A Google anunciou aquela que já é vista como a maior alteração dos últimos cinco anos àquele que é o mais usado motor de busca da internet. Com o BERT – acrónimo inglês para Representações de Codificador Bidirecional de Transformadores – o Google passou a integrar, desde outubro, modelos avançados de processamento de linguagem natural para devolver resultados. Por outras palavras, com o BERT o Google passou a perceber melhor aquilo que os humanos querem mesmo pesquisar e isso vai aumentar a eficácia das respostas em 10% das pesquisas – o equivalente a 4000 pesquisas por segundo.
«A tecnologia básica vem do meu grupo, depois a aplicação é feita em colaboração com o departamento que faz o motor de busca», conta Fernando Pereira, vice-presidente da Google e líder para a área de processamento de linguagem natural na gigante norte-americana. «Por vezes, o que acontece é que o motor de busca atinge a resposta certa por meios incorretos. Isto é, não tem a capacidade de raciocinar com aquilo que leu para decidir a resposta certa. Às vezes a resposta certa vem por sorte, não através do raciocínio explícito que é preciso», detalha o português de 67 anos. Agora, com o BERT, o Google consegue raciocinar melhor.
O contributo para a nova versão do Google é provavelmente a maior montra do trabalho que Fernando Pereira e as respetivas equipas têm neste momento, mas está longe de ser a única – Assistente Google, Google Chrome e Google Translate são outros exemplos grandes nos quais é possível encontrar uma forte influência das ferramentas de processamento de linguagem natural (NLP na sigla em inglês) que a empresa tem desenvolvido. «Não me consigo lembrar de um [grande produto] que [o NLP] não toque».
No fundo, Fernando Pereira tem um grande problema entre mãos – como fazer com que as máquinas percebam melhor os humanos? Uma resposta que o próprio tem procurado há mais de 40 anos e que, garante-nos, ainda está longe de ser encontrada.
«Embora falemos deste progresso todo, de facto as máquinas ainda estão tão longe de atingirem as capacidades que gostaríamos, por exemplo, de comunicação fluente e correta. Os problemas fundamentais que eu estava a tentar abordar [há 40 anos] ainda persistem».
Um exemplo. Se pedir recomendações de um restaurante ao Assistente Google e, para o caso de as respostas incluírem um restaurante francês, se responder “estou farto de francês” ou “não gosto da música que toca lá”, o assistente não vai conseguir interpretar essa informação e não consegue desenvolver a conversa a partir daquele ponto – a não ser que seja especificamente programado para isso.
O executivo da Google admite que, nos dias que correm, a inteligência artificial é de facto mais palpável. Já é possível falar para o smartphone que responde em português fluente. Já pode pedir à coluna inteligente para ligar o televisor. Já consegue pesquisar uma grande parte da informação digital sem necessitar de mexer um único dedo ou de ter um computador por perto. Mas é muito mais aquilo que ainda não é possível fazer do que o que já está ao alcance de centenas de milhões de pessoas.
«O que falta [à inteligência artificial] é um sistema fiável de representação do contexto da interação [da pessoa] que mantenha uma forma de atenção aos elementos que são relevantes para a conversa. Que seja capaz de conectar os elementos que aparecem da conversa contínua com os assistentes, reconhecer informação que falta, ser capaz de reagir a essa falta de informação e pedir informação adicional, reconhecer que algum aspeto anterior da conversa foi invalidado por uma coisa que foi dita de novo», explica Fernando Pereira sobre o caminho que ainda falta percorrer.
Apesar de já ser possível fazer questões encadeadas aos assistentes digitais e apesar de as grandes tecnológicas terem um histórico muito completo da vida digital dos utilizadores, continua a faltar uma peça importante – contexto – e uma condição muito humana – diálogo. Justamente o próximo “campo de batalha” de Fernando Pereira.
A próxima fronteira para a Google
«Uma das áreas nas quais estamos agora a reinvestir muito ativamente, porque pensamos que existe uma oportunidade para fazer avanços significativos, é a área de diálogo. Em vez de só “fazer a pergunta, tenho a resposta”, depois se quiser perceber mais sobre a resposta, elaborar, obter uma justificação ou perguntar uma alternativa, tudo isso não existe de uma maneira suficientemente geral», revela Fernando Pereira à Exame Informática.
«Temos estado a investigar como é que podemos criar um mecanismo de diálogo mais capaz, mais robusto, que permita esse tipo de interação que não é só pergunta-resposta, mas sim uma conversa. Não será uma conversa muito longa, mas será uma conversa que permite chegar mais fundo à resposta a uma questão, obter informação relacionada, todo esse tipo de coisas que são naturais na conversa entre seres humanos, mas que nós não temos nas conversas entre nós e uma máquina», acrescenta o vice-presidente da tecnológica.
Significa, isto, que a Google está a tentar humanizar os sistemas de inteligência artificial? «Tenho muito cuidado com esse termo», responde de imediato num tom de voz mais sério. «A nossa forma de interagir com informação e comunicar com outros para atingir certos objetivos requer esse tipo de interação com múltiplas interações, perguntas-respostas, interrupções, toda essa fluidez e complexidade da conversa que a máquina não pode fazer, mas que se pudesse fazê-lo um bocadinho, podia ser muito mais eficaz, satisfazer as necessidades que o utilizador tem».
Fernando Pereira explica que as pausas que as pessoas fazem quando falam, as interjeições prolongadas, são nuances que permitem respirar, separar ideias, mas também são momentos usados pelo cérebro dos interlocutores para processar a informação do diálogo, para conseguir relacionar o que está a ser dito a um contexto.
«Se eu disser “o pneu de trás esquerdo estava em baixo’, eu não preciso de dizer do meu carro, é implícito. Essa conexão, essa conivência do texto e da conversa é algo que a máquina ainda não consegue reconhecer e utilizar. Isso é uma área que para mim tem muita oportunidade. (…) A nossa vida é uma vida muito diferente. A vida dos seres humanos está alicerçada num mundo físico, social, pessoal e a máquina não tem acesso a essas coisas de maneira direta», sublinha.
É por isso que não tem problemas em dizer que a sintonia entre humanos e máquinas «nunca será completa» e que há certos raciocínios simples que os sistemas de inteligência artificial não fazem, mas que «uma criança de três anos é capaz de fazer e certos animais, certos corvos, conseguem», exemplificou.
Melhores humanos à boleia das máquinas
Fernando Pereira diz que não é um homem de apostas, mas que se fosse «tinha ganhado muito dinheiro a apostar contra a inteligência artificial». O motivo é simples: «O progresso tem sido sempre mais lento do que aquilo que nós esperamos ou ambicionamos.»
Se falar para uma coluna que responde atualmente é uma interação entusiasmante para o utilizador final, Fernando Pereira acredita que se não houver uma evolução significativa da interação com os assistentes digitais nos próximos cinco anos «torna-se um desapontamento». «O progresso vai continuar, acho que estamos num momento em que a velocidade de progresso é maior do que há 10 ou 20 anos. Mas temos que pensar que o progresso baseado numa tecnologia, neste caso baseado numa tecnologia de aprendizagem automática, de redes neuronais artificiais, pode até saturar», acrescenta.
Apesar dos avisos, o vice-presidente da Google está confiante naquilo que a inteligência artificial trará de positivo para os humanos – não alinhando por isso nas visões negativas muitas vezes associadas à tecnologia. A evolução da inteligência artificial vai acontecer à semelhança de outras tecnologias que já existem na vida das pessoas, de forma gradual até tornar-se indispensável. Quando é que foi a última vez que pensou na eletricidade enquanto tecnologia e na importância que tem? Provavelmente quando a luz foi abaixo e provocou um apagão lá em casa.
A inteligência artificial será, para Fernando Pereira, um novo suporte para os humanos, tal como a escrita o foi e permitiu, por exemplo, criar uma memória coletiva e uma base de conhecimento que ajudou a civilização a evoluir. «O que é que poderá acontecer quando tivermos máquinas com que podemos comunicar de maneira mais fluída? Eu não sei, mas acho que vai levar a uma semelhante amplificação da nossa inteligência individual e coletiva».(…) As máquinas ligeiramente inteligentes vão-nos fazer muito mais inteligentes».
Apesar deste “El Dorado” que a tecnologia promete trazer, existe uma proporção igual entre oportunidades e novas ameaças, que vão desde os enviesamentos à discriminação algorítmica. Por exemplo, dentro da Google concluiu-se que o reconhecimento de caras em vídeos podia ter usos muito negativos. «Muitas coisas que poderiam ser feitas com a tecnologia corrente nós não fazemos. Às vezes as discussões são extremamente difíceis…», confidencia o português, que confirmou que a gigante tecnológica já cancelou projetos de inteligência artificial por os riscos serem maiores do que as mais-valias.
«Não posso dizer quais são, mas posso dizer que sim. Posso dizer que certas pessoas olham para mim de viés, digamos assim, e perguntam “Porque é que isto parou?”. Parou porque eu e outros, na posição de decidir, sentimos que o risco era demasiado. Prefiro errar na direção de ser conservador até termos mais confiança de que podemos aliviar esses riscos.»