Grazia Vittadini, Diretora de Tecnologias da Airbus (CTO), fechou os Innovation Days que a Airbus organizou em Toulouse, entre terça e quarta-feira, para apresentar um vislumbre das aeronaves do futuro. Aviões elétricos do projeto e-Fan X, cockpits de um único piloto que é auxiliado por funcionalidades de inteligência artificial e o desenvolvimento de novos materiais prometem deixar a aeronáutica quase irreconhecível na próxima década. Numa conversa com vários jornalistas, a executiva italiana que é engenheira e tem um brevet de piloto, aponta para um tempo em que os passageiros acabarão de viajar de costas para o destino, tendo por companhia entretenimento ou até simulacros da realidade. É essa entrevista em grupo que aqui se publica.
É viável ter um avião elétrico numa linha comercial para transporte de pessoas durante a próxima década?
É tudo uma questão de matemática… e de densidade energética e de potência das soluções que se pretende criar. Se alguém quiser voar num A320 totalmente elétrico… temos de assumir o seguinte: atualmente, o nível de baterias de alumínio e lítio que se encontram certificadas pelas autoridades tem uma densidade energética de 1000 Wh por quilograma. Mas vamos admitir que conseguimos criar algo 30 vezes mais denso que isso… estamos muito longe disso, mas vamos admitir que conseguimos criar algo do género. Com essas baterias que ainda não existem, um A320 seria capaz de voar com alcances que seriam um sexto daqueles que apresenta hoje…
Esse avião dificilmente poderia ser usado nas longas distâncias…
Não seria muito viável. Teria de ser um avão com um único corredor, de curto alcance e totalmente elétrico, e ainda não se conseguiu dar a volta às leis da física! Sim, queremos a eletrificação dos aviões – mas não sozinha. Para os aviões elétricos, prevemos uma capacidade de transporte de 100 pessoas e um alcance de 150 quilómetros. Acredito que o ano de 2030 possa revelar-se um prazo viável. Há um empurrão importante que foi dado pela Europa do Norte… se não me engano, a Noruega tem como objetivo chegar a 2040 com o objetivo de banir todos os voos regionais cujas emissões de CO2 não sejam zero.
E daí a Airbus estar a apostar em sistemas com fontes de energia híbridos.
Sim, soluções híbridas em série, como aquelas que temos vindo a testar no projeto e-Fan X e que nos permitem passar de um sistema para outro (entre motores elétricos e de combustível), consoante as necessidades das diferentes fases de voo. Podemos imaginar ter uma descolagem e uma aterragem totalmente asseguradas por motores elétricos, e usar os motores de combustível durante o voo… ou então podemos até alternar com outros tipos de energia que possa estar armazenada. Ou recorrer à combustão direta de hidrogénio. É outra solução que estamos dispostos a testar, no âmbito de iniciativas que estão a ser desenvolvidas na UE. A propulsão exclusivamente elétrica destina-se mais à mobilidade aérea urbana (os futuros “carros voadores” ou drones tripulados) ou então aos voos regionais que transportam um máximo de 100 pessoas.
Na sua apresentação aos jornalistas, também deu a conhecer projetos de investigação que pretendem substituir os materiais dos aviões por derivados de algas ou seda de aranhas… estas soluções não são demasiado ousadas para se tornarem realidade?
São exemplos de que estamos a evoluir no desenvolvimento de novas ligas metálicas e em novas tecnologias de fabrico de compósitos, fibras, resinas… mas também temos em conta esses cenários mais disruptivos…
Presume-se que o objetivo é produzir materiais mais leves e menos poluentes…
Essa é das tais questões que temos de nos colocar a nós próprios: temos de evoluir para a descarbonização da indústria, temos de reduzir as emissões de CO2, e o ruído dos aviões… mas e que tal reduzir o carbono também nos nossos processos de fabrico e dos materiais que usamos nos aviões? Hoje, usamos fibras de carbono e resinas que também envolvem carbono.
Mas então como podem ser criadas as fibras de algas?
É um processo patenteado, em que estamos a trabalhar… que existe, mas ainda tempos de fazer a caracterização das fibras que resultam desse processo. A seda de aranha é promissora e tem valor, não haja dúvida, mas o problema ainda está nas resinas… que ainda não têm qualquer substituto.
Quando é que os cockpits de um único piloto estarão disponíveis?
