Começou hoje a ser vendido o videojogo Red Dead Redemption 2 (RDR2). Mesmo que já não se lembre do prazer que é pegar num comando de consola, provavelmente cruzou-se com o título nas últimas semanas. O segundo capítulo do clássico de 2010 é o jogo mais aguardado dos últimos anos, com níveis de interatividade e detalhe inéditos (andar na neve é difícil, a barba da sua personagem vai crescendo e os testículos dos cavalos mudam de tamanho conforme a temperatura). Os críticos estão a babar-se, mas ele não chega às nossas casas sem controvérsia.
Numa reportagem da “New York Magazine”, Dan Houser, fundador da Rockstar (a criadora do RDR, mas também do gigante Grand Theft Auto), citava uma série de números que revelavam a ambição do jogo: um guião de 2.000 páginas, 300 mil animações, 500 mil falas de personagens e 1.200 atores. Números impressionantes, que deixaram os fãs a salivar. No entanto, aquele que mais surpreendeu foi outro: 100 horas por semana. Era esse o horário que Houser admitia que os programadores tiveram de cumprir durante alguns períodos deste ano, para conseguir acabar o jogo a tempo.
“Estivemos a trabalhar 100 horas por semana”, afirmou à revista. “Provavelmente fizemos 70 versões, mas os editores podem ter feito várias centenas.”
É um número arrasador. Mesmo que trabalhe ao sábado e ao domingo, isso significa mais de 14 horas por dia. É um daqueles momentos em que o consumidor espreita por trás do pano e é forçado a saber como funciona a fábrica de salsichas e qual o verdadeiro preço do seu entretenimento. Num caso mais extremo, foi como conhecer as fábricas chinesas da Foxconn onde são fabricados os iPhones que temos nos bolsos.
Contudo, mais do que tocar a consciência dos gamers, a reportagem deu novo fôlego à discussão sobre o movimento sindical dentro da indústria dos videojogos.
Escreve o site Polygon:
“Não é difícil perceber por que é que mais e mais criadores e programadores estão a manifestar-se pela sindicalização da indústria. Não é como se não houvesse um precedente. Os 1.200 atores que a Rockstar contratou? Fazem todos parte da do sindicato SAG-AFTRA – um ponto sublinhado na peça da NYM. Os contratos da SAG-AFTRA garantem condições dignas de trabalho para os actores de voz e de movimento, limitando o número de horas consecutivas que podem trabalhar e garantindo um salário justo por essas horas. Os lucros da Rockstar aguentaram isso; por que não permitir que os programadores que estão a escrever o código e a desenhar o jogo tenham as mesmas garantias?”
A indústria reagiu com alguma indignação às palavras de Dan Houser. “Imaginem gabarem-se de pressionar os vossos trabalhadores a trabalhar mais de 100 horas por semana, ao mesmo tempo que defendem que as vossas práticas são sensatas”, afirmou o criador do jogo Ruby on Rails, David Heinemeier, no Twitter. Citado pela Variety, Mike Bithel, de “Thomas Was Alone” disse que, se algum dia se orgulhasse em público de obrigar a sua equipa a fazer horas extraordinárias porque não a consegue gerir corretamente – e usar isso como um ponto positivo -, “por favor copiem este tweet e enviem-me centenas de vezes até eu abandonar este site amaldiçoado a corar de vergonha”. O site cita ainda Peter Stewart, da Creative Assembly: “Isto tem de deixar de ser motivo de orgulho. Não quero programadores a fazer semanas de 100 horas, mesmo que o resultado seja o jogo do ano. Nenhum jogo vale esse tipo de burnout.”
The game industry’s abusive work practices are predicated on exploiting how “passionate and dedicated” the earnest people who work to create this genre of entertainment are. No wonder the word “passion” is being rendered toxic (which is a shame).
— DHH (@dhh) October 15, 2018
Isto está longe de ser um caso único nas empresas de videojogos. Quando é conhecida a data de lançamento e é preciso terminar o jogo, os programadores entram em modo “crunch”, expressão utilizada para definir horas sem fim de trabalho extraordinário, na maioria das vezes não remunerado. A secretária passa a ser a mesa de refeições, o sono um luxo raro e a família uma memória distante. A prática foi exposta em 2004, num artigo anónimo, que ficou conhecido como “o artigo da esposa da EA [Electronic Arts]”, que revelava que a empresa exigia aos seus trabalhadores semanas de 85 horas sem nenhum pagamento extraordinário. Muito acima do máximo permitido por lei.
Também no Twitter, um antigo responsável pelos testes da Rockstar assumia-se como um “sobrevivente do ‘crunch’ do GTA V”, descrevendo-o como um “inferno”. “As verdadeiras pessoas que ajudam a fazer os jogos são as pessoas sem nome e sem cara das quais nunca vão ouvir falar. Os líderes dos estúdios vão aparecer e elogiar o seu produto, mas não serão eles a cumprir horas que nos destroem a alma só para fazer obras-primas de jogos.”
Num inquérito feito em 2017 pela International Game Developers Association (IGDA), 62% dos inquiridos diziam que os seus empregos envolviam períodos de “crunch”. Quase metade deles falava em 60 horas por semana e 14% admitiam mesmo trabalhar 70 horas semanais.
