As histórias são instrumentos poderosos. As narrativas de que nos convencemos ou que utilizamos para persuadir os outros não devem ser menosprezadas como agentes de mudança. Ao longo das últimas décadas, temos contado uma história sobre a criação de valor nas nossas sociedades: o Estado é uma entidade burocrática, pesada e aborrecida, que deve sair da frente do setor privado e limitar-se a corrigir alguns desequilíbrios. Ou seja, as empresas são os criadores de valor e o Estado apenas se limita a capturá-lo e, eventualmente, a distribuí-lo.
Pense na forma como nos babamos perante tudo o que vem de Silicon Valley e o nosso ceticismo em relação às capacidades dos serviços públicos. São gazelas vs. tartarugas. A imagem é, no mínimo, distorcida. Mesmo sem falar no valor subjacente à disponibilização de serviços básicos como saúde, ensino e uma rede social mínima, o Estado tem também sido um importante motor de inovação. Aliás, é provável que esteja a ler este texto num aparelho cuja árvore genealógica envolve diretamente o setor público.
Este é um tema que apaixona Mariana Mazzucato. A professora de Economia da Inovação na University College London foi entrevistada esta semana pela VISÃO, à boleia da publicação em Portugal do seu mais recente livro “O Valor de Tudo” (da Temas e Debates). Uma das estrelas da economia mundial e provocadora profissional, Mazzucato explicou à VISÃO a importância de uma narrativa convincente.
“Se não contar histórias, as pessoas não vão perceber o que está a fazer. Um ano depois da crise, Lloyd Blankfein, CEO do Goldman Sachs, dizia que os trabalhadores do seu banco eram os mais produtivos do mundo e, uns anos depois, falava em “estar a fazer o trabalho de Deus”. É uma narrativa forte. A Goldman tem lucros recorde.”
A economista italiana acha que falamos de criação de valor de uma forma infantil, associando-o sempre ao preço. É especialmente crítica da glorificação do setor financeiro, de Silicon Valley e da indústria farmacêutica e defende que é crucial reabilitar a imagem do Estado, cuja reputação, pelo menos por estes dias, anda pelas ruas da amargura.
“Tivemos um ataque explícito ao Estado, com a ideia de Thatcher e Reagan de que o Estado só teria de deixar de ser um obstáculo. Esse ataque neoliberal foi acompanhado de novas expressões e visões sobre para que serve o Estado. Esta ideia que ele está lá apenas para administrar e regular é relativamente nova. Alguns dos gestores de topo queriam trabalhar em instituições públicas. Hoje, cada vez mais, quem vai trabalhar para o setor público, em vez do Goldman Sachs ou Google, é visto como um falhado. Tivemos também uma desregulação do setor financeiro, que permitiu aos interesses financeiros ganharem força. Crise após crise, o Estado estava lá apenas para salvar os bancos e apanhar os cacos. Quase não consegue fazer o seu trabalho, que é pagar por escolas, saúde e infraestruturas e garantir a sustentabilidade. O Estado é útil, produtivo e estratégico e conseguiu algumas das maiores proezas dos nossos tempos.”
Que proezas são essas? Há vários exemplos, muitos deles citados pela própria Mazzucato no seu livro mais conhecido: O Estado Empreendedor.
IPHONE
“Todas as coisas que tornam o iPhone esperto foram financiadas pelo setor público.” Mazzucato gosta de repetir esta frase. Talvez “todas” seja um exagero, mas são bastantes. A história do iPhone, da Apple e de Steve Jobs é normalmente contada como o típico mito do empreendedor que sobe a pulso, através da força da sua criatividade. Silicon Valley no seu melhor. Sem desvalorizar o génio de Steve Jobs, é estranho que nunca se mencione o papel do Estado.
O iPhone utiliza a Internet, cujo pai é a ARPANET, um programa dos anos 60 financiado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. A geolocalização também faz parte da espinha dorsal do smartphone e o embrião do GPS nasceria na década seguinte, desenvolvido pelas forças armadas norte-americanas, que continuam a atualizá-lo e a fazer a sua manutenção. O touchscreen, que permitiu a Jobs proclamar o agora famoso “on the front, there’s only one button”, foi criado na Universidade de Delaware, por um doutorando. A SIRI – a quem pode perguntar onde há bons restaurantes ou como enterrar um cadáver – tem raízes num projeto de inteligência artificial financiado pela DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency). Esta foi a casa de onde partiu muita da inovação tecnológica da segunda metade do século XX.
GPS
Olhando com mais atenção para o Global Positioning System (GPS), ele partiu de uma iniciativa do Departamento de Defesa dos EUA para melhorar a coordenação e eficácia do posicionamento das forças militares. Em 1983, a União Soviética disparou sobre um avião civil sul coreano que tinha entrado no seu espaço aéreo, o que motivou a Administração Reagan a permitir a utilização civil do GPS por todo o mundo. Inicialmente, o sinal de melhor qualidade estava reservado para operações militares norte-americanas, mas Bill Clinton acabou com essa “disponibilidade seletiva”. O governo norte-americano já investiu milhares de milhões no sistema e continua a geri-lo e a investir no seu melhoramento, com um custo que ultrapassa, por vezes, os mil milhões de dólares ao ano.
RATO
Parece mais básico – e agora já se está a tornar obsoleto -, mas o rato foi um elemento decisivo para a utilização do computador. Através de experiências também financiadas pela DARPA, foi desenvolvido um protótipo de madeira, com apenas um botão. Em “What Will Be”, Michael Dertouzos diz que a DARPA é responsável por entre um terço e metade das inovações relacionadas com os computadores.
AIRBAG
Não foi propriamente uma invenção do setor público, mas a tecnologia que esteve na origem do airbag também apareceu devido à aposta do Estado em investigação militar e espacial. “As tecnologias que tornaram o airbag um realidade nos anos 70 – aquelas que permitiram que um aparelho registasse uma colisão e inchasse mais rápido do que um piscar de olhos – vieram todas de investigação anterior na área militar e espacial, financiada pelo Estado”, explicou Mazzucato ao blogue das TED Talks.
MEDICAMENTOS
A economista dá especial atenção à indústria farmacêutica. Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde gastaram 792 mil milhões de dólares entre 1936 e 2011 no desenvolvimento de biotecnologia e medicamentos. “Na maioria das novas entidades moleculares consideradas prioritárias – os medicamentos mais inovadores – é possível traçar a sua origem até aos Institutos Nacionais de Saúde”, diz Mazzucato. Um estudo do ano passado concluía que o financiamento público dos Institutos Nacionais de Saúde estava por trás, diretamente ou indiretamente, de todos os 210 novos medicamentos aprovados pela FDA (Food and Drug Administration) entre 2010 e 2016.
FRACKING
A partir do final dos anos 70, o Departamento de Energia investiu mais de 130 milhões de dólares em novas técnicas de extração, o que deu um empurrão aquilo que hoje chamamos fracking (fraturamento hidráulico), uma nova forma de extração de combustível do subsolo, que permitiu chegar a recursos difíceis de alcançar. Foi este método que permitiu que os EUA se tornassem nos maiores produtores de petróleo do mundo da atualidade, ultrapassando a Rússia e a Arábia Saudita.

Nem tudo é cor-de-rosa
Não devemos cair na tentação de desvalorizar o contributo do setor privado para o desenvolvimento de inúmeras tecnologias, incluindo as citadas em cima. Mas seria útil contarmos uma história menos preto/branco acerca do papel do Estado e das empresas. A Apple recebeu apoio do Estado norte-americano, o desenvolvimento do algoritmo da Google beneficiou dos esforços da National Science Foundation, a evolução das energias renováveis dependeu, em grande medida, do apoio público.
Claro que pelo caminho nem tudo corre bem. Um dos casos que mais pressionou Barack Obama durante a sua campanha para ser reeleito em 2012 foi a falência da Solyndra, uma fabricante de nova tecnologia para painéis solares, que recebeu mais de 500 milhões de dólares em apoios do Estado. Menos debatido é o facto de o mesmo programa de empréstimos ter concedido 465 milhões à Tesla. No total, as três empresas de Elon Musk – Tesla, SpaceX e SolarCity – receberam subsídios de quase cinco mil milhões de dólares.
“Porque é que os contribuintes não sabem que também financiaram a Tesla? Não teria mudado a narrativa e a perceção daquilo que os burocratas em Washington andam a fazer?”, questiona Mazzucato, numa entrevista ao podcast do Freakonomics. “Eles não só falharam no marketing, como não explicaram aos cidadãos dos EUA todos estes investimentos bem-sucedidos.”
No entanto, embora o debate seja saudável, é justo notar que Mazzucato desvaloriza a falta de eficiência (desperdício?) que acompanha alguma da atividade do Estado. Mais problemático ainda, como tomar em conta o risco de incompetência e corrupção na utilização do dinheiro dos contribuintes? Não faltam exemplos por todo o mundo, mas basta olharmos para Portugal. Além disso, não é por acaso, que muitos dos exemplos em cima vêm dos EUA. Será que o novo modelo de Estado proposto pela economista faz sentido em países com menos poder de fogo científico e tecnológico, como Portugal? Por último, muita desta inovação vinda do setor público parece ter-se concentrado nas primeiras décadas da segunda metade do século XX. Será que o Estado perdeu essa capacidade ou nós é que lhe tirámos os dentes?
Contudo, Mazzucato está longe de ser uma radical. Questionada diretamente pela VISÃO, ela recusa o epíteto de “anti-capitalista”. “Não é capitalismo vs. socialismo. É tornar o capitalismo mais inclusivo e mais sustentável”, sublinha.
Não estou a dizer para voltarmos aos anos 70 e nacionalizar tudo, isso não correria bem. Falo de termos um melhor acordo. Mas isso só se consegue quando se pensa em todos os atores como criadores de valor. Se o Estado assume que está lá apenas para facilitar, autorizar, redistribuir e corrigir em vez de ser um criador de valor, isso é um ponto de partida negocial mais complicado.
Se este conjunto de ideias parece hoje radical, talvez o problema não esteja propriamente com Mariana Mazzucato.
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