Estão sempre a colocar-me essa questão. Estamos já a testar diferentes módulos para uma solução possível para um cockpit de um só piloto. O que pode abrir caminho a diferentes opções relacionadas com os copilotos. Temos estado a estudar cenários em que o copiloto está a descansar ou um capitão de voo ativo num dos bancos do cockpit. Aquilo que temos vindo a estudar, consoante o tipo de voo, diferentes combinações que acabarão por permitir criar uma solução certificada. O ponto em que nos encontramos são apenas “fatias” de uma solução futura; precisamos de desenvolver e testar soluções de forma coerente, a fim de garantir de uma proposta técnica madura. O cockpit disruptivo já existe e está aqui em Toulouse! Funciona ainda em simulador…
Quando é que entrará em operação?
Preciso de uma bola de cristal para poder dizer isso. Posso dizer que é algo para a próxima década, mas admito que se trata de especulação… Imagino que é algo que terá de ser feito gradualmente.
Essa é das tais soluções que só podem seguir em frente quando os aviões conseguirem fazer voos totalmente autónomos… até porque se o piloto se sentir mal, ninguém o poderá substituir!
Terá de uma solução autónoma e automatizada. Mas para isso será necessário criar soluções de Inteligência Artificial… que ainda não existem…
E as autoridades estarão dispostas a aceitar essa inteligência artificial?
Estamos em contacto com a EASA, da Europa, com a FAA, dos EUA, e com outros intervenientes da indústria para vermos se conseguimos determinar um plano de trabalho. Porque temos um desafio: como é que tornamos a inteligência artificial explicável?
Os pilotos automáticos que os aviões usam na atualidade não superaram já esse desafio?
Os pilotos automáticos são automatizados; não são autónomos.
A Airbus tem planos para fazer testes com aeronaves parcialmente autónomas?
Sim.
Não dá mais nenhum detalhe?
Não. Mas temos várias opções, com diferentes parcerias e diferentes produtos…
… E o público como é que reagirá aos voos autónomos? Já estudaram essa vertente?
Já pusemos os nossos especialistas em interfaces a trabalhar nesta área, com o objetivo de apurar qual o grau de aceitação do público, e também dos pilotos…
… Os pilotos não gostam da ideia?
Os pilotos de hoje – e eu sou um desses pilotos – são treinados para operações completamente diferentes, com cockpits que têm mais do que uma pessoa, numa lógica de complementaridade durante as operações. Mas e se essa lógica desaparecer? E se os pilotos ficarem dominados pelo tédio? Há muitos aspetos que têm de ser analisados.
Estas evoluções tecnológicas não vão tornar o fabrico dos aviões ainda mais elevado?
Depende do tipo e da maturidade das tecnologias. Na fase inicial, todas as tecnologias têm um custo. Mas aqui temos de ter em conta que essas tecnologias têm de entrar na nossa “cash cow” que é a família de aviões “A300”… dentro desta família produzimos cerca de 60 aviões por mês. Por isso, há que usar tecnologias maduras e que são competitivas em termos de custo, caso contrário, não será exequível. Os custos são uma condição indispensável. Claro que no princípio da industrialização, os custos são superiores…
… Imagino que os vossos gestores também não gostarão muito da ideia de mudar todo o circuito de fabrico, fornecedores e certificações…
Os custos têm de ser suportáveis. E as tecnologias têm de ser disruptivas e implementáveis.
Como é que as cabines dos passageiros vão mudar?
Posso falar apontar algumas inovações: vamos usar materiais reciclados. Sabemos que há demasiado plástico nos oceanos. E por isso estamos a olhar com muita atenção para materiais reciclados, e também para materiais mais sustentáveis. Também temos vindo a estudar para soluções de conectividade avançada; temos uma parceria com uma empresa chinesa, que fabrica ecrãs OLED realmente muito finos que são dobráveis. É algo que abre as portas para futuras configurações de cabines. Se encontrarmos forma de usar ecrãs de resolução muito elevada, que são flexíveis… e se os colocarmos espalhados pelo avião, será que vamos precisar de janelas? Sabe o que significa retirar janelas dos aviões? Quanto se poupa em inspeções? Claro que temos também a perceção do público: se voarmos virados de costas para a frente, a segurança é bastante maior, num cenário de acidente… mas o público não aceita viajar de costas.
Vai ser a tecnologia a fazer essa transformação?
… Se houver condições para desenvolver soluções de conectividade e atrações visuais para a cabine dos passageiros, que dão a ideia de que as pessoas estão a voar!