O perfil e a sombra estão-lhe mais afilados. Homem asa-de-corvo. A paixão, garante ele, ainda o habita. E Paulo Nozolino, 53 anos, fotógrafo-escultor de penumbras, defende ainda que esse é o fôlego que alimenta desejo e criação. Radical, mantêm-se longe dos documentalismos frouxos, dos sentimentalismos gratuitos. O seu mundo é o dos negrumes. O resultado do seu último olhar à volta desvenda-se hoje na exposição bone lonely, patente até 21 de Fevereiro na Galeria Quadrado Azul, em Lisboa. São 32 imagens, “fotografias sujas” chama-lhe ele, um ano a pesquisar o minério humano. Sem latitude nem longitude, para que possam arrumar-se numa fileira de pequeno formato, uma narrativa captada na máquina analógica de sempre, decantada naqueles cinzas particulares que fizeram do fotógrafo uma ilha solitária, referência respeitada e profissional premiado.
Ele, asas metafóricas abertas, estendendo a sombra sobre quem fala, diz que “podem ver-se muitas coisas nestas imagens”. Recusa-se a fornecer sinónimos, substantivos, paliativos. O discurso está mais seco. Mas há esqueletos, caixões de cetim, sombras de mendigos que evocam burkas, restos de objectos que são restos de pessoas, corpos nus, puzzles incompletos. Este é o mundo e a peça que falta é o fotógrafo? O corvo bate as asas e debanda com a resposta final. “Há aqui muitas histórias, mas são do domínio privado. Tem que ver comigo e comigo, e com esta prática solitária da fotografia. E é bom que fique nesse campo”.
A exposição bone lonely será também livro, editado pela Steidl (que fez o imponente Far Cry, aquando da antológica em Serralves, em 2005), e mostra apresentada nos Rencontres d’Arles 2009. Depois, dos arquivos escrupulosamente guardados de Nozolino, outras fotografias inéditas verão a luz: o fotógrafo português participa na PhotoEspaña 2009 com uma grande exposição antológica, “um recapitular da matéria dada” em 80 fotografias.
No ano passado, uma fotografia sua tirada no campo de concentração de Auschitvz, cobriu nove metros de palco do CCB nas comemorações dos 100 anos de Messiaen. Foi um voo solitário para Nozolino: “Não fiquei com vontade de experimentar outras coisas, fora do papel, da galeria, do livro. Ainda há tanta coisa por explorar. É que o funil está tão apertado… Não sou um touche a tout, um acumulador. Prefiro continuar a afiar o lápis até já não haver mina”.Leia-se a prosa, em discurso directo, a contaminar a página:
Sobre o mundo
“A fotografia é uma reflexão pessoal. É como eu vejo o mundo e como me vejo a mim dentro desse mundo. Neste momento, é um mundo miserável, onde os sistemas falharam e onde reina a fome, a miséria, o neo-fascismo. As esperanças levantadas pela eleição de Barack Obama? A isso, respondo muito simplesmente: há quem acredite no Pai Natal e no Pai Obama, mas eu acho que o ‘Pai Osama [bin Laden]’ está a ganhar desde o 11 de Setembro de 2001. Vivemos num momento de confusão total, em que temos pessoas que estão dispostas a morrer, e nós queremos viver. Portanto, nós já perdemos. Só há uma coisa a fazer: registar a batalha perdida. Registar a perda.”
Sobre a Europa
“Tenho observado a degradação do mundo ocidental em que vivo. Comecei a constatá-lo quando vivia em Paris, e constato-o agora, aqui, com alguns anos de atraso. Estamos a chegar ao lugar onde Paris então estava: a um aumento enorme de desemprego, a pessoas a viverem abaixo do limiar da pobreza, a filas enormes de ‘sopas dos pobres’. Eles dizem que estamos a avançar. Eles são todos os que têm fatos cinzentos, relógios grandes e sapatos quadrados, e que decidem por nós. Portugal está aí incluído, alinha-se com os partenaires políticos da União Europeia. Hoje à tarde, peguei no Sven Lindqvist por acaso, autor que adoro, e li uma coisa fabulosa: “Vocês já o sabem e eu também. Não é informação que nos falta. O que nos falta é a coragem de compreender o que sabemos e daí retirar as devidas conclusões”. Fotografar é a única acção, digamos, que estou disposto a tomar.”
Sobre as fotografias
“As fotografias desta exposição são todas inéditas. E todas verticais – não alargar o campo de visão, encurralar o olhar. Centrá-lo sobre o que é importante. Há uma imagem de 1976 e várias de 2008. Não interessa quais são quais. Estão sem título e sem data, precisamente para que as pessoas não façam uma leitura imediata do que é e onde é. Para que, por uma vez, tentem aproximar-se e compreender o que está lá. Para que sintam algo.
Há um trabalho de montagem que, para mim, é fundamental. Eu não trabalho por séries, não preciso de fazer cinquenta fachadas de prédios. A minha aproximação à fotografia não é conceptual, é mais visceral, intuitiva. Estas fotografias são tiradas em locais diversos, e é mediante o que me vão dizendo que começo a associá-las, um processo longo e moroso. Para mim, este é o verdadeiro exercício fotográfico, muito mais do que o acto de fotografar. O momento da fotografia já não tem a importância que teve. Já não há necessidade de ‘disparar’ tanto, de ir ao outro lado do mundo para descobrir o que está em frente de nós. Os problemas são iguais em toda a parte. Se decapares o exótico, se eliminares o enfeite, se ficares com os símbolos, vais direito ao assunto.”
Sobre a ‘sujidade’ e os enigmas
“Esta fotografia ‘suja’ é uma reacção contra duas coisas: primeiro, contra a fotografia limpa, asséptica, a cores, agora praticada, que não tem o mínimo interesse e que não me toca. É a fotografia da banalidade do quotidiano. Em segundo lugar, esta ‘sujidade’ é um espelho do mundo em que vivo. O formato usado na exposição é intimista. É outra reacção às fotografias descomunais que se fazem por aí, feitas para cair em cima das pessoas, para as impressionar. Mas o público já sente que está a comprar gato por lebre. São modas que agradam ao olho mas que são desprovidas de sentido profundo. Apetece-me voltar à fotografia como objecto do qual nos aproximamos e tentamos descobrir o que lá está. É a razão por que estas imagens são pequenas e, de alguma forma, enigmáticas.”
Sobre a idade e o consolo
“O princípio de tudo isto é questionar-me, aos 53 anos. Saber o o que ando aqui a fazer e olhar à minha volta. É uma idade charneira e… [silêncio] Este ano, sofri uma separação, a morte do meu pai há quatro semanas, um acidente de carro. O livro Bone Lonely já começou a ser feito no verão de 2007. É muito curioso como a arte precede a vida. Há quase como que um poder invocatório das coisas, tenho sentido isso no meu trabalho ao longo dos anos. Estou a trabalhar em algo que sei que me vai acontecer.
Este trabalho não é consolador, porque não há consolo possível na vida. Quem acredite num deus ou partido político ou ideologia, está obviamente resguardado. Mas não é o meu caso. As ONG, a solidariedade? Acho que há pessoas que fazem isso bem, que são genuínas. Há também muitas com a pretensão de salvarem o mundo quando a sua vida pessoal é um desastre. Vi-os no terreno, na Bósnia, em África, com os seus walkie-talkies, os seus jeeps e calças de caqui. E vi a arrogância com que gerem o poder que têm. No princípio, quando se criaram organizações como os Médicos sem Fronteiras, houve uma vontade genuína de ajudar, de intervir. Era real. Hoje, as ONG tornaram-se moda. É o fim da linha.”
Sobre o silêncio dos outros
“Quando tenho o trabalho pronto, interrogo-me: para quê mostrá-lo, fazer um livro, uma exposição? Mas há sempre uma tentação. Queria que restasse algo do que vi. Porque senão não fazia sentido estar lá. Ainda há, apesar de tudo, um desejo de transmitir uma sensação. E de dar o meu ponto de vista.
Não espero nada. Porque as pessoas nunca dizem o que pensam. É raríssimo haver alguém que venha ter comigo a dizer ‘gostei muito’ ou ‘detestei’. Há uma enorme falta de coragem. Não vivemos num país de gente frontal. Estão demasiado comprometidos, têm medo – da delação, de perder o emprego… A quantas exposições minhas fui e voltei para casa profundamente deprimido por esta ausência de ecos! Porque a vida se resume em quatro palavras: sim, não, dar e receber. Quando se dá, espera-se algo. Quando se faz uma exposição, dá-se alguma coisa. As pessoas pagam para ver. Às vezes, até têm uns croquetes e bebem um vinho! E nem tem a delicadeza de dizer um obrigado, ou se gostaram ou não.”
Sobre o mercado de arte
“A imagem [do crânio e dos ossos, que esteve exposta na Arte Lisboa] é estranhamente escolhida como memento mori do que estas feiras de arte estão a ser. Parece-me evidente que esta acumulação de “obras de arte” em rectângulos dentro de pavilhões imensos não vem dar uma compreensão do que se está a passar. O público tem de estar muito avisado para distinguir o bom do mau. Ver uma caveira com dois ossos no meio daquilo é suícidio, em termos de marketing. Não é uma imagem agradável. Nenhuma das minhas imagens é agradável. Admiro imenso quem compra as minhas fotografias e as têm em casa. Porque eu não tenho.”
Sobre amigos e livros
“Fazer este livro com o meu amigo Rui Baião é importante. Muito. É um livro em inglês, feito para o mercado internacional. Acho que a poesia do Rui precisava há muito que mais pessoas tivessem acesso a ela. As fotografias tem essa vantagem de não precisar de tradução.O livro terá o mesmo formato das fotografias.
É também uma reacção aos livros luxuosos? Sim, sem dúvida. Aliás, eu falei com o responsável da Steidl e disse-lhe que queria um livro pobre. Ele fartou-se de rir. Este livro não merece ser um livro luxuoso, isso não faz sentido. O que está cá dentro não é luxo, é miséria. Terá que ser um livro digno, porque tenho um enorme respeito por tudo o que está aqui fotografado, mas não poderá ser um coffee table book.”
Sobre o rasto dos ossos
“Eu queria exprimir algo que sinto e não… [silêncio] Não consigo explicar o grau desta solidão que sinto. A associação da palavra ‘osso’ com ‘só’ pareceu-me justa em inglês. O osso tem sido sempre uma grande preocupação no meu trabalho, quer a nível ideológico, quer a nível prático. O limpar tudo até ao osso, não deixar nada. Interessa-me que a fotografia seja o mais simples possível, o grau zero do sentir.”