Aos 69 anos, António Câmara mantém o espírito inquieto e inconformado que fez do seu nome uma espécie de sinónimo de empreendedorismo. Uma biografia que terá começado a ser traçada quando aos 12 anos recebeu do pai, um arquiteto paisagista “rebelde e único”, o conselho de faltar à escola. ”O meu pai disse-me: ‘a maior parte do ensino é uma seca do pior, percebo perfeitamente se faltares’”. Em troca, teria de desenvolver uma paixão, que poderia ser traduzida para outras áreas. Câmara escolheu o ténis e chegou a desejar ser jogador profissional. Licenciado em Engenharia Civil pelo Instituto Superior Técnico, doutorou-se nos EUA, onde sentiu a motivação para ser empreendedor.
Um dos seus últimos projetos passa por ensinar jovens do concelho do Seixal a usar tecnologia, levando-os a desenvolver um projeto de raiz.
É muito crítico do sistema de educação português. O que mudaria?
Algo que se deveria fazer era comparar o nosso sistema com o dos melhores sistemas de educação a nível mundial. Aliás, estou convencido de que esta análise até já foi feita, mas de nenhuma forma se sentem os resultados da mesma. Há duas características do sistema português que me preocupam. Tenho lidado com estudantes do secundário e do ensino superior, do terceiro, quarto ano. E o que constato é que nunca tiveram de ter uma ideia. Portanto, quando eu lhes digo “vocês agora têm de ter uma ideia” sinto que há uma surpresa total e quase um terror. Isto significa que não há nenhuma criatividade, esta não é estimulada no ensino em Portugal. E numa altura em que passamos por uma transformação imensa, com a IA, isto é preocupante! Segundo ponto: o objetivo de um sistema de ensino não deve ser filtrar as pessoas, através de testes ou exames. O objetivo deve ser que todos os estudantes sejam o melhor que possam ser. E a maior parte deles é melhor do que pensa que é. A consequência é que não lhes damos a autoconfiança necessária, para depois serem criativos, inventores, exploradores. E depois ainda há a questão dos conteúdos. Não me parece que sejam atualizados para incluir as novas ferramentas de IA e todos os desenvolvimentos tecnológicos que são estruturais e que têm de ser absorvidos pelo nosso sistema.
Em que se reflete esta diferença nos sistemas de ensino?
É muito curioso e muito triste comparar o número de patentes em Portugal e na Alemanha. Lá são todos os anos 60 mil. Enquanto nós estamos a atingir os números record de 300. É um dado muito importante sobre as duas economias. A Alemanha desenvolveu indústrias e faz isso desde o século XIX, transformando-se numa economia poderosa. E nós não. Portanto, o que é que acontece? Os nossos jovens, que saem da universidade, não são eles próprios educados para gerarem empresas e o que acontece é que vão trabalhar para as empresas criadas por outros, noutros países. A propriedade intelectual é muito importante porque é o que permite a uma empresa operar no mercado internacional. Precisamos mesmo de mudar a educação em Portugal. A lógica da educação alemã, de criar engenheiros, é a dos novos artesãos. E esta é uma componente muito importante da educação, nós temos de criar artesãos, pessoas que têm prazer em trabalhar bem, em produzir bons produtos. Quando se atinge este nível torna-se muito mais fácil a abordagem ao mercado. As grandes empresas mundiais vêm desta lógica de criar produtos e a nós isso tem-nos faltado, ao longo de séculos.
Com a chegada generalizada dos sistemas de Inteligência Artificial a questão ainda é mais premente …
É muito curioso e triste que o nosso ensino se baseie em ensinar aos estudantes as questões fundamentais e também as suas respostas. Portanto, fazemos de nós, humanos, máquinas. Sendo que agora temos máquinas em que o processo é o inverso. Nós humanos temos de fazer as questões às máquinas. Isto devia implicar uma mudança enorme na educação. Temos de nos educar a saber fazer questões. O que significa estimular a criatividade e o sentido crítico e muitas outras das características que não temos atualmente na nossa educação.
A crítica não é nova. O que está a travar esta mudança?
O problema está diagnosticado, nós fomos às escolas e os professores querem que haja uma mudança e esta tem de acontecer. Uma mudança no sistema público de ensino, muito a nível do ministério. Mas além do apoio político, é preciso apoio social, quase um pacto de regime. A lógica do passado não nos serviu, somos o país mais atrasado da Europa Ocidental. Houve aspetos bons, até excelentes. Mas de uma forma geral o desenho da nossa educação criou um país em que somos formados para ser empregados de outros.
Esta mudança que reclama também deve atingir as universidades?
Sim, nas universidades precisamos imenso de uma mudança semelhante. Há coisas notáveis, uma é terem sido criados centros de conhecimento que resultam em que hoje sejamos capazes de criar empresas em qualquer área. Só que este passo seguinte não demos. E isso porque o modelo de inovação que seguimos em Portugal veio do século XVII. Os resultados da inovação não chegam ao mundo real. Não chegam porque não há alguém, um empreendedor, que pegue nas ideias na universidade e as leve para fora dela. Da minha experiência a criar empresas, percebi que temos o talento para competir em qualquer parte do mundo e vemos isso na sociedade, nomeadamente no futebol, uma classe que acha e consegue competir em qualquer parte. E não há nenhuma razão para noutras áreas não haver a mesma atitude e não se criar o mesmo ecossistema que o futebol soube desenvolver.