Aos 35 anos, Sandra Tavares, investigadora do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, está a dar passos decisivos na investigação do cancro da mama triplo-negativo, um cancro raro, mas agressivo, que atinge sobretudo mulheres jovens. A investigadora foi recentemente distinguida com uma Medalha de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência, que atribuiu um prémio total de 60 mil euros a quatro vencedoras, selecionadas entre mais de 72 candidatas por um júri científico, presidido por Alexandre Quintanilha.
No projeto em questão, Sandra Tavares propõe-se identificar as proteínas que levam à formação acelerada de metástases (tumores secundários) neste tipo de cancro, que afeta 13 em cada 100 mil mulheres por ano, em todo o mundo, e representa cerca de 15% da incidência de cancros de mama invasivos. Em entrevista à VISÃO, a cientista revelou o impacto que tal investigação poderá vir a ter no tratamento desta manifestação rara, mas muito agressiva e de rápida metastização, da doença e refletiu sobre a importância em financiar a investigação científica num País que é muito mais eficaz em formar talento do que em conseguir retê-lo em território nacional.
Apesar de a estatística ditar que se trata de uma manifestação rara da doença, o cancro da mama triplo-negativo preocupa a comunidade científica. Porquê?
O triplo-negativo é um diagnóstico por exclusão. Existem três proteínas, três marcadores, que são usadas pelos médicos para definir a terapia a ser utilizada nos pacientes. O que acontece, em 70% dos cancros da mama, é que o recetor de estrogénio, que é um destes três marcadores, está presente. Então, é possível aplicar no paciente uma terapia direcionada às células que têm aquela proteína. O problema do triplo-negativo é que não tem nenhuma das três proteínas, obrigando-nos a usar uma quimioterapia muito agressiva, numa lógica all in, como no póquer.
Além disso, todos os cancros que vão parar a este saco evoluem de forma muito negativa para o paciente. Aparecem cedo, em idades mais jovens do que os outros, crescem mais rapidamente, têm uma maior capacidade de se espalhar pelo corpo e, como se isto não bastasse, para este tipo de cancros não existe uma terapia direcionada e não se sabe se a químio vai funcionar ou não. Muitas vezes, em cinco a dez anos, estas mulheres voltam a ter cancro da mama. E se o primeiro não é bom, o segundo não vai ser melhor. Daí ser tão importante estudar este tipo de cancro, porque, para estas mulheres, logo a partir do primeiro diagnóstico, não há boas notícias.
E o que se propõe exatamente fazer com esta investigação?
Quero perceber o que corre mal na biologia de uma célula saudável para que, de repente, ela se transforme neste pequeno monstro, e jogar com isso a nosso favor. Para isso, tenho de saber mais sobre outras proteínas que estejam associadas a esta resposta diferenciada, a fim de conseguir, por exemplo, ir a bibliotecas de drogas que já estejam aprovadas pela FDA [Agência Americana do Medicamento] e perceber se posso usá-las no tratamento do cancro da mama.
Portanto, o primeiro passo é perceber o que faz com que estas células se comportem desta forma?
Sim. Já percebemos que o processo de reciclagem proteica está envolvido neste comportamento superagressivo. As células, sejam saudáveis ou tumorais, em vez de estarem continuamente a produzir proteínas, retiram-nas de um local onde já não servem para as colocarem noutro onde são mais precisas. No caso das células tumorais, elas estão superativas, porque têm de andar de um lado para o outro para a formação das metástases, e estão muito dependentes desta reciclagem proteica.
O que queremos perceber é se há diferenças na maquinaria utilizada para regular este processo em células saudáveis e em células que não o são. Para isso, estamos a usar pedaços de tumores que foram recolhidos aquando da biopsia, nos quais existem células doentes e saudáveis, e cultivamo-los, em 3D, em laboratório, conseguindo recriar um ambiente mais semelhante ao que realmente se passa dentro do nosso corpo.
De que forma vai isso repercutir-se no tratamento das pacientes e na esperança de vida das mesmas?
O cancro da mama triplo-negativo não é um diagnóstico concreto com uma terapia especifica. Dá-se uma quimioterapia fortíssima, porque não se sabe o que se está a tratar, entra-se com tudo, tenta-se limpar o máximo e reza-se para que funcione. Mas temos pessoas que ficam muito debilitadas e que nunca recuperam, há mulheres que morrem de enfarte por causa de químios que receberam (morrem da cura e não da doença) e isto não pode acontecer. Esta investigação abre a possibilidade de encontrar uma alternativa de tratamento que tenha menos efeitos secundários e que seja altamente eficaz. Ou seja, ao contrário do que acontece na quimioterapia, o tratamento que poderá surgir deixará de atacar maquinaria que está presente também em células saudáveis.
Este tipo de cancro é raro, mas acaba por matar a maioria das doentes. Sente que ainda existem poucos apoios à investigação de tratamentos para cancros que causam mais mortalidade entre as mulheres?
Não. O que sinto é que existe um interesse maior nas doenças mais mortíferas. É uma coisa que acontece quase por modas, ou seja, quando se começa a controlar um tipo de cancro e conseguimos que este mate menos gente, o financiamento passa a ser alocado a outros cancros que matam mais. No caso específico da investigação do cancro da mama triplo-negativo, não penso que haja um desinvestimento, antes pelo contrário. O problema é que são muitos subtipos de cancro que são metidos no mesmo saco e, quando se faz investigação, as descobertas, apesar de muito úteis e relevantes para o subtipo estudado, podem não traduzir-se como algo útil e relevante para os restantes.
E quanto à obtenção de financiamento para conseguir investigar? Alguma vez se sentiu discriminada por ser mulher?
Em Portugal, não. Já na Holanda, onde estive cinco anos a investigar, há uma maior tradição científica e os velhos hábitos estão mais enraizados, sim. Os painéis de avaliação são maioritariamente constituídos por homens que consideram o entusiasmo de um homem carisma e o de uma mulher imaturidade. E isto eu ouvi e li em relatórios, mesmo tendo uma vasta lista de trabalho publicado e apresentado, tal como os meus colegas homens.
Em Portugal é ainda difícil, de uma forma geral, encontrar financiamento para a investigação científica?
É, é muito difícil. Desde 2019 que o orçamento para projetos de investigação não se altera. É absolutamente ridículo, não há um contínuo. Em Portugal, as pessoas são muito bem formadas, mas são bem formadas para sair, porque cá há uma enorme dificuldade em fazer ciência básica de qualidade e competitiva. Quem volta para Portugal, como eu, não o faz pela Ciência, mas pela família e pelas saudades.
Andamos a formar muito talento e a conseguir reter pouco dele em território nacional?
Andamos todos a navegar à vista. Não existe uma estratégia clara relativamente a onde queremos ir na Ciência. Pessoalmente, é algo que me frustra muito. Para que é que fazemos um grande investimento na formação de qualidade? É para irem lá para fora fazer um brilharete e termos notícias a dizer que temos investigadores nacionais no estrangeiro? Era muito mais importante se tivéssemos trabalho de investigadores a trabalhar cá dentro que brilhasse em notícias lá fora.
A Covid-19 complicou ainda mais o problema?
A Covid-19 bloqueou tudo. Além disso, quando as coisas voltaram a arrancar, houve uma crise de plásticos e todo o material que existia, e que nós precisávamos, foi direcionado para os testes da Covid. Ou seja, além do bloqueio inicial comum a todos, ainda tivemos de estar parados mais tempo, porque não havia material, o pouco que havia era muito mais caro, não houve uma atualização dos projetos e continuamos a receber o mesmo dinheiro do Estado quando as coisas já não custam o mesmo que em 2019, altura em que o dinheiro que chegava já era curto.
Havia esperança que a atenção que a sociedade deu à Ciência, durante a pandemia, se refletisse num aumento destes financiamentos?
Sim, falei disso com muitos colegas. Com a pandemia tivemos a sensação de sermos vistos pela primeira vez e alimentámos a esperança de que tal reconhecimento se traduzisse num aumento do investimento.
Mas isso não aconteceu…
Não… Foi muito frustrante ver que a atenção dada pelas pessoas aos cientistas não se traduziu em apoio real, em financiamentos. Já se sabe que, em termos de estratégia do Estado, a Cultura e a Ciência estão lado a lado e são vistas sempre como luxos. No Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ouve-se falar de Economia e Infraestruturas, mas Ciência como investimento quase não se ouve falar. Ainda existiram programas doutorais focados em Covid, mas não somos só Covid, não é?
Que consequências terá o bloqueio na investigação, e mesmo ao nível de rastreios, que ocorreu durante a pandemia?
A interrupção que houve nos rastreios contínuos, durante dois anos, vai fazer com que os pacientes cheguem ao médico em estados muito mais avançados e sejam diagnosticados com graus mais elevados de agressividade da doença. Imagino também que poderão existir ainda mais recidivas do cancro. Por um lado, este facto vai tornar a investigação de processos como os que eu estudo muito mais relevante. Por outro, infelizmente, o resultado dessa investigação não vai chegar a tempo a estes pacientes, que vão ser tratados como se pode, com as opções ainda existentes e vão sofrer muito mais, não só com o diagnóstico inicial como com toda a evolução da doença.
A solução poderá estar no investimento privado, ou este também escasseia?
Em Portugal, temos um problema cultural que é o pouco envolvimento da sociedade. Por exemplo, no Reino Unido existe uma rede de financiamento da sociedade para a Ciência, altamente prestigiada. As pessoas doam as suas propriedades e heranças numa dinâmica quase de mecenato científico. Em Portugal, temos duas instituições privadas que fazem investigação, mas basta olhar para a lista da Forbes para perceber que não existem só duas famílias multimilionárias no nosso país.
Estamos a boicotar quem pode aumentar as nossas opções terapêuticas futuras, sem sequer nos apercebermos disso?
A investigação é algo que demora muitos anos. Do início ao fim de um projeto, podem passar cinco anos, sem a certeza de que o trabalho se vai traduzir em aplicabilidade clínica ao fim desse tempo. As pessoas agora nem sequer estão a pensar a longo prazo. Quando precisarem destas inovações ainda nem haverá investigação para o que precisam e será demasiado tarde. Por isso é que tem de haver um investimento sustentado e regular para garantir que se dá respostas atempadas e cada vez melhores. Não dá para fazer ciência em cima do joelho.
Mas, por exemplo, o desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19 foi algo muito rápido. Isso não volta a acontecer tão cedo?
Para o público em geral pareceu quase um milagre, mas aquela tecnologia já vinha a ser desenvolvida há décadas para vacinas contra outras doenças. Não foi tudo num ano, ao contrário do que as pessoas pensam. Além disso, o investimento que foi feito dificilmente se repetirá, muito menos para todas as doenças que existem e das quais morrem muito mais pessoas.