De Sacavém a Marte vão, na menos distante das hipóteses, 56 milhões de quilómetros. Ainda não há conhecimento de um humano que tenha percorrido tamanha distância, mas nada impede Mário Lino da Silva de manter a expectativa quanto à estreia do primeiro laboratório europeu que vai tornar possível sentir a atmosfera de Marte tal como ela se apresenta às sondas criadas pelos humanos. O primeiro dia do resto da vida de uma eventual ida a Marte está marcado para esta quarta-feira, com a estreia oficial do Laboratório de Plasmas Hipersónicos e a previsível presença de representantes políticos e comunidade científico para verem de perto o tubo de choque ESTHER. Sendo o coordenador do novo Laboratório, Mário Lino da Silva já aponta para os primeiros trabalhos: «Nos tempos mais próximos vamos usar este equipamento em projetos de estudo das atmosferas de Marte e também da Terra a muita alta velocidade».
Situado no Campus Tecnológico e Nuclear do Instituto Superior Técnico, o Laboratório de Plasmas Hipersónicos tem tudo para manter a discrição: além de desenhado para pôr em prática as leis da física que nem sempre são as mais populares entre os leigos, está longe de ser deslumbrante à vista. Naquele laboratório parcialmente soterrado para atenuar danos de uma uma eventual explosão, pouco mais se encontra que uma estrutura cilíndrica com paredes que nalgumas componentes tem uma espessura de 20 centímetros de aço devidamente preparado para resistir à passagem do hidrogénio e a temperaturas que podem superar 3000 graus centígrados. Dito por outras palavras: é difícil perceber como é que daquela estrutura de 12 toneladas se chega a Marte.
Mário Lino da Silva aceita dar uma explicação com a mesma paciência com que faz palestras em escolas do País para preparar as crianças da atualidade para o dia em que os respetivos filhos ou netos acabarão por lhes pedir viagens ao Espaço como presente de Natal. Aparentemente, estas palestras nada terão a ver com a física dos plasmas. Mas sem a física dos plasmas dificilmente haveria palestras sobre a ida dos humanos para o Espaço – precisamente porque seria difícil desenhar sondas e vaivéns capazes de sobreviver às diferentes atmosferas.
Há ir e há voltar
Nem todas as missões no Espaço são de ida e volta – mas a Mars Return Sample tem no nome a promessa de um dia regressar à Terra com uma amostra do planeta vizinho. O coordenador do Laboratório de Plasmas Hipersónicos recorre a uma regra de senso comum para descrever o desafio que deverá ser superado por todas as missões que tenham como objetivo visitar um planeta do sistema solar e, depois, regressar à Terra: «tudo o que sobe tem de descer». Tanto na ida como na volta, as missões têm de lidar com o atrito gerado pelas atmosferas – e por isso há que desenhar aerodinâmicas e configurações de veículos espaciais mais adequadas para suportar a força destrutiva do atrito de cada atmosfera. E é aí que entra em ação o tubo metálico do Laboratório de Plasmas Hipersónicos.
Numa das extremidades, o tubo metálico conta com uma câmara de combustão: é nesse dispositivo que é injetada uma mescla de hidrogénio, oxigénio e hélio. A combustão é iniciada através de um laser que faz a ignição. Quando alcança uma pressão de 600 BAR e uma força correspondente a 480 toneladas, o diafragma dessa câmara de combustão cede à pressão exercida pelo gás e deixa-o passar para um tubo de compressão preenchido de hélio. É neste momento que se gera uma onda de choque que tem por base o diferencial de pressões: enquanto na câmara de combustão os gases encontravam-se a mais de 600 BAR (1 BAR corresponde à força da atmosfera terrestre), no tubo de compressão essa força poderá não exceder os 0,1 BAR. Com a onda de choque gerada pela diferença de pressões, os gases transformam-se em plasmas (plasmas e gases ionizados são a mesma coisa) e a temperatura sobe acima dos 3000 graus centígrados.
Depois da aceleração gerada no tubo de compressão, segue-se um novo diafragma, que também terá de ser rompido pela pressão, e a parte mais importante deste novo instrumento científico: a secção de testes, que também é cilíndrica e não deverá contar com mais de um milibar de pressão. «É a pressão típica da atmosfera da Terra a 60 ou 70 quilómetros de altitude», explica Mário Lino da Silva.