O culto das horas excessivas não é um exclusivo deste setor, claro. É famosa a história dos trabalhadores da Apple responsáveis pelo Macintosh, que usavam hoodies onde se lia “90 horas por semana e a adorar!”. Os últimos 150 anos trouxeram uma redução da jornada de trabalho, mas agora podemos levar trabalho para casa no nosso smartphone. Fisicamente ou não no local de trabalho, não desligar tem consequências para a saúde física e mental dos trabalhadores e não falta investigação que mostra como a produtividade começa a afundar quando se esticam a horas. E quanto menos físico e mais criativo é o trabalho mais contraproducente é abusar das horas. Trabalhadores mais felizes tendem também a ser mais produtivos.
No caso dos videojogos, deve ainda questionar-se a utilidade do processo. O Red Dead Redemption 2 demorará 60 horas a completar. É um jogo longuíssimo. A Forbes escrevia que apenas 30% dos jogadores terminou a campanha de cinco horas do Call of Duty. O RDR original? Só um em cada dez o concluiu o jogo.
“Este tipo de revelação obriga os fãs a imporem-se e a exigirem melhores condições para quem lhes faz os jogos. Precisamos que o RDR 2 tenha uma campanha de 60 horas em vez de uma de 25-40 horas, se isso significar que podemos evitar períodos de “crunch” que podem arruinar a vida dos programadores? O jogo deixaria de valer os 60 dólares que pagamos por ele?”, questionava esse artigo da Forbes.
Dan Houser já se justificou, dizendo que as 100 horas por semana a que se referia não eram obrigatórias, nem uma prática seguida por todos os trabalhadores. “Obviamente que não esperamos que mais ninguém trabalhe desta forma. Por toda a empresa temos pessoal mais sénior, que trabalha muito, simplesmente porque são apaixonados por um projeto ou pelo seu trabalho e acreditamos que essa paixão se manifesta nos jogos que lançamos”, disse, em comunicado. “Mas esse esforço é uma escolha. Não pedimos nem esperamos que alguém trabalhe assim.”
Ainda assim, continua a defender que os trabalhadores da área permaneçam relativamente anónimos. “Os jogos ainda são mágicos”, disse à GQ. “É como se fossem feitos por elfos. Liga o écran é só este mundo que existe na TV. Acho que ganha alguma coisa em não saber como eles são feitos. Podemos perder algo em termos do respeito que as pessoas têm por aquilo que fazemos, mas o seu prazer aumenta, o que é mais importante.”
Alguns trabalhadores procuraram defender a Rockstar, dizendo que as horas extra nasceram da sua vontade. “Passei 5 anos na Rockstar North. Número de semanas de 100 horas? Zero. Número de vezes que me pressionaram para o fazer? Zero”, escreveu um deles no Twitter. “O meu nome está no GTA e no RDR 2. Envolveram muito trabalho duro e dias difíceis, mas fui eu que quis.”
A pressão para haver mudanças na indústria precede este caso e poderá acentuar-se. Num inquérito que a IGDA fez em 2014, mais de metade dos programadores eram favoráveis à sindicalização. “Uma disparidade salarial gigantesca não é exclusiva da indústria dos videojogos. Mas os trabalhadores deste setor não têm a mesma influência que outras áreas, como o cinema, que é altamente sindicalizado. Os programadores não têm proteção contra os caprichos dos patrões e dos acionistas e não têm forma de lutar contra o “crunch”, despedimentos e abuso”, escreve o site Kotaku, referindo que em 2016, o CEO da Activision-Blizzard recebeu mais de 33 milhões de dólares. No ano seguinte, apesar de a empresa ter batido as suas metas de receita, despediu dezenas de trabalhadores.
O setor já não é composto por grupos de meia dúzia de adolescentes numa garagem a desenvolver um jogo, mas sim por empresas multimilionárias. No ano passado, o mercado dos videojogos valia 108 mil milhões de dólares. Maior do que a economia da Eslováquia. “Myst, um dos jogos mais vendidos nos anos 90, foi criado por dois irmãos, Rand e Robyn Miller, com a ajuda de cinco amigos. O GTA V, um dos jogos mais populares da década de 2010, custou 265 milhões de dólares, com uma equipa de mais de mil trabalhadores”, lembra o Salon.
O Grand Theft Auto V – também da Rockstar – foi lançado em 2013 e já vendeu 100 milhões de unidades, com receitas acumuladas de seis mil milhões de dólares. Por comparação, o filme “E Tudo o Vento Levou”, tido como o título que mais dinheiro fez na História do cinema, não chega a 1,9 mil milhões (já ajustado à inflação). O GTA V é hoje tido como o produto de entretenimento com mais vendas de sempre.
Organizações como a Gamer Workers Unite procuram incentivar a sindicalização do sector. Emma Kinema (pseudónimo) é uma das organizadoras e diz à Variety que a sindicalização do movimento teria mais vantagens do que apenas evitar os períodos de “crunch”. “O crunch é certamente um dos temas mais públicos e tangíveis, a partir do qual os trabalhadores estão a pedir sindicalização e maior organização laboral na indústria. Mas há muitos mais assuntos em torno dos quais nos podemos organizar, como o emprego temporário massivo, má categorização profissional, práticas de contratação insustentáveis, falta de indemnização por despedimento, seguros de saúde pouco estáveis, e mais.”
Red Dead Redemption 2 começou hoje a ser vendido para PS4 e Xbox. O seu antecessor vendeu 15 milhões de cópias. O Bank of America espera que a sequela ultrapasse esse número e chegue aos 18 milhões.
Veja o trailer do jogo: