Em 2016, tornou-se a primeira mulher a dirigir o CERN, o Laboratório Europeu de Física de Partículas, sediado na Suíça, o mais importante nesta área cientifica. Foi mais uma etapa numa carreira invulgar. A 4 de julho de 2012 o CERN anunciava ao mundo a descoberta do bosão de Higgs, que há muito intrigava a comunidade científica. O rosto da descoberta fora a italiana Fabiola Gianotti, porta-voz do projeto Atlas, que envolvera 3 mil cientistas de 38 países. O cientista britânico Peter Higgs previra, 50 anos atrás, a existência do bosão. Mas fora apenas teoria até o CERN a comprovar laboratorialmente, sobretudo através do seu LHC, Large Hadron Collider (Grande Colisionador de Hadrões) o maior acelerador de partículas do mundo. A descoberta valeu a Higgs um dos Nobel da Física em 2013. Quanto a Fabiola, somaria prémios e distinções – uma das cinco personalidades de 2012 para a Time, uma das mulheres mais poderosas para a Forbes – além de uma condecoração em Itália. Recentemente veio a Évora, para uma conferência no âmbito da Escola Europeia de Física de Altas Energias
Consegue lembrar-se do momento em que pensou “é isto!”, descobrimos mesmo o bosão de Higgs?
Não foi realmente um momento, mas um processo, porque o sinal foi aparecendo ao longo de semanas, enquanto estávamos a processar e a analisar os dados. E, com o tempo, o sinal ia-se tornando cada vez mais claro o que era, obviamente, muito emocionante. Mas houve um momento especial em junho, um mês antes de fazermos o anúncio da descoberta. Nós estávamos à procura do bosão de Higgs em dois modos de decaimento diferentes, isto é, dois estados finais diferentes. Num deles observávamos no detetor dois fotões (as partículas da luz) e, no outro, quatro eletrões e muões (partículas elementares que não podem dividir-se em nada mais pequeno). Enquanto no primeiro modo de decaimento o sinal era muito claro, no segundo não. No momento em que o sinal se tornou também claro nos quatro eletrões e muões, pensei “aqui está!”. Era o bosão de Higgs.
Qual era o significado da descoberta?
Foi um enorme passo em frente para compreendermos os fundamentos da física de partículas. O bosão de Higgs está relacionado com um mecanismo pelo qual as partículas elementares ganham massa. Foi uma descoberta muito importante, porque todos nós somos feitos de átomos e estes por sua vez são constituídos por partículas elementares – os quarks e os eletrões. E, se estas partículas não tivessem massa, os átomos não conseguiriam formar-se. Portanto, aquilo de que somos feitos e de que tudo à nossa volta é feito não existiria.
Até que ponto a sociedade já beneficia dessa descoberta?
Para lá do conhecimento em si, beneficia, porque foi também muito importante o que tivemos de construir para chegarmos à descoberta, isto é, o LHC, os detetores, os sistemas de computação. Tivemos de fazer avançar as fronteiras da tecnologia, na computação, nos materiais supercondutores, na criogenia, na tecnologia do vácuo. E tudo o que fazemos no CERN está à disposição da sociedade. A World Wide Web, que foi inventada no CERN no final dos anos 80, como instrumento de contacto e de partilha de documentos entre cientistas, permitiu depois à sociedade ter acesso a um manancial de informação. Agora esta nova descoberta já está a ter aplicações, por exemplo, em Medicina.
Em quê exatamente?
Em imagiologia, como o caso dos pet scanners, usados em mamografias e noutros exames. Mas também no próprio tratamento do cancro, por exemplo. Atualmente o tratamento é feito com radiação, além da quimioterapia. São usados raios para bombardear o tumor. Mas nesse processo é destruído não só o tumor, como o tecido saudável à volta dele. Se em vez de radiação forem usados feixes de protões, que são muito mais precisos, as células saudáveis não serão atingidas. Hoje já estão a ser construídas em muitos países instalações com feixes de protões, baseadas na tecnologia que desenvolvemos no CERN. Sei que Portugal também tenciona ter esta tecnologia e vamos dar a nossa colaboração. Aliás, quero salientar que Portugal é um membro muito, muito forte do CERN. É um país que tem contribuído com muito boa tecnologia e excelentes cientistas, que estiveram na linha da frente da descoberta do bosão de Higgs. Tem sido uma colaboração fantástica e estamos muito agradecidos a Portugal.
A descoberta do bosão de Higgs deixou-nos mais perto de compreender o Big Bang?
Melhorou o nosso conhecimento do universo e da sua evolução. Portanto, nesse sentido sim. Mas não no conhecimento daquele momento específico.
Até que ponto estamos agora próximos de compreender esse momento inicial?
Não estamos ainda próximo disso. Com os aceleradores que temos hoje, em particular o LHC, conseguimos chegar a um milionésimo de milionésimo de segundo a seguir ao Big Bang. Parece que já falta muito pouco, mas passarmos para além disso é, na realidade, trabalho árduo.
E tem ideia de quando será possível conseguir isso?
Não. É muito difícil de prever. Na investigação temos de avançar passo a passo. Podemos precisar de novas tecnologias, de aceleradores mais potentes, ou de outros instrumentos que nos permitam observar o cosmos.
Em que medida o universo dessa altura era diferente de hoje?
No início o universo era muito quente e denso, era um gás de partículas elementares livres. Por isso estudamos a dinâmica das partículas elementares, para compreendermos a dinâmica do universo nessa altura. Depois, com o tempo o universo arrefeceu e as partículas elementares começaram a agrupar-se para formar partículas compostas, como neutrões e protões, que são os constituintes fundamentais dos núcleos dos átomos. A seguir esses núcleos associaram-se com eletrões para formar átomos, que por sua vez se agruparam em moléculas e assim por diante. Até que chegámos à complexidade do universo de hoje, que é feito de planetas, galáxias, estrelas, gás intraestrelar e seres vivos.
Tem dito que, quando olhamos para as estrelas, só conhecemos uma pequena parte do que vemos.
Não é isso. As estrelas que vemos são apenas uma pequena parte do que existe. O universo que vemos, estrelas, planetas e galáxias, é apenas 5% do que lá está. Os restantes 95% do universo são o que chamamos matéria escura e energia escura. Não vemos a matéria escura porque não interage com os nossos instrumentos, não fica visível. Portanto, chamamos–lhe escura, porque não a podemos ver e também pela nossa ignorância. Mas sabemos que está lá através de observação indireta. Como conhecemos muito bem a força gravitacional, podemos deduzir, pelo movimento de rotação das galáxias, que haja mais matéria do que vemos.
O que espera encontrar nos restantes 95% do universo?
É possível que as partículas de matéria escura sejam produzidas no LHC. Até agora não foram observadas, talvez por serem demasiado pesadas para serem produzidas, e que precisemos de mais dados. Mas pode também acontecer que não possam ser produzidas no LHC e que necessitemos de outros instrumentos para as observar. De qualquer forma, há hoje um grande esforço na física de partículas e na astrofísica, com vários tipos de experiências, para tentarmos compreender a matéria escura.
O que espera conseguir com o LHC?
Foi construído para investigar as questões em aberto na física das partículas elementares. Uma dessas questões já foi largamente respondida com a descoberta do bosão. Outra diz respeito à matéria escura. Mas estamos também a procurar saber por que razão o universo é feito só de matéria e de tão pouca antimatéria. Vamos continuar a tentar encontrar respostas para tudo isto.
O jornal Guardian referiu-se a si como “a mulher que tem a chave dos segredos do universo.”
Não acho nada disso. Vejo-me como uma investigadora. E para nós cientistas investigar é explorar o desconhecido. No meu caso é melhorar o conhecimento do universo e dar um pequeno passo em frente todos os dias, ou quase, para aprofundar o conhecimento da Humanidade e desbravar novo território.
Mas o que lhe ocorre quando lê comentários destes sobre si?
Fico muito satisfeita, se isso contribuir para dar mais visibilidade à investigação e encorajar novos cientistas, particularmente mulheres. Os cientistas homens continuam a ser bastante mais, já que as mulheres representam apenas 20% dos investigadores do CERN.
E isso é porquê?
Em parte o problema é histórico. Sempre houve menos mulheres do que homens nos cursos universitários das ciências físicas. Mas isto está a mudar, porque os 20% referidos representam a média geral no CERN. Mas, se olharmos apenas para a geração mais jovem, constataremos que essa média sobe para 27 a 30 por cento.
Nas suas conferências compara por vezes o conhecimento à arte. Isso é porquê?
Porque tenho a impressão de que as pessoas tendem a pensar por compartimentos, e que a arte e a ciência são duas coisas completamente diferentes. Para mim ambas são expressões maiores do engenho, da criatividade, da curiosidade do cérebro humano. Estudei música e as pessoas perguntam-me muitas vezes porque mudei para a física, como se fossem dois mundos completamente distintos. A música baseia-se na harmonia que, no fundo, é a física do som. A física por seu lado tem leis fundamentais que são muito elegantes e simples. Portanto, em ambas existe beleza.
Creio que, em criança, quis ser bailarina do Bolshoi. E os seus colaboradores dizem que é exímia a tocar piano.
Acho que, quando acabei o curso do Conservatório, tocava bastante bem, mas isso foi há muito tempo. Era um curso de dez anos, a partir dos dez de idade. Hoje não tenho muito tempo para tocar piano, mas a música continua a ser uma parte importante da minha vida.
A sua investigação tem algum som? Quando está a chegar a resultados, ouve alguma música, gravada ou interior?
A música está sempre comigo, no meu espírito. Ouço muita, seja no carro ou em casa. Há alturas em que me é muito útil para pensar, outras para relaxar. Gosto muito de Bach e de Schubert. E ouço todos os tipos de música, dependendo do dia e da disposição. Mas, dada a minha formação, a minha especialidade é música clássica.
Posso perguntar-lhe em que pensa, quando olha para as estrelas?
Quando olho para as estrelas, o que penso é no que está para lá delas. Tento pensar no universo a três dimensões e isso dá-me a perceção da sua imensidão
(Entrevista publicada na VISÃO 1281, de 21 de setembro de 2017)