Ao replicarem a pressão da atmosfera terrestre, os investigadores do Laboratório de Plasmas Hipersónicos garantem a capacidade de recolher informação útil sobre as forças a que sondas e veículos terão de se sujeitar quando regressam à Terra. Todos os dados relativos a essas forças são recolhidos através de uma câmara Streak que converte sinais óticos em eletrões, com o objetivo de fazer uma descrição temporal e espetral da onda choque ao atravessar a secção de testes.
Mário Lino da Silva compara esta imagem às fotos da linha de meta que costumam ser usadas no atletismo, mas lembra que, no caso dos plasmas, o objetivo passa por «aferir as propriedades físicas do gás e desenvolver modelos matemáticos que permitam reproduzir a onda de choque e que são úteis para desenhar a aerodinâmica de uma missão espacial».
No final deste percurso, os plasmas são encaminhados para um tanque de descarga, onde ficam a repousar com pressões de dois ou três BAR, até poderem ser evacuados para a atmosfera. Todo este percurso entre câmara de combustão e tanque de descarga demora bem menos que a descrição feita nesta página: Mário Lino da Silva lembra que cada teste poderá demorar pouco mais que 30 milissegundos na câmara de combustão e microssegundos que as ondas de choque demoram a percorrer tubos de compressão e secção de testes. O que dá bem menos de um segundo.
«Este equipamento permite chegar a velocidades máximas de 18 quilómetros por segundo em simulações de atmosferas dos planetas gigantes (Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno), mas nas simulações da atmosfera da Terra a velocidade máxima ronda os 14 quilómetros por segundo», refere o responsável do Laboratório de Plasmas Hipersónicos, para depois acrescentar: «Ainda não se conseguia atingir estas velocidades na Europa. No tubo de choque que estava instalado em Marselha apenas se conseguia chegar aos oito quilómetros por segundo».
Ao alcançar novas velocidades, o tubo de choque instalado em Loures permite às agências espaciais europeias pensar em voos de maior alcance. «Antes só conseguíamos fazer testes para missões espaciais que vêm da Estação Espacial Internacional (ISS). Agora passamos a poder fazer testes de missões interplanetárias», enaltece Mário Lino da Silva.
Ciência para todos
Com o novo tubo de choque, os investigadores do Laboratório de Plasmas Hipersónico ganham a capacidade de mimetizar as diferentes atmosferas dos planetas do sistema solar, consoante as misturas de gases que forem colocadas na secção de testes. É esta combinação de gases que permite mimetizar uma atmosfera mais “pesada” como a da Terra, que é dominada por oxigénio e azoto, de atmosferas mais “leves” como as dos planetas gigantes que são dominadas por hidrogénio e hélio. As combinações de gases permitem ainda simular as atmosferas de Azoto e Dióxido de Carbono de planetas como Marte e Terra, ou de Titã, uma lua de Saturno que tem uma atmosfera composta por azoto e metano.
«Só os objetos com massa suficiente têm atmosfera. O que significa que, a existir um objeto com essa dimensão, muito provavelmente já terá sido descoberto. É possível que possa vir a ser descoberto um novo objeto nos confins do sistema solar com essa dimensão. E nessa altura poderemos simular a sua atmosfera. Podemos colocar o que quisermos na secção de testes», explica Mário Lino da Silva.
Esta combinação de gases deverá ganhar especial utilidade durante os primeiros trabalhos do novo Laboratório: «No arranque vamos reproduzir resultados para podermos fazer comparações com os dados obtidos por outros tubos de choque. Esta primeira série de ensaios vai simular as condições que típicas das atmosferas dos vários planetas do sistema solar», refere Mário Lino da Silva.
A instalação do Laboratório de Plasmas Hipersónicos começou a ser trabalhada em 2009, tendo levado à instalação de um protótipo em 2015, por parte de um consórcio liderado pelo Instituto Superior Técnico, a Universidade de Provença e a empresa Fluid Gravity. A ESA é o promotor e cliente da solução – mas só deverá usar a instalação num período correspondente a um total de três meses por ano. «Os restantes períodos deverão ser aproveitados para atividades académicas e de investigação de entidades nacionais ou estrangeiras. Hoje, a colaboração é a palavra-chave da ciência europeia», conclui o responsável do Laboratório.