Portugal?
Portugal acompanha as necessidades identificadas pelo ACNUR para a integração dos refugiados. Recebeu mais de 50 mil pessoas da Ucrânia, conhecemos várias que colocaram as crianças na escola e conseguiram restabelecer a sua vida profissional. Sabemos que pode ser sempre melhor, mas neste caso houve uma abertura positiva.
Mais do que bens, precisamos de dinheiro na Ucrânia. A felicidade que uma janela traz a uma família, quando a temperatura marca menos 20 graus, é total
Antes da guerra, Portugal tinha acolhido apenas 0,1% do total de 2,7 milhões de refugiados na Europa. É pouco?
Na minha perspetiva, é pouco, e por isso é que é preciso sensibilizar e pedir às pessoas que se coloquem no lugar do outro. Por isso é que é preciso ensinar a uma criança o que é um refugiado e o direito humano ao asilo. É este o caminho para um dia conseguirmos ter políticas mais inclusivas, e é nesse sentido que trabalhamos.
O que está a querer dizer é que, se a sociedade assim o exigir, as decisões políticas irão nessa direção?
Completamente. As autoridades representam a sociedade. Hoje temos redes sociais que alimentam os discursos de ódio e não ajudam à inclusão das pessoas. A xenofobia é uma ameaça, mas acredito que, ao fornecermos informação credível, adequada às várias faixas etárias, podemos construir um olhar mais empático e levar a uma reflexão de que isto também nos pode acontecer a nós. Estamos todos em pé de igualdade nesta matéria.
Nos últimos 10 anos, o número de deslocados e refugiados duplicou, de 51 milhões para 103 milhões, no fim do primeiro semestre de 2022…
… E depois de junho, só nas tempestades do Paquistão deslocaram-se mais oito milhões de pessoas. Portanto, quando saírem os dados de dezembro, serão muitos mais.
O mundo está a ficar um lugar pior?
Não quero acreditar nisso. Com as lições que aprendemos no passado, já devia ser um lugar melhor. Mas sem dúvida que para estas pessoas é um lugar pior. E não podemos esquecer a questão climática.
Até ao fim do século XXI, as estimativas apontam para mais 250 a 400 milhões de deslocados, só por causa da subida do nível do mar.
Sim, e podemos acrescentar outras consequências das alterações climáticas, como incêndios, tempestades, falta de água. Em 2021, fugiram 21 milhões de pessoas só por causa do clima. Na Somália e no Quénia, onde o ACNUR tem acampamentos, há populações que deixaram de ter água para regar ou para os animais. São pessoas que têm de pegar nos filhos e fugir, muitas vezes a pé, porque não há condições básicas para viver. Não é por haver um conflito, nem por serem perseguidas, nem por qualquer ameaça política; é porque o clima não permite a sobrevivência. E isto é assustador.
Sempre houve movimentos de pessoas em busca de terra fértil, mas hoje é quase consensual que o nosso modo de vida está a contribuir para o aumento da temperatura do planeta e a agravar as condições de vida em certas regiões.
Na última cimeira do clima, o alto-comissário do ACNUR, Filippo Grandi, chamou a atenção para o facto de que as pessoas que menos contribuem para a crise climática serem as mais afetadas. Falta uma visão política global para os próximos 50 ou 100 anos.
África continua a ser um continente esquecido?
Os programas do ACNUR em África, de uma maneira geral, estão subfinanciados. Os campos de refugiados estão lá, tanto que, em média, uma pessoa vive neles durante 17 anos. A habitação, a água, a educação, a vida de milhões de pessoas depende do ACNUR, e é preciso centrar o foco nesses países mais esquecidos. Estão longe e têm menos impacto, mas são pessoas como nós.
Qual a sua opinião sobre a forma como a Europa lida com os refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo?
É importante abrir as fronteiras, para as pessoas entrarem. Cada vez há menos fronteiras, estamos todos a viver em todo o lado, seja porque somos migrantes, seja porque fugimos. Os refugiados não escolhem fugir. Querem trabalhar, querem um futuro e têm o mesmo valor que nós. Não podemos querer viver em condomínios fechados.
Há lugar para toda a gente que queira vir para a Europa?
Idealmente, deve haver oportunidades por todo o mundo. Deve haver conforto e estabilidade económica e social em todos os continentes. Não têm de ser condições iguais às da Europa, mas podem ser ótimas.
Venezuela e Palestina são duas zonas com crises de refugiados antigas. Que comentário lhe merecem?
A única coisa que queria dizer é que, tal como existe a emergência da Ucrânia, existem essas emergências, e não são menos importantes. Se o nosso papel também é o de mobilizar donativos, as pessoas não se devem esquecer que também podem fazer a diferença na Venezuela e na Palestina.
Para onde vai o dinheiro dos donativos em Portugal?
Todos os donativos que seguem para o ACNUR em Genebra são alocados à missão definida pelos doadores, por exemplo, para a emergência da Ucrânia ou para o terramoto da Turquia e da Síria.
Qual o papel do Portugal com ACNUR?
Somos um parceiro intermédio, digamos assim, porque doando em Portugal as pessoas recebem informação em português e podem deduzir fiscalmente nos seus impostos. Somos a agência das Nações Unidas para os refugiados, e quem puder deve ajudar de forma regular ou pontual.